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São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

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Estética militante

Construtivismo - Origens e Evolução
George Rickey
Tradução: Regina de Barros Carvalho
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
240 págs., R$ 39,00

SHEILA LEIRNER

Em 1999, um conhecido artista brasileiro apresentou na Bienal de Veneza uma série de trabalhos que chamou de "Construtivismo Rural". Eram telas recobertas por pele de vaca costurada de maneira a formar motivos geométricos. Tal humor irreverente, que associava elementos e texturas orgânicas a uma "aparente" construção formal e cromática, foi um dos melhores e mais ilustrativos exemplos da questão que atravessa a arte do século 20: a grande cisão provocada pela repulsa recíproca (e também pelo desafio) entre a abstração e a figuração, o formalismo e o informal, o concreto e o não-concreto.
Este livro de George Rickey, originalmente publicado em 1967, revisto em 1994, de novo publicado em 1995 e recém-traduzido para o português, nasceu justamente do desejo subjacente de reagir contra a predominância da arte informal por meio de um melhor conhecimento das doutrinas do seu adversário, o construtivismo. Pois, segundo Rickey -artista plástico e teórico norte-americano, falecido em 2002- havia, no final dos anos 1960, uma profunda ignorância a respeito do que era aquele movimento.
Mais do que isso, George Rickey participava também de uma espécie de "resistência", típica dos que viviam sob o signo da pop art e da nova-figuração. Pertencia certamente àquela oposição militante, não apenas deslumbrada com as experiências da vanguarda russa, mas igualmente nauseada pela abundância de imagens, pelos resíduos dos velhos sistemas de essências e pela imoralidade do circuito artístico. Uma oposição guiada pela paixão da neutralidade que, como todas as paixões, também pode cegar. Hoje, o seu registro reaparece sem dúvida em outro contexto. Quase 30 anos mais tarde, aquelas "criações improváveis" tornaram-se aceitas, reconhecidas e muitos de seus artistas ficaram famosos. Nesse ínterim melhorou significativamente a noção dessa tendência, surgiram anticorrentes como a da "desconstrução" e aumentou o número de "neoconstrutivos", ainda mais radicais, dentro da arte contemporânea.
Isso não diminui o interesse deste livro. Ao contrário, apesar dos defeitos inerentes à tese universitária (pedagogismo, fúria demonstrativa, estilo raciocinativo, economia ou dissimulação de posições pessoais atrás de citações obrigatórias etc.), continua a desempenhar o mesmo papel didático pretendido por seu autor. Porque, segundo Rickey, "o construtivismo se mostra melhor em suas obras de arte do que em palavras", esta publicação não faz outra coisa senão traçar as suas influências por meio de inúmeros e variados pontos de vista tornando, não obstante, mais familiares o seu processo e os seus cenários.
Portanto, enquanto escultor (termo incerto, visto que um artista construtivo, e ainda mais cinético, não "esculpe"), Rickey arrisca-se a oferecer algo não tão "específico e concreto" quanto deseja. Apesar de apresentar realmente o que foi o "construtivismo inicial ou tardio, quem o inventou, quais artistas influenciou e por quais vias", ele, com a sua visão abrangente (de artista), ainda deixa o termo "construtivismo" sem definições críticas, bastante à mercê da técnica e das experiências individuais de seus atores.
O livro, com cerca de 300 imagens em branco e preto, se inicia com uma reveladora cronologia e divide-se em duas partes: "O Legado do Construtivismo" e "Os Herdeiros e suas Obras". Termina com uma vasta bibliografia sobre a continuidade do construtivismo que, justiça seja feita, não foi apenas selecionada pelo autor como está indicado, mas preparada por Bernard Karpel, ex-responsável pela livraria do MoMA de Nova York, como aliás George Rickey assinala em seu prefácio.
Na primeira parte o autor traça o desenvolvimento do construtivismo através do pensamento de seus fundadores, desde a renúncia ao simbolismo preconizada por Endell no final do século 19 e já vislumbrada por Platão, até as suas origens russas em 1914 e a sua dispersão pela Europa, EUA, América Latina e Japão. Aqui, ele oferece um amplo e interessante painel que se abre para a discussão de quem ou o que deu ao movimento o seu status internacional. Nesse segmento já são citados os trabalhos de artistas brasileiros como Lygia Clark, Almir Mavignier, Abraham Palatnik e Mary Vieira. Ficam fora vários outros também influenciados pelas presenças dos mestres concretistas europeus, sobretudo Max Bill, nas bienais paulistas.
A segunda parte -na qual os brasileiros são novamente citados e também comentados, junto com o argentino Júlio Le Parc, cujas obras estiveram recentemente entre nós, e centenas de outros artistas- é a mais problemática. Trata-se de uma rica colcha de retalhos que agrega notas curtas e observações, nascidas do conhecimento e sobretudo da vivência e dos contatos pessoais acumulados durante a vida artística de George Rickey. Uma tecedura que ele organizou em torno 12 tópicos (acaso, relevos, movimento, luz, cor etc.) e na qual entram tudo e todos que dizem respeito, em algum momento, às idéias fundamentais do construtivismo.
Mas é aqui que as coisas se complicam, pois embora o início de cada seção seja feita por associações históricas e críticas inteligentes e esclarecedoras, essas pequenas gavetas de organização teórica não são os melhores lugares para se colocar artistas e obras. Eles se irradiam de maneira inevitável por toda parte e se insurgem virtualmente contra a condição de "ilustração" que se lhes queira impingir.
Além disso, no esforço em esboçar "os eventos que expliquem a continuidade do construtivismo", e também na cegueira de uma louvável paixão onde a ética está profundamente ligada à estética, Rickey acaba por dilatar excessivamente o enfoque. A ponto de incluir no tópico da luz, por exemplo, um artista como Ad Reinhard que, apesar de suas conhecidas idéias sobre a arte-pelo-destino-da-arte, não poderia entrar jamais numa discussão quase que inteiramente dedicada à arte cinética...
De modo geral, a obra é tocante no que ela revela do monófito que toma apenas uma via do conhecimento ou da arte e faz convergir para ela tudo o que puder abarcar. Pois, enquanto manifesto à revelia do próprio autor, o livro de George Rickey esmera-se com determinação em favor de um movimento ao qual ele não apenas aderiu enquanto intelectual, universitário e artista, mas que professou como quem entra numa ordem de fé.


Sheila Leirner é crítica de arte e autora de "Arte como Medida" e "Arte e seu Tempo" (ambos pela Perspectiva).


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