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Pascal teólogo
MARCELO COELHO
O Homem Insuficiente- Comentários de
Antropologia Pascaliana
Luiz Felipe Pondé
Edusp (Tel.0/xx/11/3091-4008)
280 págs., R$ 28,00
São infelizes as mulheres grávidas ou as que estão amamentando, uma vez que "têm ligações estreitas com o mundo que as mantém presas nele". Sabendo-se que
o mundo é lugar de pecado, "não
é necessário examinar se se tem a
vocação para sair do mundo, mas
somente se se tem vocação para
nele permanecer, da mesma forma que não se fraquejaria em absoluto se se fosse chamado a sair
de uma casa empesteada ou em
chamas".
Consta das "Cartas à Mademoiselle de Roannez", de Blaise Pascal (1623-1662), esse furioso raciocínio; Luiz Felipe Pondé o reproduz em seu "O Homem Insuficiente". A reação do leitor contemporâneo será, provavelmente,
a de tomar esse trecho apenas como uma fervorosa extravagância
do autor dos "Pensamentos", que
escrevia em meio às polêmicas
teológicas do século 17. Professor
de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (SP),
Pondé prefere ressaltar de que
modo passagens desse tipo iluminam "o caráter radical do anti-humanismo" pascaliano.
Estabelecendo, a partir do conceito de "homem insuficiente",
um cerrado diálogo com os representantes da "tradição pascaliana" (Jean Mesnard, Henri Gouhier, Pierre Magnard, Lucien
Goldmann), este livro analisa aspectos fundamentais do pensamento de Pascal: o "divertissement", o "ennui", a miséria do
homem, a insuficiência da razão
diante das "razões do coração", a
polêmica entre jansenistas e jesuítas em torno da "graça eficaz".
Para Pascal e os jansenistas, a
graça intervém de forma contingente, incompreensível, arbitrária
(é também a teoria de santo Agostinho), mas indispensável para
nossa salvação. Insuficiente para
alcançá-la sozinho, o homem está
na total dependência de uma intervenção divina. A teologia de
Pascal é "anti-humanista", porque nega a auto-suficiência humana para livrar-se do mal. Contudo, observa Pondé, é justamente por essa constituição pecaminosa que se dá no ser humano
uma "abertura para o sobrenatural". Aquilo que é fonte de pecado, aflição e desnorteamento é
também a brecha para a intervenção divina.
Retomar Pascal
Para a compreensão do texto e
do contexto da obra religiosa de
Pascal, o livro de Pondé é de inquestionável valor. Mas não se limita a ser um simples comentário
de Pascal. O autor propõe, de fato,
uma retomada do pensamento
pascaliano: "Urge trazermos a antropologia anti-humanista à luz:
uma das piores feridas do homem
é a opção feita após a era renascentista pela antropologia narcisista". Narcisismo que se expressa
não só no amor desmesurado que
o homem contemporâneo tem
por si mesmo mas também "no
ódio pela verdade empírica sobre
si mesmo: sua miséria evidente".
É o que lemos na conclusão do
livro, na qual o comentário minucioso dos textos de Pascal se deixa
substituir por um tom, se não militante, ao menos bastante predicativo. Sem dúvida, nada mais
atual do que a crítica à indústria
cultural, ao consumismo, à contínua e frívola busca do "divertissement". A proposta de Pondé se
cruza aqui com a Escola de Frankfurt, o pessimismo literário de
E.M. Cioran e a crítica de Lasch ao
"narcisismo", para não falar de
Nietzsche e Freud.
Mas cabe questionar se não haveria uma diferença entre notar
um veio de pascalianismo em tantos críticos da modernidade e advogar, como faz Pondé, a pertinência da teologia de Pascal como
resposta aos males da civilização
contemporânea. Podemos concordar (ou não) com as teses de
Lasch expostas em "O Mínimo
Eu"; mas é coisa diversa propor,
como antídoto à "cultura do narcisismo", aquilo que mereceria
bem o nome de "cultura do masoquismo", cuja vertente católica
vem exemplificada no trecho de
Pascal que inicia esta resenha.
Há muita coisa de "atual" no
pensamento de Pascal. Mas se privilegiamos o prisma teológico, ao
menos como o faz Pondé, tudo
parece feito de modo a travar novamente, em pleno século 21, o
combate de santo Agostinho contra os pelagianos, no século 5, e
que os jansenistas retomavam no
século 17.
A resposta de Pondé é clara:
"Não consideramos a teologia um
campo antropológico-filosófico
datado e por isso mesmo de valor
duvidoso". Trata-se de combater,
com as armas de Pascal, os herdeiros ainda vivos do humanismo
jesuíta.
Esse anacronismo militante
causa curiosos efeitos em sua argumentação. Pondé não irá, por
certo, tratar o pecado de Adão como se fosse um fato histórico indubitável. Em compensação, considera a "insuficiência humana"
algo passível de uma constatação
empírica. "A hipótese explicativa
do mito da queda é uma forma de
iluminar um fato que por si só se
impõe". Qual fato? Ao falar da
"insuficiência humana", estamos
no plano do fato ou da interpretação? Chegamos a ler, na pág. 260,
que "o homem é empiricamente
corrompido". Verdade ou mentira? Eis uma frase de difícil comprovação.
Lembremos, contudo, que a
propósito de outro tema -as observações de Pascal sobre a insuficiência da razão-, Pondé defende a idéia de uma "exclusão pragmática do problema da verdade".
Sua argumentação é bastante
questionável nesse ponto. Trata-se de "desqualificar a querela sobre a verdade como adequação
entre nome e coisa, e deslocar o
problema da cognição para o eixo
da ação no real, ou utilidade dos
vocabulários em questão. Por
exemplo, pouco importa afirmar
que no Brasil "todos têm os mesmos direitos constitucionais",
pois a verdade pragmática não referenda tal enunciado".
O exemplo é revelador. Pois dizer que "no Brasil todos têm os
mesmos direitos constitucionais"
não é equivalente a dizer que "no
Brasil todos têm os seus direitos
constitucionais atendidos". Há,
como se sabe, "questões de fato" e
"questões de direito". Não faz
sentido dizer que a morte de alguém nega o direito que essa pessoa tinha à vida, assim como uma
gripe não nega o meu direito à
saúde.
Não apenas se repete, nesse
exemplo, a tendência "teológica"
do autor para confundir a existência de uma coisa com a vontade
de que essa coisa exista, mas também sua aposta numa peculiar
forma de pragmatismo: se trata
de referendar conceitos e enunciados a partir do critério da utilidade, do seu poder de transformação sobre o mundo real, mas
dentro de uma apaixonada teologia de condenação à concupiscência e à frivolidade mundanas.
Para lembrar o começo desta resenha , é muito diferente sair jubiloso de uma casa consumida pelas
chamas do pecado e lutar para
apagar o fogo, sem se indagar
muito sobre a essência espiritual
do incêndio. É como se Pondé
achasse necessário unir as duas
atitudes, num empirismo do pecado original, ou numa espécie de
pragmatismo da renúncia ao
mundo.
Marcelo Coelho é colunista da Folha,
professor de jornalismo na Faculdade de
Comunicação Cásper Líbero e autor de
"Folha Explica Montaigne" (Publifolha).
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