São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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Ameaçada

Susan George desenvolve vários argumentos importantes sobre a "manutenção do capitalismo no século 21". Analisa tanto problemas demográficos como relativos ao emprego e desemprego de trabalhadores; o comércio de armas, a guerra das drogas e a violência; a ecologia, a escassez de água, a destruição de recursos naturais; doenças, compreendendo doenças "antigas" e "exóticas"; as corporações transnacionais e as organizações multilaterais; passando pela produção científica e tecnológica.
Todos esses e outros problemas são vistos com base na "teoria sistêmica", na visão sistêmica do mundo. São problemas mais ou menos graves, mas que se resolveriam no âmbito do sistema, da ordem econômico-social prevalecente, isto é, do sistema capitalista globalizado. Esse sistema é tomado como presente, consistente e permanente; ainda que sujeito a ameaças, perigos e obstáculos, mas dispondo de meios para reduzi-los ou eliminá-los. O "sistema de mercado", o "nosso sistema econômico", é dotado de "entropia", de uma dinâmica interna articulada em termos de "input-output-feedback", de tal modo que se auto-reproduz, absorvendo desequilíbrios internos e integrando ou anulando desafios externos.
"A economia é, acima de tudo, um sistema que transforma a energia e os materiais, que entram, nos bens e serviços, que saem, descarregando o lixo, a poluição e o calor (entropia), engendrados por esse processo, na biosfera. Em outros termos, a economia é um sistema aberto funcionando em um sistema fechado. (...) O crescimento e a eficiência capitalista são primários; todos os outros valores devem ser sacrificados a eles. A competição no mercado (por empregos, por fatias de mercado, pelos lucros "inter alia") resultarão em eficiência ótima, pois o mercado é o melhor alocador de todos os recursos, sejam eles naturais, manufaturados, financeiros ou humanos. Os mercados são capazes de auto-regulamentação e não devem sofrer interferência."

Desafios e tensões
Mas a análise interna da "economia de mercado", do "sistema liberal globalizado", não consegue exorcizar as ameaças, perigos e obstáculos demográficos, ecológicos, tecnológicos, financeiros, beligerantes, sociais, culturais, ideológicos e outros. Ainda que se empenhe em focalizar esses problemas como disfunções, anomalias ou desequilíbrios do sistema, e suscetíveis de integração, ainda assim subsistem como desafios, tensões, irrupções ou rupturas.
"As agudas divisões sociais e a "luta de classes", termo que talvez os marxistas continuem a utilizar, constituem uma verdadeira ameaça. Além de representarem um obstáculo, as disparidades são também perigosas para o sistema e devem ser monitorizadas com cuidado. (...) O século 21 terá pela frente a difícil tarefa de encontrar um equilíbrio entre a preservação da liberdade de mercado e o controle do efeito social colateral que essa liberdade não apóia, mas engendra. (...) O sistema econômico mundial está ameaçado de todos os lados. Isso poderia levar o sistema, em seu conjunto, a atingir um estado crítico, o que provocaria uma reação em cadeia, culminando talvez em um desastre mundial."
Diante das "disfunções" que se manifestam contínua e reiteradamente na "nova ordem econômica mundial", as elites governantes, as classes dominantes e os seus ideólogos são obrigados a constatar que a "nova economia", simultaneamente eletrônica-informática-cibernética-sistêmica, também desaba. Repetem-se os impasses, as distorções e as crises, pondo em causa a economia política da "aldeia global".
Esse o contexto em que alguns retornam à teoria, prática e ideologia do keynesianismo, agora neokeynesianismo.
O neoliberalismo desesperado já se empenha em criar o "neokeynesianismo", assim como no passado o liberalismo criou o keynesianismo. Diante da grande crise econômica iniciada em 1929, já no âmbito dos problemas originários da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e suas consequências, o liberalismo abriu espaços para o keynesianismo, como técnica anticíclica. Nos inícios do século 21, diante dos graves problemas econômico-financeiros, sociais e políticos com os quais se defronta a nova economia do globalismo, o neoliberalismo empenha-se em criar o neokeynesianismo; retomar a interferência mais direta dos aparelhos estatais para reduzir as distorções ou disfunções, administrar os impactos das crises, aparelhar-se para fazer face aos caos sempre à espreita nos jogos das "forças do mercado", na dinâmica da reprodução ampliada do capital.
Mesmo assim, no entanto, repetem-se e generalizam-se as "disfunções". O "mercado", isto é, o "sistema liberal globalizado", continua problemático, sujeito a crises e rupturas, germinando inclusive a guerra como técnica anticíclica, destinada a reanimar a economia política do capitalismo. Amplos setores da sociedade civil, nacional e mundial, estão inquietos, organizando-se e movendo-se contra a globalização pelo alto, empenhados em uma globalização desde baixo, segundo as reivindicações dos setores sociais, grupos e classes subalternos, em todo o mundo.
Nesse ponto, pode ser útil relembrar que o neoliberalismo deve ser visto como a teoria, prática e ideologia do globalismo; assim como o liberalismo foi teoria, prática e ideologia do nacionalismo. O liberalismo nasce com a formação da economia nacional assim como o neoliberalismo nasce com a formação da economia global. Nesse sentido é que o neoliberalismo articula as linhas mestras do novo ciclo de globalização do capitalismo, equacionando as economias nacionais como elos, segmentos ou, mais propriamente, províncias do capitalismo global.

Reforma do Estado
Esse o contexto em que o neoliberalismo preconiza e impõe a "reforma do Estado", com a qual se promove o desmonte de projetos nacionais e de Estados do Bem-Estar Social; promovendo-se a privatização de empresas produtivas estatais, de segmentos dos sistemas de ensino, saúde e previdência; realizando-se a ampla abertura de mercados; e concretizando-se a transformação dos aparelhos estatais em aparelhos administrativos das classes dominantes transnacionais, dos blocos mundiais de poder. É no contexto do novo ciclo de globalização do capitalismo que as corporações transnacionais adquirem toda a força e expansividade de poderosas estruturas mundiais de poder, que influenciam mais ou menos decisivamente diretrizes das organizações multilaterais e dos Estados nacionais.
Juntamente com a "reforma do Estado", tanto se desmontam o projeto nacional e o Estado de Bem-Estar social como se promove a dissociação entre o Estado e a sociedade civil, o que coloca amplos setores sociais diante do desafio de tomar consciência da situação, organizar-se politicamente e mover-se em reivindicações e lutas, de modo a reavivar a sociedade civil e caminhar no sentido de "educar duramente o Estado". Esse pode ser um capítulo importante das lutas que já se iniciaram no sentido de promover a globalização desde baixo, em direção ao neo-socialismo.
Essa é a realidade, quando se tomam em conta as condições e implicações sociais, políticas e culturais da economia política do globalismo: pouco a pouco, ou de repente, irrompem tensões e contradições, surpreendentes e avassaladoras, que não cabem nem nas soluções do neoliberalismo nem nas do neokeynesianismo. A visão sistêmica do capitalismo, como um todo que se auto-reproduz em termos de "input-output-feedback", como em um "fluxo de energia, efetivo ou potencial, e de entropia", não resiste à riqueza, complexidade e, muitas vezes, explosividade, dos nexos, tensões e contradições germinadas na realidade, na trama das relações sociais, nos jogos das forças sociais, em âmbitos nacional e mundial.
Visto assim, conforme aparece no livro de Susan George, o capitalismo se revela um vasto e complexo edifício, germinando todo o tempo forças de integração e fragmentação ou de organização e implosão. É como se fosse uma vasta e complexa configuração histórico-social que não cabe nunca no conceito de "sistema", de "todo sistêmico", suscetível de equilíbrio, funcionalidade, normalidade, continuidade, eternidade. Ao contrário, trata-se de uma totalidade histórico-social aberta, em movimento, na qual germinam contínua e reiteradamente tensões e contradições, guerras e revoluções; com as quais se prenunciam o declínio do capitalismo e o florescimento do socialismo; o socialismo como desenvolvimento necessário dos nexos e tensões, criações e contradições, com os quais se forma, conforma e transforma o capitalismo.
Vale a pena olhar este livro outra vez, de uma perspectiva crítica diferente, como uma narrativa simultaneamente científica e literária, rigorosa e imaginosa. Nesse caso, ele se revela uma obra de explicação e ficção. Faz com que o leitor solte a imaginação, refletindo sobre o dado e o significado, a realidade e o imaginário, o dito e a desdita.
Visto nessa entonação, podem-se distinguir nele três dimensões particularmente notáveis. Primeiro, trata-se de um diagnóstico da economia política do neoliberalismo, conforme ela se expressa no "sistema liberal globalizado". Segundo, partindo desse diagnóstico, trata-se de uma tentativa não só empenhada mas também desesperada de alertar o neoliberalismo sobre o vulcão no qual ele se encontra, com o qual certamente floresce, convulsiona e fenece. Terceiro, tendo-se em conta a gravidade e urgência dos problemas focalizados, desde a expansão do capitalismo globalizado até a reprodução de bilhões de seres humanos tornados dispensáveis, supérfluos, descartáveis pelo "sistema", trata-se de uma sátira fina e impiedosa, na qual "verdades sombrias" mesclam-se com uma "ironia corrosiva".


Octavio Ianni é sociólogo e autor, entre outros livros, de "Enigmas da Modernidade-Mundo" (Civilização Brasileira).



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