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Casa e cidade
Um mestre da moderna arquitetura brasileira
Rino Levi - Arquitetura e Cidade
Pesquisa e textos: Renato Anelli
Coordenação editorial: Abilio Guerra
Ensaio fotográfico: Nelson Kon
Romano Guerra Editora
(Tel. 0/xx/11/288-8950)
324 págs., R$ 80,00
JOAQUIM GUEDES
O grande arquiteto brasileiro Rino
Levi nasceu em São Paulo em 1901, de
pais italianos, e formou-se em Roma.
Há 400 publicações dispersas sobre ele,
a maioria estrangeira, número espantoso, sobretudo para quem se manteve
longe da obrigação da pesquisa acadêmica. Existe, completamente esgotado
há anos, o livro "Rino Levi" (Edizioni
di Comunità, Milão, 1974). Mas este é o
primeiro livro no Brasil, publicado 37
anos após sua morte (1965), que organiza (ou desorganiza) as imagens com
todas as repetições, cores e escalas a
que tem direito. Destaco o corajoso
prefácio de Lúcio Gomes Machado.
Rino era discreto. Embora o admirássemos, eu não imaginava que fosse
tão conhecido e respeitado, como ao
ouvir o arquiteto finlandês Heikki Siren dizer em voz baixa, no Rio de Janeiro, em 1963, enquanto Rino falava do
outro lado da mesa: "Ele é um dos
grandes mestres do racionalismo
mundial".
O livro se abre com seis fotos de interiores residenciais, em que Rino Levi
era exímio. Ótimo, porque a casa condensa todos os grandes problemas da
arquitetura, sendo considerada o laboratório por excelência da invenção arquitetônica do século 20 e da investigação dos limites da arte de construir o
espaço humano possível em cada momento e lugar.
Citam-se muitas casas de Alvar Aalto;
a casa da Cascata, de Frank Lloyd
Wright; a Savoye, de Le Corbusier; a
Farnsworth, de Mies van der Rohe;
além das de Jean Prouvé, Marcel
Breuer, Buckminster Fuller, Frank
Gehry etc. Muitas vezes mostrei a própria residência de Rino Levi, na esquina das ruas Bélgica e Suécia, em São
Paulo, como uma das obras mais importantes do Brasil.
O terreno irregular é totalmente fechado pela construção, cede os recuos
legais à rua e os recupera como jardim
público, onde as únicas janelas são as
da cozinha! Os espaços interiores de
uso diurno, dormitórios e serviços se
distribuem em torno de três pátios perfeitos, em que as aberturas não são janelas quaisquer, são "constructos"
complexos e especiais em cada caso,
considerando vistas, orientação e natureza das atividades. Sobre a entrada
principal, uma reentrância na esquina,
o corte, inclinado em planta, da cobertura alarga as ondas nuas das telhas de
fibrocimento, as terças expostas.
A primeira aula de Rino Levi na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP, em agosto de 1954, começou
assim: "Hoje nós projetamos de dentro
para fora. Vamos ao terreno e imaginamos como viver nele, desde a entrada,
os movimentos, o lugar da mesa, dos livros, sofás, camas, os aparelhos sanitários, equipamentos de cozinha... Aí colocamos as paredes, definimos espaços, aberturas, começam os detalhes".
"Nunca se atrelou a modelos", comprometido apenas "com a arte e a técnica de seu tempo, com os costumes e a
natureza de seu país", diz Antonio Carlos Sant'Anna Jr. numa das apresentações do livro. Seu mestre em Roma, autor do edifício Matarazzo em São Paulo, o "grande Marcello Piacentini" lutava por formar um "arquiteto integral,
capaz de intervir com competência nas
grandes transformações por que passavam as velhas cidades", segundo o
depoimento de Roberto Cerqueira César, em outra das apresentações ao texto de Renato Anelli. Creio, como Piacentini, que se deva desenvolver "a eficácia dos arquitetos, com uma formação técnica e científica mais completa",
um método de trabalho abrangente
que permita à arquitetura triunfar sobre os complexos problemas a resolver.
No fundo, arquitetura-cidade como
uma só coisa. Piacentini defendia o respeito às peculiaridades italianas, destacando entre elas as exigências especiais
do clima. O jovem Rino transpôs as lições no famoso artigo "Arquitetura e
Estética das Cidades", enviado da Itália
em 1925. Como observa Anelli, queria
compatibilizar "a universalidade inerente ao moderno com as especificidades brasileiras". Desde o início, procurava "uma arquitetura com "alma brasileira", entendida como um caráter decorrente da interpretação do clima, natureza e costumes brasileiros", segundo as palavras de Sant'Anna Jr.
Responsabilidade social
Se Piacentini tivesse construído a
nova Cidade Universitária do Rio de
Janeiro, ao que fora convidado e depois
dispensado pelo ministro Gustavo Capanema, sendo substituído por Le Corbusier, é possível que nossa arquitetura
fosse outra. O barroco colonial foi adotado como referência histórica e identidade permanente e única, limitando
nossa formação e aquilo que aí está: retórica obscura, formas indiferentes à
vida, ineficientes, inóspitas.
Rino foi arauto do crescimento urbano planejado, do estímulo à cidade vertical e controlada, do zoneamento, da
metropolização como modernidade,
pioneiro do discurso sobre "a responsabilidade social do arquiteto". Confrontando, pela primeira vez, o pensamento de dois mestres, Anelli afirma
que Rino é criticado por Lúcio Costa,
que defende "uma nova cidade brasileira, onde se conciliassem modernidade e passado colonial, do qual deveríamos resgatar a intimidade da casa rural
com a natureza, propícia a um modo
de viver sereno e tranquilo".
Os desenhos do livro são rigorosos,
densos de pequenas e grandes idéias.
Devem ter causado uma verdadeira revolução. Detalhes primorosos inovavam, como os da porta de canto envidraçada da sala, em ângulo, sem aresta,
que se abre para o terraço curvo e livre
do edifício Columbus, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo (já
demolido). Aqui não é razoável lembrar o arquiteto expressionista alemão
Eric Mendelsohn. Embora as curvas do
observatório Einstein, em Berlim, com
seus espaços internos torturados, estejam em nossas retinas para sempre, dizer que Rino foi "influenciado" por ele,
pela moda da apropriação do legado
romano entre os italianos, ou ainda por
Gropius não ajuda a compreender a
gênese daquele canto nem os edifícios
Schiesser, Cine Ufa (Arte Palácio), hospitais ou casas.
Numa viagem, Rino me falou sobre
seu amor à matemática, que estudara
por dez anos, todas as noites, até altas
horas. Acreditava que ela fosse o instrumental lógico para elucidar o sentido do mundo e inventar a construção
perfeita do ambiente humano. Decepcionado, passara a considerá-la inútil.
Hoje, penso que já havia incorporado
aos seus neurônios uma "metamatemática" sensível, humanizada, que gerou detalhe por detalhe seus extraordinários edifícios. Olhem as grelhas quadradas de concreto pré-moldado vistas
contra pilares, lajes e passarelas sinuosas da Faculdade Sedes Sapientiae, em
São Paulo, mostradas nos ensaios fotográficos de Nelson Kon produzidos para o livro de Anelli. Às vezes, uma simples planta de prefeitura e alguns detalhes à volta eram suficientes e faziam
milagres. Desenhava muito, "pensava
construção", sentado à prancheta o
tempo todo até o fim da tarde, quando
saía a ver amigos, como gostava de
contar meu querido amigo e sócio, o
arquiteto Carlos Milan, morto tragicamente em 1964.
O livro contém preciosas informações sobre o ambiente da arquitetura
na Itália entre as guerras, que demonstram a originalidade das plantas de alguns pátios de Rino em relação à mediterraneidade facista ou a dois refinados
arquitetos italianos, Daniele Calabi e
Bernard Rudofsky, muito publicados
nas revistas de arquitetura de Milão e
que chegaram ao Brasil em 1939.
Aliás, certa vez topei com um magnífico projeto de Rudofsky, intitulado
"Casa per una Donna senza Pregiudizio" ("Casa para uma Mulher sem Preconceito"). O tema eram muros e pátios, vestidos e sandálias, que podiam
ser facilmente calçadas e descalçadas,
miradas exclusivas por janelas internas
e externas, camas baixas que permitiam aos amantes cair e rolar sobre tapetes até o gramado. Lascívia. Para
mim, foi uma preciosa descoberta, aos
18 anos, do programa de necessidades
do cliente como cultura-guia no processo de invenção da construção da
forma (evidentemente, ainda hoje continuo questionando a futilidade do
programa em pleno fascismo).
Lúcio Costa e Rino
Rino, já maduro em 1940, não estava à mercê de atávicas reminiscências
romanas, do repertório renascentista
ou da moda que chegava da Europa.
Ele inventara aqui, em sereno exercício
da razão emocionada, pátios para introspecção, sociabilidade, lazer e trabalho, criando magníficos jardins, um
"panorama artificial" em lote plano e
confinado, a substituir a paisagem impossível na baixada do Pinheiros. É relevante para os estudos brasileiros o
confronto que Anelli estabelece entre
as interpretações de Brasil dos terraços
de Lúcio Costa e dos pátios de Rino.
Devo a Carlos Milan ter-me mostrado a singular importância dos desenhos de Rino Levi e Cerqueira César,
suas maneiras elegantes, corajosas e diretas de escolher e utilizar os materiais
necessários e suficientes em cada caso.
Quanto a Levi, os exemplos são muitos:
o Cine Universo, em São Paulo, com
capacidade para 4.500 pessoas, onde o
teto se abria; a inserção urbana do conjunto Iapi (Instituto de Aposentadoria
e Pensões dos Industriários); o edifício
Porchat (SP); o Cine Ipiranga (SP),
com a magistral estratégia da entrada
invertida sob palco e hotel; o terraço
jardim do Café Jardim (SP); a arquitetura das indústrias e fazenda em São
José dos Campos, destaque especial à
casa grande de Olivo Gomes, com a espetacular parceria dos Gomes, de Burle-Marx e do pintor de telas e paredes,
meu primeiro vizinho de escritório,
Rebolo Gonsales.
Ouso dizer que Rino Levi e Lina Bo
Bardi foram os mais competentes arquitetos brasileiros de seu tempo. Ele,
preocupado com o Brasil, discorria encantado sobre marantas de sua casa e
bromélias, que colecionava. Morreu a
procurá-las no morro do Chapéu, no
interior da Bahia, ao lado de Burle-Marx. Lina, além das obras, foi autora
da imensa exposição, hoje perdida, "A
Mão do Povo Brasileiro", prova do
amor pelo país que adotara. Ambos
constituem a iluminada "outra face da
arquitetura brasileira", a face questionadora: eram "italianos".
Gostaria que o livro se chamasse "Rino Levi, Roberto Cerqueira César e
Luis Roberto Carvalho Franco -Arquitetura e Cidade". Juntos, eles deram a
grande lição possível sobre a cidade
moderna, na inserção pontual, perfeita
e conciliada das edificações urbanas: o
Columbus, cinemas, teatros, casas,
apartamentos, escritórios, indústrias,
bancos, hospitais e o notável edifício da
Fiesp (1969), de Cerqueira César e
Franco, sem Rino. É muito! Muito mais
do que os projetos para as Residências
da USP, para o Paço de Santo André
(SP) ou o interessante plano de Brasília
(como se sabe, Rino ficou em terceiro
lugar no concurso para o plano piloto
da cidade), assumido, de modo consciente e quase acintoso, como pura
pesquisa, pois sabia que jamais ganharia o concurso. A melhor cidade parece
ser um tecido de projetos singulares
em conflito, conciliação e reinvenção
permanentes, insubmissos às ideologias e geometrias simplificadoras.
Joaquim Guedes é arquiteto e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
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