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A casa carioca
Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca
Américo Feire e Lucia Lippi Oliveira (orgs.)
Edições Folha Seca (Tel.0/xx/21/2224-8721)
233 págs., R$ 35,00
SILVANA RUBINO
O mapeamento do espaço urbano é realizado por seus usuários no corpo-a-corpo do cotidiano: viadutos conduzem a áreas
distantes de automóvel ou criam zonas inóspitas para pedestres; edifícios admirados ou ignorados permanecem ou desaparecem; áreas "marginais" são objeto de ação diversa, favelas são
removidas, casarios são recuperados. Transformações que, longe de serem aleatórias, são reveladoras das lógicas conflitivas
que dão forma às cidades, dos processos de urbanização.
Mas isso não é tudo. O urbanismo -ensinou Françoise
Choay há algumas décadas- é distinto da urbanização. Se esta
crava no espaço todos os impasses sociais, "urbanisme", termo
cunhado em 1911 em francês, é uma disciplina com pretensões
científicas e terapêuticas, que se desdobra em teoria e ações. No
Brasil, ainda que tenha sido tardia a implantação da disciplina
nos cursos de arquitetura, nossas cidades foram palco de experimentações e planos diversos.
A gênese e os desdobramentos desse campo do conhecimento no Rio de Janeiro no século 20, por meio de depoimentos de
participantes, aprendizes e espectadores: este é o objetivo desse
livro, produto da atividade diligente do Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, que traz um tema de extrema relevância e
atualidade intelectual e política.
Por sua abrangência e variedade dos depoimentos, o livro pode receber leituras diversas e suscitar questões de ordem variada, revelando zonas à espera de investigação. Uma delas seria o
papel das mulheres no debate urbanístico, nos bastidores das
realizações, e a influência de um feminismo à soviética em alguns projetos. Não por acaso, é evidente o número de menções
à engenheira Carmen Portinho, que no pós-guerra foi diretora
do departamento de habitação popular da Prefeitura do Rio.
Os relatos, intencionalmente ou não, também lançam luz sobre os conflitos internos da chamada escola carioca, especialmente a partir do destaque obtido por Oscar Niemeyer. Temos
ainda um único depoimento que traz a discussão sobre o patrimônio histórico no Rio e os planos contemporâneos de revitalização -e o tema "patrimônio" surge tão de contrabando como
sempre esteve no planejamento, desde a "Carta de Atenas", documento de princípios do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (1933), tão lida no Brasil. Outro aspecto interessante é a ausência presente de Lúcio Costa. À exceção do depoimento sobre o plano para a Barra da Tijuca, são outros os personagens lembrados, mas Costa está presente nas entrelinhas
de quase todos os depoimentos.
As questões são de ordem diversa, mas gostaria de concentrar
a apresentação do livro mantendo o foco em um tema recorrente nos diversos depoimentos e que talvez -junto com a circulação de pessoas, veículos e fluidos- tenha sido o grande tema
do urbanismo do século 20: a habitação.
O livro se abre com depoimentos sobre Affonso Eduardo
Reidy, autor do projeto do emblemático conjunto residencial
conhecido como Pedregulho. O leitor que assistiu "Central do
Brasil", de Walter Salles Jr., lembra-se das cenas da captura do
garoto Josué em meio à serpenteante rua interna desse edifício,
em que a dramaticidade era acentuada pela luz intermitente
dos blocos vazados e por sua explícita decadência. Assim como
o filme e seus personagens, a história-memória do urbanismo
carioca inicia seu drama nesse edifício-manifesto e chega ao
conjunto habitacional com casinhas idênticas a perder de vista,
carentes de projeto e excessivas em seus determinantes políticos imediatos.
Casinhas idênticas ao início do outro sucesso do cinema nacional, "Cidade de Deus", em que os meninos ensaiam sua sociabilidade fundadora em meio a um conjunto habitacional
monótono, regular e a léguas da urbanidade, antes de tornar-se
um espaço sitiado.
Os depoimentos versam sobre Reidy e o emblemático Pedregulho, mas também sobre conjuntos que trouxeram populações removidas, como a da Vila Kennedy, do mesmo período e
conduzido pela mesma política pública de Carlos Lacerda. O
primeiro é lembrado pela depoente Sandra Cavalcanti -memória vivida pela direita, um dos depoimentos mais impressionantes do conjunto- como um acerto e o segundo, desviado
de seus objetivos originais, como um equívoco que perdeu o
controle.
E dos conjuntos passamos às favelas que foram objeto de estudos sociológicos e antropológicos até o recente favela-bairro.
Diversos depoimentos vinculam a origem desta política de Luis
Paulo Conde a realizações de 30 anos atrás, seja às intervenções
do período Lacerda, ou a toda escola de urbanismo antropológico de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, na qual destaca-se a
urbanização da favela Brás de Pina, com participação da população residente.
Ainda que os relatos enfatizem a aversão de Carlos Nelson a
influências intelectuais como Manuel Castells, essa "antropologização" do debate urbanístico também não é prerrogativa nossa, pois começou a se delinear nos Congressos Internacionais
da Arquitetura Moderna (CIAM) do pós-guerra, tendo atingido seu ápice, inclusive em popularidade, em 1961, com a publicação do livro "Morte e Vida nas Grandes Cidades", da jornalista canadense Jane Jacobs. Este sim, objeto de admiração do arquiteto-antropólogo, aluno de Anthony Leeds e orientando de
Gilberto Velho.
Como os depoimentos não falam em uníssono, mesclando
pontos de vista que por geração, profissão ou filiação política e
estética são conflitantes, temos como resultado não uma genealogia de soluções, mas de problemas que, uma vez que não foram sequer de longe resolvidos no Brasil, merecem essa reflexão.
Se o leitor, como usuário do espaço urbano, ganha muito ao
identificar as razões dos marcos e obstáculos que pontuam seu
cotidiano, o leitor estudioso do tema passa a querer mais e mais:
que o CPDOC (ou outro centro de pesquisa) recolha mais memórias das nossas cidades: de Palmas a Ouro Preto, do Padre
Lebret a Jaime Lerner, há muito que se ouvir e indagar.
Silvana Rubino é antropóloga, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica (Campinas).
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