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Contra a intolerância
Um romance sobre a barbárie da Ku-Klux-Klan
Focus
Arthur Miller
Tradução: Beatriz Horta
Ediouro (Tel.0/xx/21/3882-8212)
216 págs., R$ 26,90
INÁ CAMARGO COSTA
O cinema norte-americano nos
acostumou a relacionar a Ku-Klux-Klan à perseguição e ao assassinato de negros, com demonstrações de violência só comparáveis às dos nazistas alemães.
Neste capítulo, a performance do
"círculo" parece ter alcançado
maior visibilidade com a luta antidireitos civis dos anos 50 e 60, mas
são bem conhecidas suas façanhas dos anos 20 e 30 do século
passado, sempre em estados do
sul, como Alabama e Georgia.
A diversificação de seus objetos
de ódio, como judeus e católicos
nos anos 30 e 40, quando a Klan
assumiu abertamente suas simpatias pelo nazismo, raras vezes
tem sido objeto de atenção e é este
o pano de fundo de "Focus", romance publicado em 1945. Embora na época o livro tenha tido importante repercussão nos EUA e,
nos anos 50, também em países
como Inglaterra, França e Alemanha, só agora está sendo lançado
no Brasil, declaradamente na esteira de sua filmagem em 2001, sinal de que os editores esperam
que o filme também chegue por
aqui. Alvíssaras, portanto: antes
tarde do que nunca.
O próprio Arthur Miller conta
que se lançou a essa experiência
após o fracasso absoluto, de crítica e bilheteria, de sua peça de estréia no teatro profissional, "The
Man Who Had All The Luck". A
idéia de abandonar o sonho de se
tornar dramaturgo, cultivado
desde a universidade, foi se tornando cada vez mais consistente a
partir da tentativa de transformar
esta peça em romance que permaneceu inédito.
Estas informações são relevantes porque mostram até que ponto, sem o saber, Miller passou por
uma experiência comum a muitos de seus colegas europeus desde fins do século 19: escrever peças que aos olhos da crítica, essencialmente conservadora, seriam
mais bem realizadas na forma do
romance, entre outras razões porque o conteúdo não se presta ao
tratamento dramático. Em seu caso, um crítico amigavelmente explicou-lhe que "The Man" apresentava um erro essencial de concepção, pois era uma tragédia escrita em forma de comédia popular.
Mas Miller queria ser dramaturgo e esta sua experiência traz as
marcas dessa propensão, o que
nem de longe implica prejuízo para a realização de "Focus". Como
já se apontou, a definição do foco
narrativo é a chave para se perceber a mão do dramaturgo neste
romance. Para adotar uma filiação literária, podemos dizer que, à
maneira de Kafka, o narrador
aqui adota uma onisciência limitada pela consciência (igualmente
limitada) de Lawrence Newman,
seu protagonista. Mas, se quisermos buscar a filiação teatral, que
tem a mesma idade, podemos
também dizer que o limite das informações apresentadas ao leitor
é a percepção de Newman, como
no teatro expressionista (é claro
que Miller já está ruminando
Willy Loman, cuja cabeça escavará: "Focus" tem até mesmo um
personagem extremamente secundário que se chama Willy Mallon, um colega do escritório onde
trabalha o nosso Lawrence Newman no início da história).
Mudança de foco
O rigor com que esta técnica é
executada chega às raias do virtuosismo nos momentos em que,
em determinados diálogos, o narrador corta a palavra do interlocutor de Newman assim que este
deixa de prestar atenção no que
ouve. Da mesma forma, quando
Newman está no cinema, o narrador vai resumindo as cenas em
que este está atento, mas, quando
ele se distrai observando os demais espectadores, interrompe-se
o resumo, que vai ser retomado
mais adiante, no ponto em que
Newman volta a olhar para a tela.
Em um único capítulo, já próximo ao final, entretanto, o foco
muda. Agora o personagem que
acompanhamos é Finkelman, o
judeu propriamente dito desta
história. Com ele, visitando meio
a contragosto o cemitério onde
seu pai foi enterrado, temos a
oportunidade de acompanhar,
em meio a reflexões de toda ordem, inclusive metafísicas, um
importante "flashback" no qual se
relata uma história exemplar de
perseguição a judeus na Polônia
em tempos não muito distantes.
Seu protagonista se vê posto diante de um impasse: o que quer que
fizesse levaria ao mesmo resultado, com o agravante de só perceber-se enredado nele depois de
dado o primeiro passo.
Esse personagem enlouquece e
morre, indicação de que o agora
velho Finkelman talvez não tenha
o mesmo destino, desde que, como o personagem da sua história,
faça o que deve ser feito. No capítulo seguinte, ele mostrará a Newman que está preparado para resistir aos ataques cada vez mais
violentos da "Frente Cristã".
Quanto ao nosso herói, precisará passar por um longo processo
(de que trata o romance) até romper definitivamente com a sua
própria condição. É o que sempre
interessou a Arthur Miller, que
aqui apresenta uma solução bem
mais otimista do que as de suas
peças, desde "All my Sons", cujo
desfecho claramente indica que a
nova geração vai dar continuidade normal aos negócios e regras
de vida da anterior (ele está tratando da classe dominante). Aqui
não: Lawrence Newman faz parte
daquela vasta maioria de trabalhadores "bem-sucedidos" -os
"white collar" de Wright Mills-
que durante a Depressão rapidamente deram a volta por cima e
continuaram acreditando nas regras do capitalismo.
É com essa gente que o romance
dialoga: Miller sabia que, diante
do ascenso da intolerância nos
EUA, a tendência desse tipo social
é prosseguir na luta fanática pela
sobrevivência individual, aprovando pela omissão e por cálculo
bastante interessado a violência
contra as minorias. Por isso, o capítulo de abertura de "Focus"
mostra Newman como um tipo
absolutamente incapaz de sentir a
mais remota pitada de solidariedade por uma porto-riquenha
que está sendo espancada por militantes da "Frente". Em seu processo de racionalização, entre outros argumentos, ele se justifica
pensando que, àquela hora da
noite na rua, boa coisa ela não estaria fazendo; e, além do mais,
sendo porto-riquenha, ela devia
estar acostumada a ser tratada daquela forma.
O otimismo de Arthur Miller
começa a se manifestar quando
faz seu personagem experimentar
o mesmo tipo de discriminação
que praticava: Newman perde o
emprego e tem dificuldade de obter outro porque parece judeu. A
partir deste ponto, com o breve
interregno do namoro e casamento com a moça que escolheu em
parte porque ela também parecia
judia, temos as cenas em que nosso herói é vítima de várias formas
de discriminação que culminam
na violência de rua que sofre junto com o velho Finkelman, à qual
reage com a arma oferecida pelo
companheiro.
Depois disso, não pode haver
surpresa em relação ao desfecho.
Completa-se o processo, que poderia ser exemplar se aquele país
não fosse o que é, no qual Newman descobre o que Finkelman já
sabia desde o tempo em que ouvia aquela história horrível contada por seu pai: é preciso resistir,
inclusive armado, contra a estupidez.
Por trás do otimismo que marca o desfecho deste romance se
encontra o sentimento, perfeitamente compreensível, de confiança nos destinos da humanidade, que marcou a virada do jogo
na Segunda Guerra Mundial, ainda mais forte em se tratando de
adepto do socialismo, àquela altura acreditando inclusive na
União Soviética. Mas ele cifra
também uma espécie de reação
indignada aos discursos fascistas
e anti-semitas de Ezra Pound, que
podiam ser ouvidos em território
americano por quem tivesse aparelho de rádio apto a sintonizar
ondas curtas, como era o caso de
Miller.
Consta que a primeira versão
da Klan, a que surgiu logo depois
da Guerra Civil (1861-1865), foi
por assim dizer destruída (pelo
Exército!) por volta de 1876. Já a
segunda, esta que comanda a barbárie em "Focus", até onde se sabe, vai muito bem, obrigada, depois da verdadeira metástase por
que passou nos anos 60. E agora,
no pós-11 de setembro, deve estar
nos cascos para retomar suas atividades com o arco de seus objetos de ódio ampliado para brasileiros, árabes, paquistaneses e demais adeptos do "american
dream" que ainda não perceberam o quanto ele é exclusivo.
Iná Camargo Costa é professora de teoria literária na USP e autora de "Panorama do Rio Vermelho - Ensaios sobre o
Teatro Americano Moderno" (Nankin).
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