São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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A linha do tempo

As concepções ilustradas de história

JORGE GRESPAN

Ilustração e História
Maria das Graças de Souza
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/xx/3814-5383)
248 págs., R$ 24,00

Fiel ao assunto de que trata, este livro procura justamente desfazer mitos. Só que, nesse caso, trata-se de mitos sobre o próprio Iluminismo. Já de início, um livro a respeito do "pensamento sobre a história no Iluminismo francês", como diz seu subtítulo, parece incorrer numa contradição de termos, pois os filósofos do século 18 são acusados de universalismo cosmopolita, concebendo uma "natureza" humana que despreza as diferenças. A história foi, por isso, precisamente a arma usada contra eles por seus críticos posteriores: as especificidades e variações do social no tempo evidenciariam o abuso representado por semelhante linguagem generalizante. Como poderiam os iluministas então pensar a história?
Sua reflexão sobre ela, para ser coerente com sua concepção de que o homem é universal na qualidade de ser racional, só poderia definir a história como uma marcha inevitável e triunfal da razão. Daí o famigerado otimismo iluminista no progresso humano. Esses lugares comuns não resistem, no entanto, a um exame mais atento, como o proposto no presente livro.
Em primeiro lugar, a vasta gama de autores e obras produzidas pela chamada filosofia das "luzes" não pode ser considerada um movimento uno e unívoco, ao contrário da imagem que dela ficou para a posteridade. Desse modo, é preciso apreender a diversidade e a complexidade também de suas concepções da história, formuladas desde perspectivas distintas, às vezes até opostas.
Mas isso introduz um novo problema para quem quiser estudá-lo em profundidade: seria o caso de tentar inventariar, à maneira de uma "enciclopédia", tudo o que foi então escrito sobre o tema, correndo os riscos alternativos de uma abordagem curta e superficial, ou de outra, longa e talvez enfadonha em sua erudição? Desde logo é preciso dizer que o texto de Maria das Graças de Souza consegue ser erudito sem nunca perder de vista o rumo assinalado por seu objetivo principal. É que a autora traça uma estratégia inteligente, sintetizando a diversidade do assunto em três eixos fundamentais.
Assim, se no Iluminismo predomina a idéia da história como trajetória linear, sepultando as concepções cíclicas que o Renascimento resgatara da Antiguidade, a "linha do tempo" pode ser entendida a partir de três posições: retrospectivamente, seu sentido estaria no passado; prospectivamente, no futuro; ou o significado da história seria dado pelo presente, desde que suas condições fossem o ponto de convergência das anteriores e posteriores.
De fato, a própria idéia de Renascimento da cultura do mundo antigo propiciou a comparação entre as obras modernas e as dos autores gregos e romanos, originando a conhecida "querela dos antigos e dos modernos", que marcou os séculos 17 e 18. Havia, portanto, aqueles que tomavam o partido dos antigos, para quem a cultura do passado seria melhor e mais significativa que a do presente, de forma que a história teria uma trajetória declinante; e havia os partidários dos modernos, para quem a história registraria a linha ascendente do aperfeiçoamento ilimitado do homem.
Esta última idéia se generalizou e caracterizou o Iluminismo, mas jamais foi unânime. Há quem diga até que a visão da história como declínio era majoritária, mesmo entre os filósofos das "luzes", com o ilustre exemplo de historiadores importantes na época, como Gibbon e Hume. Por isso, o pensamento de Rousseau aparece como continuador dessa tradição e se impõe como síntese dela, conforme a estratégia de exposição observada por "Ilustração e História": a concepção de decadência encontra aí sua expressão mais clara e completa, pois Rousseau não negava o "progresso das ciências e das artes", demonstrando, entretanto, que ele conduzia antes ao enfraquecimento da virtude e do sentimento moral que ao "aperfeiçoamento dos costumes".

O partido dos modernos
Por outro lado, ainda de acordo com a estratégia do livro, o partido dos modernos é representado pelo pensamento emblemático de Voltaire. Mas atenção: embora esse filósofo conceba a história como progresso, tal movimento não é inevitável nem exclui completamente o dos ciclos. Coerente com seu ceticismo, Voltaire era cauteloso ao falar de progresso, sinalizando as recaídas e regressões históricas e evitando qualquer tipo de visão providencialista, seja religiosa, seja filosófica, com sua fatal confiança no caráter necessário do futuro.
Maria das Graças é muito feliz em enfatizar essa cautela e descrever as nuanças da obra de Voltaire, retomando seus textos sobre história e o importante "Ensaio sobre os Costumes". Aí se revela a figura de um hábil historiador, preocupado não só com a política e o comércio mas também, e principalmente, com os costumes, a religião, as artes e as ciências, mediante os quais ele caracteriza os diferentes "espíritos dos povos". Registre-se, de passagem, a longa descendência deste último conceito, marcante no idealismo e no historicismo alemães.
A Voltaire, que preferia as instituições políticas inglesas às da antiga Roma, contrapõe-se Rousseau, para quem o declínio histórico é marcado pelas sucessivas formas de desigualdade social e política, até o abominável despotismo do presente. Desde a introdução da propriedade privada, origem da divisão entre ricos e pobres, e a consequente criação do Estado político, o homem viria se afastando da sua virtude original, substituída pela hipocrisia.
E se esses dois filósofos são emblemáticos, porque sintetizam as concepções opostas que encontram o sentido do tempo no futuro ou no passado, ambos convergem, por sua vez, na perspectiva do presente, de Condorcet. Esta última síntese constitui o terceiro e último eixo de análise de "Ilustração e História". É o momento da Revolução Francesa, na qual ele toma parte ativa pelo partido jacobino. Sabemos que só então o pensamento político de Rousseau foi objeto da consideração devida, levantando-se a bandeira da igualdade à mesma altura à da liberdade. E é pela repulsa às desigualdades, pela busca das formas ideais de soberania popular, que o pensamento do genebrino alcança o de Condorcet.
Temos aqui, no fundo, o ponto central em que se apoia a argumentação do livro. Nele não se trata apenas da reconstituição de uma filosofia do passado, mas do balanço de uma atitude filosófica em suas permanências. E, nesse balanço, o diálogo incessante do livro com os críticos do Iluminismo tem seu momento crucial na interpretação de Rousseau. Por um lado, a crítica encontra nele a ruptura com o otimismo sobre o progresso inevitável, característico das "luzes". Por outro, ao apresentá-lo como continuador de uma tradição que concebia a história como declínio na mesma época em que outros viam nela um avanço, Maria das Graças aponta para a complexidade das definições iluministas, que não podem ser limitadas simplesmente à crença no progresso. E, assim, restitui Rousseau ao seu século e problematiza a crítica já na sua raiz.
Mais ainda, seus argumentos colocam Condorcet não só na linhagem de Voltaire, mas também na de Rousseau: do primeiro ele herda o conceito de progresso, mas rejeita o ceticismo conforme o qual esse progresso não seria automático; do segundo ele recusa a idéia de decadência, mas reconhece a necessidade do acontecer e o ideal de uma sociedade em que o povo é o soberano.
O otimismo de Condorcet, porém, ultrapassa a mera convicção filosófica, vindo de sua atuação revolucionária e de sua aguda percepção do caráter transformador do momento em que vivia. Daí o presente ser para ele o ponto de convergência do passado e do futuro. E é a presença desse novo conceito de revolução em sua obra que a torna o ponto culminante do livro de Maria das Graças, permitindo enfim um acordo com uma certa crítica ao Iluminismo: de fato, se muito do que então se pensou não se mantém, é preciso resgatar "a esperança aí contida", a promessa utópica ainda por realizar. O presente revolucionário abre um campo de múltiplas possibilidades, projetando-se não só para o futuro como para a redefinição do passado. Assim, se o livro começa com uma epígrafe de Adorno, ao final, a lembrança de Benjamin é inevitável.


Jorge Grespan é professor de história da USP e autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).



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