São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pascal teólogo

MARCELO COELHO

O Homem Insuficiente- Comentários de
Antropologia Pascaliana
Luiz Felipe Pondé
Edusp (Tel.0/xx/11/3091-4008)
280 págs., R$ 28,00

São infelizes as mulheres grávidas ou as que estão amamentando, uma vez que "têm ligações estreitas com o mundo que as mantém presas nele". Sabendo-se que o mundo é lugar de pecado, "não é necessário examinar se se tem a vocação para sair do mundo, mas somente se se tem vocação para nele permanecer, da mesma forma que não se fraquejaria em absoluto se se fosse chamado a sair de uma casa empesteada ou em chamas".
Consta das "Cartas à Mademoiselle de Roannez", de Blaise Pascal (1623-1662), esse furioso raciocínio; Luiz Felipe Pondé o reproduz em seu "O Homem Insuficiente". A reação do leitor contemporâneo será, provavelmente, a de tomar esse trecho apenas como uma fervorosa extravagância do autor dos "Pensamentos", que escrevia em meio às polêmicas teológicas do século 17. Professor de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (SP), Pondé prefere ressaltar de que modo passagens desse tipo iluminam "o caráter radical do anti-humanismo" pascaliano.
Estabelecendo, a partir do conceito de "homem insuficiente", um cerrado diálogo com os representantes da "tradição pascaliana" (Jean Mesnard, Henri Gouhier, Pierre Magnard, Lucien Goldmann), este livro analisa aspectos fundamentais do pensamento de Pascal: o "divertissement", o "ennui", a miséria do homem, a insuficiência da razão diante das "razões do coração", a polêmica entre jansenistas e jesuítas em torno da "graça eficaz".
Para Pascal e os jansenistas, a graça intervém de forma contingente, incompreensível, arbitrária (é também a teoria de santo Agostinho), mas indispensável para nossa salvação. Insuficiente para alcançá-la sozinho, o homem está na total dependência de uma intervenção divina. A teologia de Pascal é "anti-humanista", porque nega a auto-suficiência humana para livrar-se do mal. Contudo, observa Pondé, é justamente por essa constituição pecaminosa que se dá no ser humano uma "abertura para o sobrenatural". Aquilo que é fonte de pecado, aflição e desnorteamento é também a brecha para a intervenção divina.

Retomar Pascal
Para a compreensão do texto e do contexto da obra religiosa de Pascal, o livro de Pondé é de inquestionável valor. Mas não se limita a ser um simples comentário de Pascal. O autor propõe, de fato, uma retomada do pensamento pascaliano: "Urge trazermos a antropologia anti-humanista à luz: uma das piores feridas do homem é a opção feita após a era renascentista pela antropologia narcisista". Narcisismo que se expressa não só no amor desmesurado que o homem contemporâneo tem por si mesmo mas também "no ódio pela verdade empírica sobre si mesmo: sua miséria evidente".
É o que lemos na conclusão do livro, na qual o comentário minucioso dos textos de Pascal se deixa substituir por um tom, se não militante, ao menos bastante predicativo. Sem dúvida, nada mais atual do que a crítica à indústria cultural, ao consumismo, à contínua e frívola busca do "divertissement". A proposta de Pondé se cruza aqui com a Escola de Frankfurt, o pessimismo literário de E.M. Cioran e a crítica de Lasch ao "narcisismo", para não falar de Nietzsche e Freud.
Mas cabe questionar se não haveria uma diferença entre notar um veio de pascalianismo em tantos críticos da modernidade e advogar, como faz Pondé, a pertinência da teologia de Pascal como resposta aos males da civilização contemporânea. Podemos concordar (ou não) com as teses de Lasch expostas em "O Mínimo Eu"; mas é coisa diversa propor, como antídoto à "cultura do narcisismo", aquilo que mereceria bem o nome de "cultura do masoquismo", cuja vertente católica vem exemplificada no trecho de Pascal que inicia esta resenha.
Há muita coisa de "atual" no pensamento de Pascal. Mas se privilegiamos o prisma teológico, ao menos como o faz Pondé, tudo parece feito de modo a travar novamente, em pleno século 21, o combate de santo Agostinho contra os pelagianos, no século 5, e que os jansenistas retomavam no século 17.
A resposta de Pondé é clara: "Não consideramos a teologia um campo antropológico-filosófico datado e por isso mesmo de valor duvidoso". Trata-se de combater, com as armas de Pascal, os herdeiros ainda vivos do humanismo jesuíta.
Esse anacronismo militante causa curiosos efeitos em sua argumentação. Pondé não irá, por certo, tratar o pecado de Adão como se fosse um fato histórico indubitável. Em compensação, considera a "insuficiência humana" algo passível de uma constatação empírica. "A hipótese explicativa do mito da queda é uma forma de iluminar um fato que por si só se impõe". Qual fato? Ao falar da "insuficiência humana", estamos no plano do fato ou da interpretação? Chegamos a ler, na pág. 260, que "o homem é empiricamente corrompido". Verdade ou mentira? Eis uma frase de difícil comprovação.
Lembremos, contudo, que a propósito de outro tema -as observações de Pascal sobre a insuficiência da razão-, Pondé defende a idéia de uma "exclusão pragmática do problema da verdade". Sua argumentação é bastante questionável nesse ponto. Trata-se de "desqualificar a querela sobre a verdade como adequação entre nome e coisa, e deslocar o problema da cognição para o eixo da ação no real, ou utilidade dos vocabulários em questão. Por exemplo, pouco importa afirmar que no Brasil "todos têm os mesmos direitos constitucionais", pois a verdade pragmática não referenda tal enunciado".
O exemplo é revelador. Pois dizer que "no Brasil todos têm os mesmos direitos constitucionais" não é equivalente a dizer que "no Brasil todos têm os seus direitos constitucionais atendidos". Há, como se sabe, "questões de fato" e "questões de direito". Não faz sentido dizer que a morte de alguém nega o direito que essa pessoa tinha à vida, assim como uma gripe não nega o meu direito à saúde.
Não apenas se repete, nesse exemplo, a tendência "teológica" do autor para confundir a existência de uma coisa com a vontade de que essa coisa exista, mas também sua aposta numa peculiar forma de pragmatismo: se trata de referendar conceitos e enunciados a partir do critério da utilidade, do seu poder de transformação sobre o mundo real, mas dentro de uma apaixonada teologia de condenação à concupiscência e à frivolidade mundanas.
Para lembrar o começo desta resenha , é muito diferente sair jubiloso de uma casa consumida pelas chamas do pecado e lutar para apagar o fogo, sem se indagar muito sobre a essência espiritual do incêndio. É como se Pondé achasse necessário unir as duas atitudes, num empirismo do pecado original, ou numa espécie de pragmatismo da renúncia ao mundo.


Marcelo Coelho é colunista da Folha, professor de jornalismo na Faculdade de Comunicação Cásper Líbero e autor de "Folha Explica Montaigne" (Publifolha).



Texto Anterior: Lições de filosofia
Próximo Texto: A linha do tempo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.