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São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

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A casa carioca

Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca
Américo Feire e Lucia Lippi Oliveira (orgs.)
Edições Folha Seca (Tel.0/xx/21/2224-8721)
233 págs., R$ 35,00

SILVANA RUBINO

O mapeamento do espaço urbano é realizado por seus usuários no corpo-a-corpo do cotidiano: viadutos conduzem a áreas distantes de automóvel ou criam zonas inóspitas para pedestres; edifícios admirados ou ignorados permanecem ou desaparecem; áreas "marginais" são objeto de ação diversa, favelas são removidas, casarios são recuperados. Transformações que, longe de serem aleatórias, são reveladoras das lógicas conflitivas que dão forma às cidades, dos processos de urbanização.
Mas isso não é tudo. O urbanismo -ensinou Françoise Choay há algumas décadas- é distinto da urbanização. Se esta crava no espaço todos os impasses sociais, "urbanisme", termo cunhado em 1911 em francês, é uma disciplina com pretensões científicas e terapêuticas, que se desdobra em teoria e ações. No Brasil, ainda que tenha sido tardia a implantação da disciplina nos cursos de arquitetura, nossas cidades foram palco de experimentações e planos diversos.
A gênese e os desdobramentos desse campo do conhecimento no Rio de Janeiro no século 20, por meio de depoimentos de participantes, aprendizes e espectadores: este é o objetivo desse livro, produto da atividade diligente do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, que traz um tema de extrema relevância e atualidade intelectual e política.
Por sua abrangência e variedade dos depoimentos, o livro pode receber leituras diversas e suscitar questões de ordem variada, revelando zonas à espera de investigação. Uma delas seria o papel das mulheres no debate urbanístico, nos bastidores das realizações, e a influência de um feminismo à soviética em alguns projetos. Não por acaso, é evidente o número de menções à engenheira Carmen Portinho, que no pós-guerra foi diretora do departamento de habitação popular da Prefeitura do Rio.
Os relatos, intencionalmente ou não, também lançam luz sobre os conflitos internos da chamada escola carioca, especialmente a partir do destaque obtido por Oscar Niemeyer. Temos ainda um único depoimento que traz a discussão sobre o patrimônio histórico no Rio e os planos contemporâneos de revitalização -e o tema "patrimônio" surge tão de contrabando como sempre esteve no planejamento, desde a "Carta de Atenas", documento de princípios do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (1933), tão lida no Brasil. Outro aspecto interessante é a ausência presente de Lúcio Costa. À exceção do depoimento sobre o plano para a Barra da Tijuca, são outros os personagens lembrados, mas Costa está presente nas entrelinhas de quase todos os depoimentos.
As questões são de ordem diversa, mas gostaria de concentrar a apresentação do livro mantendo o foco em um tema recorrente nos diversos depoimentos e que talvez -junto com a circulação de pessoas, veículos e fluidos- tenha sido o grande tema do urbanismo do século 20: a habitação.
O livro se abre com depoimentos sobre Affonso Eduardo Reidy, autor do projeto do emblemático conjunto residencial conhecido como Pedregulho. O leitor que assistiu "Central do Brasil", de Walter Salles Jr., lembra-se das cenas da captura do garoto Josué em meio à serpenteante rua interna desse edifício, em que a dramaticidade era acentuada pela luz intermitente dos blocos vazados e por sua explícita decadência. Assim como o filme e seus personagens, a história-memória do urbanismo carioca inicia seu drama nesse edifício-manifesto e chega ao conjunto habitacional com casinhas idênticas a perder de vista, carentes de projeto e excessivas em seus determinantes políticos imediatos.
Casinhas idênticas ao início do outro sucesso do cinema nacional, "Cidade de Deus", em que os meninos ensaiam sua sociabilidade fundadora em meio a um conjunto habitacional monótono, regular e a léguas da urbanidade, antes de tornar-se um espaço sitiado.
Os depoimentos versam sobre Reidy e o emblemático Pedregulho, mas também sobre conjuntos que trouxeram populações removidas, como a da Vila Kennedy, do mesmo período e conduzido pela mesma política pública de Carlos Lacerda. O primeiro é lembrado pela depoente Sandra Cavalcanti -memória vivida pela direita, um dos depoimentos mais impressionantes do conjunto- como um acerto e o segundo, desviado de seus objetivos originais, como um equívoco que perdeu o controle.
E dos conjuntos passamos às favelas que foram objeto de estudos sociológicos e antropológicos até o recente favela-bairro. Diversos depoimentos vinculam a origem desta política de Luis Paulo Conde a realizações de 30 anos atrás, seja às intervenções do período Lacerda, ou a toda escola de urbanismo antropológico de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, na qual destaca-se a urbanização da favela Brás de Pina, com participação da população residente.
Ainda que os relatos enfatizem a aversão de Carlos Nelson a influências intelectuais como Manuel Castells, essa "antropologização" do debate urbanístico também não é prerrogativa nossa, pois começou a se delinear nos Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna (CIAM) do pós-guerra, tendo atingido seu ápice, inclusive em popularidade, em 1961, com a publicação do livro "Morte e Vida nas Grandes Cidades", da jornalista canadense Jane Jacobs. Este sim, objeto de admiração do arquiteto-antropólogo, aluno de Anthony Leeds e orientando de Gilberto Velho.
Como os depoimentos não falam em uníssono, mesclando pontos de vista que por geração, profissão ou filiação política e estética são conflitantes, temos como resultado não uma genealogia de soluções, mas de problemas que, uma vez que não foram sequer de longe resolvidos no Brasil, merecem essa reflexão.
Se o leitor, como usuário do espaço urbano, ganha muito ao identificar as razões dos marcos e obstáculos que pontuam seu cotidiano, o leitor estudioso do tema passa a querer mais e mais: que o CPDOC (ou outro centro de pesquisa) recolha mais memórias das nossas cidades: de Palmas a Ouro Preto, do Padre Lebret a Jaime Lerner, há muito que se ouvir e indagar.


Silvana Rubino é antropóloga, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica (Campinas).


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