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São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

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Fotografias mostram paisagens urbanas

A arte do documento

Guilherme Gaensly e Augusto Malta - Dois Mestres da Fotografia Brasileira no Acervo Brascan
Catálogo da mostra (até 06/04/03)
Curadoria: Instituto Moreira Salles
Onde encontrar: Centro Cultural do IMS/SP (Tel. 0/xx/11/3825-2560)
44 págs., R$ 8,00

VICTOR KNOLL

Em abril de 1899, um grupo de investidores constituiu em Toronto a empresa The São Paulo Railway, Light and Power Company, tendo em vista implantar na Paulicéia o transporte público por tração elétrica -cujos veículos já eram chamados de "bondes" quando ainda movidos a tração animal-, e proceder à geração e distribuição de energia elétrica para a cidade.
Ao lado das primeiras providências para a instalação da infra-estrutura do projeto, constava a contratação de um fotógrafo que acompanhasse e documentasse a execução das obras. Tal tarefa foi confiada a Guilherme Gaensly, suíço que ainda criança imigrou para o Brasil com a família e, quando adulto, em 1871, abriu um estúdio fotográfico em Salvador. A atividade de Gaesnly prosperou de tal maneira que em 1894 abriu uma filial de seu estúdio em São Paulo, à rua 15 de Novembro, 28. Permaneceu como fotógrafo da Light até 1925, três anos antes de sua morte.
Em virtude do êxito da Light em São Paulo, o mesmo grupo de investidores criou, em 1905, na então capital do país, a The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company e de imediato contratou o fotógrafo, talvez de maior prestígio, Augusto Cezar de Malta Campos, a fim de documentar os canteiros de obras, as oficinas e a construção das usinas.
Entretanto, os dois fotógrafos se entregaram ao registro não apenas dos trabalhos de engenharia, mas também voltaram suas câmaras para a tomada de vistas da cidade. Tinha assim origem uma rica documentação das paisagens urbanas de São Paulo e Rio de Janeiro.
A coleção de imagens apresentadas na mostra atual cobre o período de 1900 a 1921. Todavia, mais da metade das fotografias foi tomada na primeira década do século 20. Mais uma vez estamos diante de obras que nos obrigam a refletir sobre as relações entre o documento e a arte. E, no caso, por força da passagem do tempo, a mutação do documento em memória.
De fato, como já foi dito, a finalidade para a qual Gaensly e Malta foram contratados era a de documentar a implantação dos trilhos das linhas de bonde elétrico, a infra-estrutura para iluminação pública, a construção das primeiras barragens e outras atividades da empresa de força e luz. Entretanto, hoje, ao voltarmos o nosso olhar para essas imagens, estabelecemos uma relação com obras de arte. A passagem do documento à arte nas fotografias de Gaensly e Malta se aloja no rigor formal que governou a sua produção.
Chamo a atenção para duas fotografias, uma de Gaensly e outra de Malta, que possuem um grande poder de impacto, seja pelo cuidado com o equilíbrio entre os elementos constitutivos da imagem e também pelo acerto do enquadramento, seja por sua força temática.
A fotografia de Gaensly registra a colocação de trilhos na ladeira São João, esquina com a rua Líbero Badaró, em São Paulo. Trata-se de uma tomada de 1900. A imagem está dividida em três planos. No primeiro temos os trilhos, em fase de assentamento, que ocupam metade da cena. São os objetos privilegiados de documentação. Entretanto, os trilhos são linhas vigorosas que se abrem para os dois lados da imagem, conferindo-lhe um caráter gráfico. No segundo plano, constituindo uma faixa horizontal, temos um aglomerado de pessoas -pode-se supor que se trata de funcionários da Light, de operários e muitos curiosos. O terceiro plano é o cenário no qual se dá o objeto da documentação -os edifícios do entorno e um pedaço de céu. O rigor da composição é admirável. Temos a impressão que não se trata de um registro, mas que a cena foi ensaiada e cada peça da imagem foi ali posta de modo deliberado.

Profunda desolação
Já a fotografia de Malta, que também possui forte caráter gráfico, registra a nova iluminação pública da avenida Delphim Moreira, no Rio. A tomada de Malta é de 1919. Um poste de iluminação divide a imagem em dois lados simétricos que têm como apoio, na faixa superior da imagem, ao fundo, o recorte sinuoso de montanhas com suas diversas nuanças de cinzas. Mas o impacto dessa imagem é o sentimento de profunda desolação que ela suscita. Aqui também temos a sensação de que não se trata de um registro, mas de uma imagem que foi produzida. Isso se deve ao peso do rigor formal da composição. Se estas minhas rápidas indicações conseguirem motivar o leitor a visitar a mostra, estou certo que ainda outros valores, plásticos e temáticos, irá descobrir nessas duas fotografias. Entretanto, não representam o tratamento característico que tanto um quanto outro fotógrafo conferem às suas vistas. São exceções. Ao menos dentro da coleção apresentada pela mostra.
Vou me deter em duas fotos de cada fotógrafo e convido o leitor, agora, a confrontar a minha breve análise com as imagens reproduzidas acima, pois podem ser tidas como uma referência da produção de cada um deles.
A tônica da construção da imagem de Augusto Malta repousa no arabesco, nas linhas curvas que se entrecruzam. Para tanto, serve-se das calçadas, dos jardins, do recorte em curva do horizonte da cidade do Rio de Janeiro por força da geografia montanhosa junto ao mar -o morro da Urca, o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Serra do Carioca. Mas também lida com o jogo de linhas curvas formado pelo limite entre o mar e a praia como, por exemplo, a enseada do Botafogo e, em particular, a entrada da Baía da Guanabara. É o que temos na tomada que fez em novembro de 1906 da av. Beira-Mar.
Já em outras ocasiões -não muitas-, comprometido com o esforço de documentação, trabalha com uma rígida perspectiva linear frontal. Mas o apelo da "curva" e do "redondo" é sempre muito forte em suas composições. Assim, mesmo quando recorre às linhas que se afunilam, em um plano frontal, em direção a um ponto de fuga, compõe a outra metade da imagem pelo recorte de uma calçada em curva. A combinação do reto e do curvo resulta em uma imagem harmônica. A faixa branca do céu, horizontal, assegura unidade à imagem. Aí temos a tomada da avenida Central, atual Rio Branco, em direção à praça Mauá, onde vemos à esquerda o Palácio Monroe e ao centro o Teatro Municipal, que estava em fase de construção quando essa tomada foi feita em outubro de 1906.
Embora Gaensly, em São Paulo, tenha também tomado vistas, no geral os seus enquadramentos são mais fechados. Atendem, talvez, de maneira mais direta às expectativas da documentação. Pode-se tomar como exemplo a fotografia do largo de São Bento, feita em 1903. A sua composição se dá pela articulação de três edifícios. São três volumes que "fecham" a imagem, que por sua vez estão "suportados" por duas ruas, uma horizontal e outra vertical, e que "se acomodam" no espaço aberto da praça.
De qualquer modo, parece que Gaensly trabalha sempre com volumes. Enquanto Malta é mais solto, Gaensly é mais contido. Esse traço pode ser visto na fotografia do teatro São José, fachada da rua Formosa, em São Paulo, feita em outubro de 1920. O viaduto ao fundo, do lado direito, é o do Chá. Note-se ainda dois bondes em movimento e em sentidos opostos. De propósito? Quem sabe?
De qualquer modo, o fotógrafo estava a serviço da Light. O movimento conferido aos bondes teria sido intencional ou derivado da placa sensível que exigia longa exposição, e daí o "borrão"? Fica a pergunta. Por outro lado, essa fotografia apresenta um outro traço característico da composição de Gaensly: a tomada do tema segundo um plano oblíquo, de três quartos. A imagem está construída de tal modo que se projeta para um ponto de fuga fora da "janela".
De início documento, pois tal era a finalidade do trabalho de Guilherme Gaensly e Augusto Malta, hoje as fotografias cumprem o papel de memória da paisagem urbana de São Paulo e do Rio. Além disso, possuem valor estético por força do rigoroso tratamento formal que norteou a sua concepção. Os trabalhos de Gaensly e Malta aqui reunidos mostram que por vezes o documento se converte em arte. Quando o olhar do fotógrafo instala o assunto no excepcional.


Victor Knoll é professor de estética da USP.


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