|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Estética militante
Construtivismo - Origens e Evolução
George Rickey
Tradução: Regina de Barros Carvalho
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
240 págs., R$ 39,00
SHEILA LEIRNER
Em 1999, um conhecido artista
brasileiro apresentou na Bienal de
Veneza uma série de trabalhos
que chamou de "Construtivismo
Rural". Eram telas recobertas por
pele de vaca costurada de maneira
a formar motivos geométricos.
Tal humor irreverente, que associava elementos e texturas orgânicas a uma "aparente" construção
formal e cromática, foi um dos
melhores e mais ilustrativos
exemplos da questão que atravessa a arte do século 20: a grande cisão provocada pela repulsa recíproca (e também pelo desafio)
entre a abstração e a figuração, o
formalismo e o informal, o concreto e o não-concreto.
Este livro de George Rickey, originalmente publicado em 1967,
revisto em 1994, de novo publicado em 1995 e recém-traduzido para o português, nasceu justamente do desejo subjacente de reagir
contra a predominância da arte
informal por meio de um melhor
conhecimento das doutrinas do
seu adversário, o construtivismo.
Pois, segundo Rickey -artista
plástico e teórico norte-americano, falecido em 2002- havia, no
final dos anos 1960, uma profunda ignorância a respeito do que
era aquele movimento.
Mais do que isso, George Rickey
participava também de uma espécie de "resistência", típica dos que
viviam sob o signo da pop art e da
nova-figuração. Pertencia certamente àquela oposição militante,
não apenas deslumbrada com as
experiências da vanguarda russa,
mas igualmente nauseada pela
abundância de imagens, pelos resíduos dos velhos sistemas de essências e pela imoralidade do circuito artístico. Uma oposição
guiada pela paixão da neutralidade que, como todas as paixões,
também pode cegar. Hoje, o seu
registro reaparece sem dúvida em
outro contexto. Quase 30 anos
mais tarde, aquelas "criações improváveis" tornaram-se aceitas,
reconhecidas e muitos de seus artistas ficaram famosos. Nesse ínterim melhorou significativamente a noção dessa tendência,
surgiram anticorrentes como a da
"desconstrução" e aumentou o
número de "neoconstrutivos",
ainda mais radicais, dentro da arte contemporânea.
Isso não diminui o interesse
deste livro. Ao contrário, apesar
dos defeitos inerentes à tese universitária (pedagogismo, fúria demonstrativa, estilo raciocinativo,
economia ou dissimulação de posições pessoais atrás de citações
obrigatórias etc.), continua a desempenhar o mesmo papel didático pretendido por seu autor.
Porque, segundo Rickey, "o construtivismo se mostra melhor em
suas obras de arte do que em palavras", esta publicação não faz outra coisa senão traçar as suas influências por meio de inúmeros e
variados pontos de vista tornando, não obstante, mais familiares
o seu processo e os seus cenários.
Portanto, enquanto escultor
(termo incerto, visto que um artista construtivo, e ainda mais cinético, não "esculpe"), Rickey arrisca-se a oferecer algo não tão
"específico e concreto" quanto
deseja. Apesar de apresentar realmente o que foi o "construtivismo
inicial ou tardio, quem o inventou, quais artistas influenciou e
por quais vias", ele, com a sua visão abrangente (de artista), ainda
deixa o termo "construtivismo"
sem definições críticas, bastante à
mercê da técnica e das experiências individuais de seus atores.
O livro, com cerca de 300 imagens em branco e preto, se inicia
com uma reveladora cronologia e
divide-se em duas partes: "O Legado do Construtivismo" e "Os
Herdeiros e suas Obras". Termina
com uma vasta bibliografia sobre
a continuidade do construtivismo
que, justiça seja feita, não foi apenas selecionada pelo autor como
está indicado, mas preparada por
Bernard Karpel, ex-responsável
pela livraria do MoMA de Nova
York, como aliás George Rickey
assinala em seu prefácio.
Na primeira parte o autor traça
o desenvolvimento do construtivismo através do pensamento de
seus fundadores, desde a renúncia ao simbolismo preconizada
por Endell no final do século 19 e
já vislumbrada por Platão, até as
suas origens russas em 1914 e a
sua dispersão pela Europa, EUA,
América Latina e Japão. Aqui, ele
oferece um amplo e interessante
painel que se abre para a discussão de quem ou o que deu ao movimento o seu status internacional. Nesse segmento já são citados
os trabalhos de artistas brasileiros
como Lygia Clark, Almir Mavignier, Abraham Palatnik e Mary
Vieira. Ficam fora vários outros
também influenciados pelas presenças dos mestres concretistas
europeus, sobretudo Max Bill, nas
bienais paulistas.
A segunda parte -na qual os
brasileiros são novamente citados
e também comentados, junto
com o argentino Júlio Le Parc, cujas obras estiveram recentemente
entre nós, e centenas de outros artistas- é a mais problemática.
Trata-se de uma rica colcha de retalhos que agrega notas curtas e
observações, nascidas do conhecimento e sobretudo da vivência e
dos contatos pessoais acumulados durante a vida artística de
George Rickey. Uma tecedura que
ele organizou em torno 12 tópicos
(acaso, relevos, movimento, luz,
cor etc.) e na qual entram tudo e
todos que dizem respeito, em algum momento, às idéias fundamentais do construtivismo.
Mas é aqui que as coisas se complicam, pois embora o início de
cada seção seja feita por associações históricas e críticas inteligentes e esclarecedoras, essas pequenas gavetas de organização teórica não são os melhores lugares
para se colocar artistas e obras.
Eles se irradiam de maneira inevitável por toda parte e se insurgem
virtualmente contra a condição
de "ilustração" que se lhes queira
impingir.
Além disso, no esforço em esboçar "os eventos que expliquem a
continuidade do construtivismo", e também na cegueira de
uma louvável paixão onde a ética
está profundamente ligada à estética, Rickey acaba por dilatar excessivamente o enfoque. A ponto
de incluir no tópico da luz, por
exemplo, um artista como Ad
Reinhard que, apesar de suas conhecidas idéias sobre a arte-pelo-destino-da-arte, não poderia entrar jamais numa discussão quase
que inteiramente dedicada à arte
cinética...
De modo geral, a obra é tocante
no que ela revela do monófito que
toma apenas uma via do conhecimento ou da arte e faz convergir
para ela tudo o que puder abarcar.
Pois, enquanto manifesto à revelia do próprio autor, o livro de
George Rickey esmera-se com determinação em favor de um movimento ao qual ele não apenas
aderiu enquanto intelectual, universitário e artista, mas que professou como quem entra numa
ordem de fé.
Sheila Leirner é crítica de arte e autora
de "Arte como Medida" e "Arte e seu
Tempo" (ambos pela Perspectiva).
Texto Anterior: A guerra da Guerra Próximo Texto: A arte do documento Índice
|