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A linha do tempo
As concepções ilustradas de história
JORGE GRESPAN
Ilustração e História
Maria das Graças de Souza
Discurso Editorial
(Tel. 0/xx/11/xx/3814-5383)
248 págs., R$ 24,00
Fiel ao assunto de que trata, este
livro procura justamente desfazer
mitos. Só que, nesse caso, trata-se
de mitos sobre o próprio Iluminismo. Já de início, um livro a respeito do "pensamento sobre a história no Iluminismo francês", como diz seu subtítulo, parece incorrer numa contradição de termos, pois os filósofos do século 18
são acusados de universalismo
cosmopolita, concebendo uma
"natureza" humana que despreza
as diferenças. A história foi, por
isso, precisamente a arma usada
contra eles por seus críticos posteriores: as especificidades e variações do social no tempo evidenciariam o abuso representado por
semelhante linguagem generalizante. Como poderiam os iluministas então pensar a história?
Sua reflexão sobre ela, para ser
coerente com sua concepção de
que o homem é universal na qualidade de ser racional, só poderia
definir a história como uma marcha inevitável e triunfal da razão.
Daí o famigerado otimismo iluminista no progresso humano.
Esses lugares comuns não resistem, no entanto, a um exame
mais atento, como o proposto no
presente livro.
Em primeiro lugar, a vasta gama de autores e obras produzidas
pela chamada filosofia das "luzes"
não pode ser considerada um
movimento uno e unívoco, ao
contrário da imagem que dela ficou para a posteridade. Desse
modo, é preciso apreender a diversidade e a complexidade também de suas concepções da história, formuladas desde perspectivas distintas, às vezes até opostas.
Mas isso introduz um novo problema para quem quiser estudá-lo em profundidade: seria o caso
de tentar inventariar, à maneira
de uma "enciclopédia", tudo o
que foi então escrito sobre o tema,
correndo os riscos alternativos de
uma abordagem curta e superficial, ou de outra, longa e talvez enfadonha em sua erudição? Desde
logo é preciso dizer que o texto de
Maria das Graças de Souza consegue ser erudito sem nunca perder
de vista o rumo assinalado por
seu objetivo principal. É que a autora traça uma estratégia inteligente, sintetizando a diversidade
do assunto em três eixos fundamentais.
Assim, se no Iluminismo predomina a idéia da história como trajetória linear, sepultando as concepções cíclicas que o Renascimento resgatara da Antiguidade,
a "linha do tempo" pode ser entendida a partir de três posições:
retrospectivamente, seu sentido
estaria no passado; prospectivamente, no futuro; ou o significado
da história seria dado pelo presente, desde que suas condições
fossem o ponto de convergência
das anteriores e posteriores.
De fato, a própria idéia de Renascimento da cultura do mundo
antigo propiciou a comparação
entre as obras modernas e as dos
autores gregos e romanos, originando a conhecida "querela dos
antigos e dos modernos", que
marcou os séculos 17 e 18. Havia,
portanto, aqueles que tomavam o
partido dos antigos, para quem a
cultura do passado seria melhor e
mais significativa que a do presente, de forma que a história teria uma trajetória declinante; e
havia os partidários dos modernos, para quem a história registraria a linha ascendente do aperfeiçoamento ilimitado do homem.
Esta última idéia se generalizou
e caracterizou o Iluminismo, mas
jamais foi unânime. Há quem diga até que a visão da história como declínio era majoritária, mesmo entre os filósofos das "luzes",
com o ilustre exemplo de historiadores importantes na época, como Gibbon e Hume. Por isso, o
pensamento de Rousseau aparece
como continuador dessa tradição
e se impõe como síntese dela, conforme a estratégia de exposição
observada por "Ilustração e História": a concepção de decadência
encontra aí sua expressão mais
clara e completa, pois Rousseau
não negava o "progresso das ciências e das artes", demonstrando,
entretanto, que ele conduzia antes
ao enfraquecimento da virtude e
do sentimento moral que ao
"aperfeiçoamento dos costumes".
O partido dos modernos
Por outro lado, ainda de acordo
com a estratégia do livro, o partido dos modernos é representado
pelo pensamento emblemático de
Voltaire. Mas atenção: embora esse filósofo conceba a história como progresso, tal movimento não
é inevitável nem exclui completamente o dos ciclos. Coerente com
seu ceticismo, Voltaire era cauteloso ao falar de progresso, sinalizando as recaídas e regressões históricas e evitando qualquer tipo
de visão providencialista, seja religiosa, seja filosófica, com sua fatal
confiança no caráter necessário
do futuro.
Maria das Graças é muito feliz
em enfatizar essa cautela e descrever as nuanças da obra de Voltaire, retomando seus textos sobre
história e o importante "Ensaio
sobre os Costumes". Aí se revela a
figura de um hábil historiador,
preocupado não só com a política
e o comércio mas também, e principalmente, com os costumes, a
religião, as artes e as ciências, mediante os quais ele caracteriza os
diferentes "espíritos dos povos".
Registre-se, de passagem, a longa
descendência deste último conceito, marcante no idealismo e no
historicismo alemães.
A Voltaire, que preferia as instituições políticas inglesas às da antiga Roma, contrapõe-se Rousseau, para quem o declínio histórico é marcado pelas sucessivas
formas de desigualdade social e
política, até o abominável despotismo do presente. Desde a introdução da propriedade privada,
origem da divisão entre ricos e
pobres, e a consequente criação
do Estado político, o homem viria
se afastando da sua virtude original, substituída pela hipocrisia.
E se esses dois filósofos são emblemáticos, porque sintetizam as
concepções opostas que encontram o sentido do tempo no futuro ou no passado, ambos convergem, por sua vez, na perspectiva
do presente, de Condorcet. Esta
última síntese constitui o terceiro
e último eixo de análise de "Ilustração e História". É o momento
da Revolução Francesa, na qual
ele toma parte ativa pelo partido
jacobino. Sabemos que só então o
pensamento político de Rousseau
foi objeto da consideração devida,
levantando-se a bandeira da
igualdade à mesma altura à da liberdade. E é pela repulsa às desigualdades, pela busca das formas
ideais de soberania popular, que o
pensamento do genebrino alcança o de Condorcet.
Temos aqui, no fundo, o ponto
central em que se apoia a argumentação do livro. Nele não se
trata apenas da reconstituição de
uma filosofia do passado, mas do
balanço de uma atitude filosófica
em suas permanências. E, nesse
balanço, o diálogo incessante do
livro com os críticos do Iluminismo tem seu momento crucial na
interpretação de Rousseau. Por
um lado, a crítica encontra nele a
ruptura com o otimismo sobre o
progresso inevitável, característico das "luzes". Por outro, ao apresentá-lo como continuador de
uma tradição que concebia a história como declínio na mesma
época em que outros viam nela
um avanço, Maria das Graças
aponta para a complexidade das
definições iluministas, que não
podem ser limitadas simplesmente à crença no progresso. E, assim,
restitui Rousseau ao seu século e
problematiza a crítica já na sua
raiz.
Mais ainda, seus argumentos
colocam Condorcet não só na linhagem de Voltaire, mas também
na de Rousseau: do primeiro ele
herda o conceito de progresso,
mas rejeita o ceticismo conforme
o qual esse progresso não seria
automático; do segundo ele recusa a idéia de decadência, mas reconhece a necessidade do acontecer e o ideal de uma sociedade em
que o povo é o soberano.
O otimismo de Condorcet, porém, ultrapassa a mera convicção
filosófica, vindo de sua atuação
revolucionária e de sua aguda
percepção do caráter transformador do momento em que vivia.
Daí o presente ser para ele o ponto
de convergência do passado e do
futuro. E é a presença desse novo
conceito de revolução em sua
obra que a torna o ponto culminante do livro de Maria das Graças, permitindo enfim um acordo
com uma certa crítica ao Iluminismo: de fato, se muito do que
então se pensou não se mantém, é
preciso resgatar "a esperança aí
contida", a promessa utópica ainda por realizar. O presente revolucionário abre um campo de múltiplas possibilidades, projetando-se não só para o futuro como para
a redefinição do passado. Assim,
se o livro começa com uma epígrafe de Adorno, ao final, a lembrança de Benjamin é inevitável.
Jorge Grespan é professor de história
da USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).
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