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Depois do inferno
O Coração das Trevas
Joseph Conrad
Tradução: Celso M. Paciornik
Iluminuras
(Tel. 0/xx/11/3068-9433)
192 págs., R$ 28,00
CELIA CAVALHEIRO
Há cem anos saía a publicação
de "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad. Uma espécie de tratado sobre aquilo de que não se
diz o nome, onde um narrador/
personagem, ao navegar sobre o
Tâmisa "à luz augusta das memórias duradouras", apresenta um
outro personagem, o marinheiro
Marlow, que, pelo marasmo da
hora ou pelas lembranças impositivas nascidas daquela luz, começa a contar uma história, sobre algo ou alguém -Kurtz- que não
deve ser esquecido.
Ainda como uma criação da
criação, 23 anos depois T.S. Eliot
inicia seu poema "Os Homens
Ocos" com a epígrafe "Mr. Kurtz
-ele morreu". Sabemos da ironia do poeta, que, afinal, as coisas
não morrem, pois "muito longa é
a vida", para frente ou para trás. A
prova, ou uma delas, é que, passadas algumas décadas, outra espécie de narrador, o cineasta Francis
Ford Coppola, colocou os versos
do poeta na boca desses personagens: Kurtz e Marlow, transformados então em capitão e soldado, no filme "Apocalypse Now".
Representando outra guerra, a do
Vietnã, numa época diferente
portanto, mas sob o mesmo sentimento de que então "é assim que
o mundo acaba": ao vislumbrarmos o inominável, o abominável
que, de resto, sabemos quem somos. Agora, na virada de outro
século, perto de guerras bem mais
anunciadas, recebemos esta nova
tradução da novela de Conrad,
centrada em resgatar um certo estilo -quase descontraído-, mas
que pontua muito mais a aflição
da narrativa, como um pano de
fundo contrastante.
Se pensarmos no filme, que há
menos de um ano pôde ser visto
outra vez nos cinemas, em sua
versão ampliada e revista, verificamos que nele a escolha do pano
de fundo é feita por insistência,
presença absoluta. O cenário é
vermelho, barulhento, esfumaçado. Todo o tempo o desespero dos
personagens enche a tela, como se
o diretor não quisesse dar nenhuma folga para que o espectador se
distraia do que "deve" ser visto.
Enquanto a narrativa de Conrad, longe de ser leve, é porém
conduzida pelo tom do marinheiro, que conta a sua história. Dando tempo para que se respire, para que se perceba, lentamente, a
crueza do relato -e a lentidão em
si é uma crueldade. Se o filme é explícito ao mostrar a total demência de homens que acham que estão cumprindo seu dever, em
contrapartida ao delírio declarado do homem que deve ser morto
(Mr. Kurtz, no filme, deve ser
morto porque assumiu que só a
loucura é páreo para aquele horror, enquanto os outros fingem
que poderão voltar para casa), a
peripécia da narrativa conradiana
é ocultar esta personalidade, que
só vai se delineando através de
uma certo alinhavo conclusivo do
contador do caso, que, aos poucos, constrói o desconhecido Mr.
Kurtz, aquele que ele não pensava
em "ver", mas "ouvir" e, apesar
dos seus métodos insanos, encontra, no próprio perseguidor, um
aliado.
Na verdade, o que trama tanto a
obra de Conrad, que só chega a
ser explícita quando trata de conduzir a descida aos infernos que é
o esquecimento de si mesmo,
quanto a adaptação de Coppola é
a questão do conhecimento, do
que pode ou não ser dito, da mentira sim, mas a necessária. O personagem Mr. Kurtz encarna
"aquele que tem a Palavra", aquele que pode diferenciar, em meio à
miséria, o que deve virar testemunho. Mais para frente o narrador
do romance arremata: "É claro
que você pode ser tolo o bastante
para se perder -estúpido demais
mesmo para saber que está sendo
assaltado pelos poderes das trevas".
Advertindo, de certo modo, que
é preciso um mínimo de consciência para perceber o lado obscuro das coisas, consciência sem a
qual não há sofrimento e, se não
houver sofrimento, não pode haver rendição. E o que é a rendição
senão observar, um sem número
de vezes, que as coisas não mudam, mas podem, em instantâneos, serem flagradas?
Dito assim, parece que se privilegia, no romance, o aspecto puramente psicológico, ainda mais
que está seguido, nesta edição, do
conto "O Cúmplice Secreto"
(1912), onde o protagonista, ao esconder e salvar um assassino, vai
libertando a si mesmo, reconhecendo, às escondidas (no fundo
do quarto, atrás da porta, no canto agachado...), que o outro é sua
parte mais querida.
Mas isto seria talvez simplificar
a reviravolta literária que deparamos com a leitura da obra de Joseph Conrad -eterno exilado de
seu país, da casa paterna, de suas
convicções-, que consegue misturar, sem confundir, as importâncias das coisas, sem relativizar
seus significados. Ao fazer um relato de viagem, ele trata de questões reais, como o massacre de
um povo pela exploração comercial, o aprisionamento de escravos, a política de uma Europa prepotente e, no meio disto, o homem como joguete do seu não-discernimento, sendo, ao mesmo
tempo, o que come e o que é comido.
O fator psicológico do espelhamento na trama do poder está
presente, claro que sim, mas o que
se apura desta leitura é que, se o
século 19 se ocupou em desvendar
o que há por trás da linguagem, a
mestria de Conrad é mostrar o
que há por dentro desta significação. Não adianta desvendar as entrelinhas, mas lê-las em conjunto.
O espaço e a palavra estão trabalhando para o conjunto, não há silêncio. E talvez aí o filme de Coppola tenha alcançado plenamente
o sentido da obra, pois, apesar de
dar endereço certo para a "trama"
(Camboja-Vietnã), também não
deixa espaço para que o espectador se situe demais no que pode
haver ali de real.
Percorrendo uma espécie de paraíso às avessas, tanto a falta de
pressa do contador de histórias de
Conrad quanto as imagens escatológicas, sem descanso, de Coppola remetem para uma espécie
de salvação. Destacadamente no
romance, onde o marinheiro termina sua narrativa contando como, um ano depois de ter se aventurado rio acima no resgate daquele homem, vai ao encontro de
sua prometida, reconhecendo na
mulher ainda de luto o lado são de
Mr. Kurtz. E, mentindo sobre as
últimas palavras do amado, percebe que, apesar da traição, esse
era o único modo de continuar vivo para, enfim, testemunhar o
que viu.
Do não-silêncio, da aflição ininterrupta, da novidade eternamente reinaugurada -como o próprio personagem que, ao ter que
deixar o livro achado, sentiu-se
meio que "separado do abrigo de
uma velha e sólida amizade"-,
retiramos, também desamparados, os olhos do texto, mas sabendo, mesmo sem consolo, que depois do inferno é possível dar de
novo nome às coisas.
Celia Cavalheiro é contista, autora de
"Poucas e Boas" (Iluminuras).
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