São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Contra a intolerância

Um romance sobre a barbárie da Ku-Klux-Klan

Focus
Arthur Miller
Tradução: Beatriz Horta
Ediouro (Tel.0/xx/21/3882-8212)
216 págs., R$ 26,90

INÁ CAMARGO COSTA

O cinema norte-americano nos acostumou a relacionar a Ku-Klux-Klan à perseguição e ao assassinato de negros, com demonstrações de violência só comparáveis às dos nazistas alemães. Neste capítulo, a performance do "círculo" parece ter alcançado maior visibilidade com a luta antidireitos civis dos anos 50 e 60, mas são bem conhecidas suas façanhas dos anos 20 e 30 do século passado, sempre em estados do sul, como Alabama e Georgia.
A diversificação de seus objetos de ódio, como judeus e católicos nos anos 30 e 40, quando a Klan assumiu abertamente suas simpatias pelo nazismo, raras vezes tem sido objeto de atenção e é este o pano de fundo de "Focus", romance publicado em 1945. Embora na época o livro tenha tido importante repercussão nos EUA e, nos anos 50, também em países como Inglaterra, França e Alemanha, só agora está sendo lançado no Brasil, declaradamente na esteira de sua filmagem em 2001, sinal de que os editores esperam que o filme também chegue por aqui. Alvíssaras, portanto: antes tarde do que nunca.
O próprio Arthur Miller conta que se lançou a essa experiência após o fracasso absoluto, de crítica e bilheteria, de sua peça de estréia no teatro profissional, "The Man Who Had All The Luck". A idéia de abandonar o sonho de se tornar dramaturgo, cultivado desde a universidade, foi se tornando cada vez mais consistente a partir da tentativa de transformar esta peça em romance que permaneceu inédito.
Estas informações são relevantes porque mostram até que ponto, sem o saber, Miller passou por uma experiência comum a muitos de seus colegas europeus desde fins do século 19: escrever peças que aos olhos da crítica, essencialmente conservadora, seriam mais bem realizadas na forma do romance, entre outras razões porque o conteúdo não se presta ao tratamento dramático. Em seu caso, um crítico amigavelmente explicou-lhe que "The Man" apresentava um erro essencial de concepção, pois era uma tragédia escrita em forma de comédia popular.
Mas Miller queria ser dramaturgo e esta sua experiência traz as marcas dessa propensão, o que nem de longe implica prejuízo para a realização de "Focus". Como já se apontou, a definição do foco narrativo é a chave para se perceber a mão do dramaturgo neste romance. Para adotar uma filiação literária, podemos dizer que, à maneira de Kafka, o narrador aqui adota uma onisciência limitada pela consciência (igualmente limitada) de Lawrence Newman, seu protagonista. Mas, se quisermos buscar a filiação teatral, que tem a mesma idade, podemos também dizer que o limite das informações apresentadas ao leitor é a percepção de Newman, como no teatro expressionista (é claro que Miller já está ruminando Willy Loman, cuja cabeça escavará: "Focus" tem até mesmo um personagem extremamente secundário que se chama Willy Mallon, um colega do escritório onde trabalha o nosso Lawrence Newman no início da história).

Mudança de foco
O rigor com que esta técnica é executada chega às raias do virtuosismo nos momentos em que, em determinados diálogos, o narrador corta a palavra do interlocutor de Newman assim que este deixa de prestar atenção no que ouve. Da mesma forma, quando Newman está no cinema, o narrador vai resumindo as cenas em que este está atento, mas, quando ele se distrai observando os demais espectadores, interrompe-se o resumo, que vai ser retomado mais adiante, no ponto em que Newman volta a olhar para a tela.
Em um único capítulo, já próximo ao final, entretanto, o foco muda. Agora o personagem que acompanhamos é Finkelman, o judeu propriamente dito desta história. Com ele, visitando meio a contragosto o cemitério onde seu pai foi enterrado, temos a oportunidade de acompanhar, em meio a reflexões de toda ordem, inclusive metafísicas, um importante "flashback" no qual se relata uma história exemplar de perseguição a judeus na Polônia em tempos não muito distantes. Seu protagonista se vê posto diante de um impasse: o que quer que fizesse levaria ao mesmo resultado, com o agravante de só perceber-se enredado nele depois de dado o primeiro passo.
Esse personagem enlouquece e morre, indicação de que o agora velho Finkelman talvez não tenha o mesmo destino, desde que, como o personagem da sua história, faça o que deve ser feito. No capítulo seguinte, ele mostrará a Newman que está preparado para resistir aos ataques cada vez mais violentos da "Frente Cristã".
Quanto ao nosso herói, precisará passar por um longo processo (de que trata o romance) até romper definitivamente com a sua própria condição. É o que sempre interessou a Arthur Miller, que aqui apresenta uma solução bem mais otimista do que as de suas peças, desde "All my Sons", cujo desfecho claramente indica que a nova geração vai dar continuidade normal aos negócios e regras de vida da anterior (ele está tratando da classe dominante). Aqui não: Lawrence Newman faz parte daquela vasta maioria de trabalhadores "bem-sucedidos" -os "white collar" de Wright Mills- que durante a Depressão rapidamente deram a volta por cima e continuaram acreditando nas regras do capitalismo.
É com essa gente que o romance dialoga: Miller sabia que, diante do ascenso da intolerância nos EUA, a tendência desse tipo social é prosseguir na luta fanática pela sobrevivência individual, aprovando pela omissão e por cálculo bastante interessado a violência contra as minorias. Por isso, o capítulo de abertura de "Focus" mostra Newman como um tipo absolutamente incapaz de sentir a mais remota pitada de solidariedade por uma porto-riquenha que está sendo espancada por militantes da "Frente". Em seu processo de racionalização, entre outros argumentos, ele se justifica pensando que, àquela hora da noite na rua, boa coisa ela não estaria fazendo; e, além do mais, sendo porto-riquenha, ela devia estar acostumada a ser tratada daquela forma.
O otimismo de Arthur Miller começa a se manifestar quando faz seu personagem experimentar o mesmo tipo de discriminação que praticava: Newman perde o emprego e tem dificuldade de obter outro porque parece judeu. A partir deste ponto, com o breve interregno do namoro e casamento com a moça que escolheu em parte porque ela também parecia judia, temos as cenas em que nosso herói é vítima de várias formas de discriminação que culminam na violência de rua que sofre junto com o velho Finkelman, à qual reage com a arma oferecida pelo companheiro.
Depois disso, não pode haver surpresa em relação ao desfecho. Completa-se o processo, que poderia ser exemplar se aquele país não fosse o que é, no qual Newman descobre o que Finkelman já sabia desde o tempo em que ouvia aquela história horrível contada por seu pai: é preciso resistir, inclusive armado, contra a estupidez.
Por trás do otimismo que marca o desfecho deste romance se encontra o sentimento, perfeitamente compreensível, de confiança nos destinos da humanidade, que marcou a virada do jogo na Segunda Guerra Mundial, ainda mais forte em se tratando de adepto do socialismo, àquela altura acreditando inclusive na União Soviética. Mas ele cifra também uma espécie de reação indignada aos discursos fascistas e anti-semitas de Ezra Pound, que podiam ser ouvidos em território americano por quem tivesse aparelho de rádio apto a sintonizar ondas curtas, como era o caso de Miller.
Consta que a primeira versão da Klan, a que surgiu logo depois da Guerra Civil (1861-1865), foi por assim dizer destruída (pelo Exército!) por volta de 1876. Já a segunda, esta que comanda a barbárie em "Focus", até onde se sabe, vai muito bem, obrigada, depois da verdadeira metástase por que passou nos anos 60. E agora, no pós-11 de setembro, deve estar nos cascos para retomar suas atividades com o arco de seus objetos de ódio ampliado para brasileiros, árabes, paquistaneses e demais adeptos do "american dream" que ainda não perceberam o quanto ele é exclusivo.


Iná Camargo Costa é professora de teoria literária na USP e autora de "Panorama do Rio Vermelho - Ensaios sobre o Teatro Americano Moderno" (Nankin).



Texto Anterior: Depois do inferno
Próximo Texto: Álvares inteiro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.