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São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O menino e o velho

RIO DE JANEIRO - Aprendi com os meus maiores que não se deve chutar cachorro atropelado. E nada mais parecido com cachorro atropelado do que um ano que se vai, como este que hoje acaba e, segundo alguns, acaba tarde.
Lembro que o finado Jânio Quadros, que gostava de usar palavras fora do mercado, chamou um determinado ano de "poltrão". Com o jeito de falar que ele tinha, a palavra ficava obscena em sua boca.
No ano seguinte, ele nem teve oportunidade de xingá-lo. O próprio Jânio é que foi considerado um poltrão. Lembrando esse e outros exemplos que conheço, sou moderado na saudação do novo ano -e digo "moderado" para não dizer "desconfiado". Quanto ao ano que se vai, tudo bem, entre mortos e feridos, se não se salvaram todos, salvei-me eu -e é o que conta.
Quando criança, garantiram-me que, no dia 31 de dezembro de cada ano, passava no céu um velho encarquilhado, com um saco às costas cheio de esqueletos, bombas, desventuras, cobras e lagartos. E que, do outro lado do céu, surgiria um menino rechonchudo, risonho, desses que ganham prêmio em exposições de puericultura, com uma faixa onde vinha, com números bordados, o novo ano.
Eu tinha pena do velho, embora não gostasse dele. Para onde ele iria com aquele monstruoso saco cheio de coisas perversas? E de onde vinha aquele menino gorducho, que em apenas 12 meses envelheceria rapidamente, calvo e anquilosado, arrastando um saco igual? Sentia um frio aqui dentro quando pensava que eu poderia estar naquele saco que o menino, por bem ou por mal, iria enchendo com os escombros do tempo e do modo de todos nós.
Na verdade, nunca vi a cena da troca do velho pelo menino, nem no céu, nem aqui na Terra. Mas, quando olho para dentro de mim mesmo, pálido de espanto como aquele poeta que ouvia estrelas, descubro que o menino e o velho são a mesma coisa,



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