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Ameaçada
Susan George desenvolve vários
argumentos importantes sobre a
"manutenção do capitalismo no
século 21". Analisa tanto problemas demográficos como relativos
ao emprego e desemprego de trabalhadores; o comércio de armas,
a guerra das drogas e a violência; a
ecologia, a escassez de água, a destruição de recursos naturais;
doenças, compreendendo doenças "antigas" e "exóticas"; as corporações transnacionais e as organizações multilaterais; passando
pela produção científica e tecnológica.
Todos esses e outros problemas
são vistos com base na "teoria sistêmica", na visão sistêmica do
mundo. São problemas mais ou
menos graves, mas que se resolveriam no âmbito do sistema, da ordem econômico-social prevalecente, isto é, do sistema capitalista
globalizado. Esse sistema é tomado como presente, consistente e
permanente; ainda que sujeito a
ameaças, perigos e obstáculos,
mas dispondo de meios para reduzi-los ou eliminá-los. O "sistema de mercado", o "nosso sistema
econômico", é dotado de "entropia", de uma dinâmica interna articulada em termos de "input-output-feedback", de tal modo que se
auto-reproduz, absorvendo desequilíbrios internos e integrando
ou anulando desafios externos.
"A economia é, acima de tudo,
um sistema que transforma a
energia e os materiais, que entram, nos bens e serviços, que
saem, descarregando o lixo, a poluição e o calor (entropia), engendrados por esse processo, na biosfera. Em outros termos, a economia é um sistema aberto funcionando em um sistema fechado.
(...) O crescimento e a eficiência
capitalista são primários; todos os
outros valores devem ser sacrificados a eles. A competição no mercado (por empregos, por fatias de
mercado, pelos lucros "inter alia")
resultarão em eficiência ótima,
pois o mercado é o melhor alocador de todos os recursos, sejam
eles naturais, manufaturados, financeiros ou humanos. Os mercados são capazes de auto-regulamentação e não devem sofrer interferência."
Desafios e tensões
Mas a análise interna da "economia de mercado", do "sistema
liberal globalizado", não consegue
exorcizar as ameaças, perigos e
obstáculos demográficos, ecológicos, tecnológicos, financeiros, beligerantes, sociais, culturais, ideológicos e outros. Ainda que se empenhe em focalizar esses problemas como disfunções, anomalias
ou desequilíbrios do sistema, e
suscetíveis de integração, ainda
assim subsistem como desafios,
tensões, irrupções ou rupturas.
"As agudas divisões sociais e a
"luta de classes", termo que talvez
os marxistas continuem a utilizar,
constituem uma verdadeira ameaça. Além de representarem um
obstáculo, as disparidades são
também perigosas para o sistema
e devem ser monitorizadas com
cuidado. (...) O século 21 terá pela
frente a difícil tarefa de encontrar
um equilíbrio entre a preservação
da liberdade de mercado e o controle do efeito social colateral que
essa liberdade não apóia, mas engendra. (...) O sistema econômico
mundial está ameaçado de todos
os lados. Isso poderia levar o sistema, em seu conjunto, a atingir um
estado crítico, o que provocaria
uma reação em cadeia, culminando talvez em um desastre mundial."
Diante das "disfunções" que se
manifestam contínua e reiteradamente na "nova ordem econômica mundial", as elites governantes,
as classes dominantes e os seus
ideólogos são obrigados a constatar que a "nova economia", simultaneamente eletrônica-informática-cibernética-sistêmica, também
desaba. Repetem-se os impasses,
as distorções e as crises, pondo em
causa a economia política da "aldeia global".
Esse o contexto em que alguns
retornam à teoria, prática e ideologia do keynesianismo, agora neokeynesianismo.
O neoliberalismo desesperado já
se empenha em criar o "neokeynesianismo", assim como no passado o liberalismo criou o keynesianismo. Diante da grande crise
econômica iniciada em 1929, já no
âmbito dos problemas originários
da Primeira Guerra Mundial
(1914-18) e suas consequências, o
liberalismo abriu espaços para o
keynesianismo, como técnica anticíclica. Nos inícios do século 21,
diante dos graves problemas econômico-financeiros, sociais e políticos com os quais se defronta a
nova economia do globalismo, o
neoliberalismo empenha-se em
criar o neokeynesianismo; retomar a interferência mais direta
dos aparelhos estatais para reduzir
as distorções ou disfunções, administrar os impactos das crises, aparelhar-se para fazer face aos caos
sempre à espreita nos jogos das
"forças do mercado", na dinâmica
da reprodução ampliada do capital.
Mesmo assim, no entanto, repetem-se e generalizam-se as "disfunções". O "mercado", isto é, o
"sistema liberal globalizado", continua problemático, sujeito a crises e rupturas, germinando inclusive a guerra como técnica anticíclica, destinada a reanimar a economia política do capitalismo.
Amplos setores da sociedade civil,
nacional e mundial, estão inquietos, organizando-se e movendo-se
contra a globalização pelo alto,
empenhados em uma globalização desde baixo, segundo as reivindicações dos setores sociais,
grupos e classes subalternos, em
todo o mundo.
Nesse ponto, pode ser útil relembrar que o neoliberalismo deve ser
visto como a teoria, prática e ideologia do globalismo; assim como o
liberalismo foi teoria, prática e
ideologia do nacionalismo. O liberalismo nasce com a formação da
economia nacional assim como o
neoliberalismo nasce com a formação da economia global. Nesse
sentido é que o neoliberalismo articula as linhas mestras do novo ciclo de globalização do capitalismo,
equacionando as economias nacionais como elos, segmentos ou,
mais propriamente, províncias do
capitalismo global.
Reforma do Estado
Esse o contexto em que o neoliberalismo preconiza e impõe a
"reforma do Estado", com a qual
se promove o desmonte de projetos nacionais e de Estados do
Bem-Estar Social; promovendo-se
a privatização de empresas produtivas estatais, de segmentos dos
sistemas de ensino, saúde e previdência; realizando-se a ampla
abertura de mercados; e concretizando-se a transformação dos
aparelhos estatais em aparelhos
administrativos das classes dominantes transnacionais, dos blocos
mundiais de poder. É no contexto
do novo ciclo de globalização do
capitalismo que as corporações
transnacionais adquirem toda a
força e expansividade de poderosas estruturas mundiais de poder,
que influenciam mais ou menos
decisivamente diretrizes das organizações multilaterais e dos Estados nacionais.
Juntamente com a "reforma do
Estado", tanto se desmontam o
projeto nacional e o Estado de
Bem-Estar social como se promove a dissociação entre o Estado e a
sociedade civil, o que coloca amplos setores sociais diante do desafio de tomar consciência da situação, organizar-se politicamente e
mover-se em reivindicações e lutas, de modo a reavivar a sociedade civil e caminhar no sentido de
"educar duramente o Estado". Esse pode ser um capítulo importante das lutas que já se iniciaram no
sentido de promover a globalização desde baixo, em direção ao
neo-socialismo.
Essa é a realidade, quando se tomam em conta as condições e implicações sociais, políticas e culturais da economia política do globalismo: pouco a pouco, ou de repente, irrompem tensões e contradições, surpreendentes e avassaladoras, que não cabem nem nas soluções do neoliberalismo nem nas
do neokeynesianismo. A visão sistêmica do capitalismo, como um
todo que se auto-reproduz em termos de "input-output-feedback",
como em um "fluxo de energia,
efetivo ou potencial, e de entropia", não resiste à riqueza, complexidade e, muitas vezes, explosividade, dos nexos, tensões e contradições germinadas na realidade, na trama das relações sociais,
nos jogos das forças sociais, em
âmbitos nacional e mundial.
Visto assim, conforme aparece
no livro de Susan George, o capitalismo se revela um vasto e complexo edifício, germinando todo o
tempo forças de integração e fragmentação ou de organização e implosão. É como se fosse uma vasta
e complexa configuração histórico-social que não cabe nunca no
conceito de "sistema", de "todo
sistêmico", suscetível de equilíbrio, funcionalidade, normalidade, continuidade, eternidade. Ao
contrário, trata-se de uma totalidade histórico-social aberta, em
movimento, na qual germinam
contínua e reiteradamente tensões
e contradições, guerras e revoluções; com as quais se prenunciam
o declínio do capitalismo e o florescimento do socialismo; o socialismo como desenvolvimento necessário dos nexos e tensões, criações e contradições, com os quais
se forma, conforma e transforma
o capitalismo.
Vale a pena olhar este livro outra
vez, de uma perspectiva crítica diferente, como uma narrativa simultaneamente científica e literária, rigorosa e imaginosa. Nesse
caso, ele se revela uma obra de explicação e ficção. Faz com que o
leitor solte a imaginação, refletindo sobre o dado e o significado, a
realidade e o imaginário, o dito e a
desdita.
Visto nessa entonação, podem-se distinguir nele três dimensões
particularmente notáveis. Primeiro, trata-se de um diagnóstico da
economia política do neoliberalismo, conforme ela se expressa no
"sistema liberal globalizado". Segundo, partindo desse diagnóstico, trata-se de uma tentativa não
só empenhada mas também desesperada de alertar o neoliberalismo sobre o vulcão no qual ele se
encontra, com o qual certamente
floresce, convulsiona e fenece.
Terceiro, tendo-se em conta a gravidade e urgência dos problemas
focalizados, desde a expansão do
capitalismo globalizado até a reprodução de bilhões de seres humanos tornados dispensáveis, supérfluos, descartáveis pelo "sistema", trata-se de uma sátira fina e
impiedosa, na qual "verdades
sombrias" mesclam-se com uma
"ironia corrosiva".
Octavio Ianni é sociólogo e autor, entre
outros livros, de "Enigmas da Modernidade-Mundo" (Civilização Brasileira).
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