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Fotografias mostram paisagens urbanas
A arte do documento
Guilherme Gaensly e Augusto Malta - Dois Mestres da Fotografia
Brasileira no Acervo Brascan
Catálogo da mostra (até 06/04/03)
Curadoria: Instituto Moreira Salles
Onde encontrar: Centro Cultural do
IMS/SP (Tel. 0/xx/11/3825-2560)
44 págs., R$ 8,00
VICTOR KNOLL
Em abril de 1899, um grupo de
investidores constituiu em Toronto a empresa The São Paulo
Railway, Light and Power Company, tendo em vista implantar na
Paulicéia o transporte público por
tração elétrica -cujos veículos já
eram chamados de "bondes"
quando ainda movidos a tração
animal-, e proceder à geração e
distribuição de energia elétrica
para a cidade.
Ao lado das primeiras providências para a instalação da infra-estrutura do projeto, constava a
contratação de um fotógrafo que
acompanhasse e documentasse a
execução das obras. Tal tarefa foi
confiada a Guilherme Gaensly,
suíço que ainda criança imigrou
para o Brasil com a família e,
quando adulto, em 1871, abriu um
estúdio fotográfico em Salvador.
A atividade de Gaesnly prosperou
de tal maneira que em 1894 abriu
uma filial de seu estúdio em São
Paulo, à rua 15 de Novembro, 28.
Permaneceu como fotógrafo da
Light até 1925, três anos antes de
sua morte.
Em virtude do êxito da Light em
São Paulo, o mesmo grupo de investidores criou, em 1905, na então capital do país, a The Rio de
Janeiro Tramway, Light and Power Company e de imediato contratou o fotógrafo, talvez de maior
prestígio, Augusto Cezar de Malta
Campos, a fim de documentar os
canteiros de obras, as oficinas e a
construção das usinas.
Entretanto, os dois fotógrafos se
entregaram ao registro não apenas dos trabalhos de engenharia,
mas também voltaram suas câmaras para a tomada de vistas da
cidade. Tinha assim origem uma
rica documentação das paisagens
urbanas de São Paulo e Rio de Janeiro.
A coleção de imagens apresentadas na mostra atual cobre o período de 1900 a 1921. Todavia,
mais da metade das fotografias foi
tomada na primeira década do século 20. Mais uma vez estamos
diante de obras que nos obrigam a
refletir sobre as relações entre o
documento e a arte. E, no caso,
por força da passagem do tempo,
a mutação do documento em memória.
De fato, como já foi dito, a finalidade para a qual Gaensly e Malta
foram contratados era a de documentar a implantação dos trilhos
das linhas de bonde elétrico, a infra-estrutura para iluminação pública, a construção das primeiras
barragens e outras atividades da
empresa de força e luz. Entretanto, hoje, ao voltarmos o nosso
olhar para essas imagens, estabelecemos uma relação com obras
de arte. A passagem do documento à arte nas fotografias de
Gaensly e Malta se aloja no rigor
formal que governou a sua produção.
Chamo a atenção para duas fotografias, uma de Gaensly e outra
de Malta, que possuem um grande poder de impacto, seja pelo
cuidado com o equilíbrio entre os
elementos constitutivos da imagem e também pelo acerto do enquadramento, seja por sua força
temática.
A fotografia de Gaensly registra
a colocação de trilhos na ladeira
São João, esquina com a rua Líbero Badaró, em São Paulo. Trata-se
de uma tomada de 1900. A imagem está dividida em três planos.
No primeiro temos os trilhos, em
fase de assentamento, que ocupam metade da cena. São os objetos privilegiados de documentação. Entretanto, os trilhos são linhas vigorosas que se abrem para
os dois lados da imagem, conferindo-lhe um caráter gráfico. No
segundo plano, constituindo uma
faixa horizontal, temos um aglomerado de pessoas -pode-se supor que se trata de funcionários
da Light, de operários e muitos
curiosos. O terceiro plano é o cenário no qual se dá o objeto da documentação -os edifícios do entorno e um pedaço de céu. O rigor
da composição é admirável. Temos a impressão que não se trata
de um registro, mas que a cena foi
ensaiada e cada peça da imagem
foi ali posta de modo deliberado.
Profunda desolação
Já a fotografia de Malta, que
também possui forte caráter gráfico, registra a nova iluminação
pública da avenida Delphim Moreira, no Rio. A tomada de Malta é
de 1919. Um poste de iluminação
divide a imagem em dois lados simétricos que têm como apoio, na
faixa superior da imagem, ao fundo, o recorte sinuoso de montanhas com suas diversas nuanças
de cinzas. Mas o impacto dessa
imagem é o sentimento de profunda desolação que ela suscita.
Aqui também temos a sensação
de que não se trata de um registro,
mas de uma imagem que foi produzida. Isso se deve ao peso do rigor formal da composição. Se estas minhas rápidas indicações
conseguirem motivar o leitor a visitar a mostra, estou certo que
ainda outros valores, plásticos e
temáticos, irá descobrir nessas
duas fotografias. Entretanto, não
representam o tratamento característico que tanto um quanto outro fotógrafo conferem às suas
vistas. São exceções. Ao menos
dentro da coleção apresentada
pela mostra.
Vou me deter em duas fotos de
cada fotógrafo e convido o leitor,
agora, a confrontar a minha breve
análise com as imagens reproduzidas acima, pois podem ser tidas
como uma referência da produção de cada um deles.
A tônica da construção da imagem de Augusto Malta repousa
no arabesco, nas linhas curvas
que se entrecruzam. Para tanto,
serve-se das calçadas, dos jardins,
do recorte em curva do horizonte
da cidade do Rio de Janeiro por
força da geografia montanhosa
junto ao mar -o morro da Urca,
o Pão de Açúcar, o Corcovado, a
Serra do Carioca. Mas também lida com o jogo de linhas curvas
formado pelo limite entre o mar e
a praia como, por exemplo, a enseada do Botafogo e, em particular, a entrada da Baía da Guanabara. É o que temos na tomada que
fez em novembro de 1906 da av.
Beira-Mar.
Já em outras ocasiões -não
muitas-, comprometido com o
esforço de documentação, trabalha com uma rígida perspectiva linear frontal. Mas o apelo da "curva" e do "redondo" é sempre
muito forte em suas composições.
Assim, mesmo quando recorre às
linhas que se afunilam, em um
plano frontal, em direção a um
ponto de fuga, compõe a outra
metade da imagem pelo recorte
de uma calçada em curva. A combinação do reto e do curvo resulta
em uma imagem harmônica. A
faixa branca do céu, horizontal,
assegura unidade à imagem. Aí
temos a tomada da avenida Central, atual Rio Branco, em direção
à praça Mauá, onde vemos à esquerda o Palácio Monroe e ao
centro o Teatro Municipal, que
estava em fase de construção
quando essa tomada foi feita em
outubro de 1906.
Embora Gaensly, em São Paulo,
tenha também tomado vistas, no
geral os seus enquadramentos são
mais fechados. Atendem, talvez,
de maneira mais direta às expectativas da documentação. Pode-se
tomar como exemplo a fotografia
do largo de São Bento, feita em
1903. A sua composição se dá pela
articulação de três edifícios. São
três volumes que "fecham" a imagem, que por sua vez estão "suportados" por duas ruas, uma horizontal e outra vertical, e que "se
acomodam" no espaço aberto da
praça.
De qualquer modo, parece que
Gaensly trabalha sempre com volumes. Enquanto Malta é mais
solto, Gaensly é mais contido. Esse traço pode ser visto na fotografia do teatro São José, fachada da
rua Formosa, em São Paulo, feita
em outubro de 1920. O viaduto ao
fundo, do lado direito, é o do Chá.
Note-se ainda dois bondes em
movimento e em sentidos opostos. De propósito? Quem sabe?
De qualquer modo, o fotógrafo
estava a serviço da Light. O movimento conferido aos bondes teria
sido intencional ou derivado da
placa sensível que exigia longa exposição, e daí o "borrão"? Fica a
pergunta. Por outro lado, essa fotografia apresenta um outro traço
característico da composição de
Gaensly: a tomada do tema segundo um plano oblíquo, de três
quartos. A imagem está construída de tal modo que se projeta para
um ponto de fuga fora da "janela".
De início documento, pois tal
era a finalidade do trabalho de
Guilherme Gaensly e Augusto
Malta, hoje as fotografias cumprem o papel de memória da paisagem urbana de São Paulo e do
Rio. Além disso, possuem valor
estético por força do rigoroso tratamento formal que norteou a sua
concepção. Os trabalhos de
Gaensly e Malta aqui reunidos
mostram que por vezes o documento se converte em arte. Quando o olhar do fotógrafo instala o
assunto no excepcional.
Victor Knoll é professor de estética da
USP.
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