São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Compreendendo nosso lugar no todo

Como ser feliz?

A Doutrina dos Modos de Percepção e o Conceito de Abstração na Filosofia de Espinosa
Lívio Teixeira
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
198 págs., R$ 28,00

HOMERO SANTIAGO

Lívio Teixeira foi dos primeiros brasileiros a assumir a docência em filosofia na Universidade de São Paulo, antes encargo exclusivo de franceses. Dedicou-se à história da filosofia e particularmente à da época moderna; empenho de que nasceram ao menos dois trabalhos fundamentais: o "Ensaio sobre a Moral de Descartes" (ed. Brasiliense, 1990) e este agora reeditado, tese de livre-docência primeiramente publicada em 1954, em boletim da Faculdade de Filosofia da USP.
Essas obras constituem o marco de uma tradição, de um modo de fazer história da filosofia; e, no caso do livro sobre Espinosa, isso é ainda mais verdadeiro. Entre nós, após algumas tentativas de Farias Brito no século 19 e uns artigos esparsos (textos há pouco coligidos no nš 7 dos "Cadernos Espinosanos", editados na USP), a tese de Lívio foi o primeiro estudo sistemático da filosofia espinosana, deixando um legado que, não obstante a primeira edição restrita, pode perseguir-se em outras tantas teses universitárias e mais visivelmente no recente livro de Marilena Chaui, "A Nervura do Real" (aliás, entenda o leitor como discreta homenagem ser Lívio a única "fonte secundária" citada no corpo do texto, pág. 657), editado pela Cia. das Letras.
Não só no plano local, porém, tais estudos fizeram fortuna. Em sua apresentação do "Ensaio", Bento Prado Jr. deslindou uma trama que o situa em meio ao debate entre Martial Gueroult e Maurice Merleau-Ponty, à maneira de "pequeno capítulo brasileiro da história da interpretação francesa de Descartes". Ainda que tanto não se possa dizer deste livro sobre Espinosa, vale mencionar aqui ao menos um juízo, de P.-F. Moreau ("Spinoza, l'Expérience et l'Éternité", 1994), em estudo que ora faz autoridade na academia francesa: "É o melhor estudo sobre a questão".
O mote de "A Doutrina dos Modos de Percepção e o Conceito de Abstração na Filosofia de Espinosa" é mais ou menos simples.
Sempre percebemos o mundo (o verbo aí devendo ser compreendido em sua acepção clássica): vemos o Sol, ouvimos e entendemos as palavras de alguém, compreendemos um teorema geométrico -nesses casos todos, percebemos.
Em sua primeira obra, o "Tratado da Reforma da Inteligência" (traduzido por Teixeira para a Cia. Ed. Nacional, 1966), Espinosa dá a seguinte classificação dos "modos de perceber": 1) percepção por ouvir dizer; 2) percepção por experiência vaga, não determinada pelo intelecto; 3) percepção em que a essência de uma coisa se conclui de outra, mas inadequadamente, pois do efeito à causa ou a partir de algo universal; 4) percepção de algo só por sua essência ou por sua causa próxima, de maneira adequada.
Para aclarar a classificação, Espinosa oferece um "exemplo único": a análise de como em cada modo procedemos para, "dados três números, procurar um quarto que esteja para o terceiro como o segundo está para o primeiro".

A abstração
O mesmo quadro e o mesmo exemplo reaparecerão com pequenas modificações em ainda dois outros trabalhos espinosanos: o "Breve Tratado" e a "Ética", esta de 1677. O estudo de Lívio constrói-se, tripartidamente, pela investigação em cada uma dessas obras da persistência de uma doutrina que ele mostra inalterada através dos anos e de importância estrutural para todo o sistema espinosano. O segredo da armação, que nos leva com mãos seguras dos modos de percepção à inteireza do sistema, é a proeminência dada ao conceito presente na segunda metade do título do livro: a abstração.
Porventura mais que nenhuma outra, a filosofia de Espinosa emulou a totalidade e fez de sua compreensão um mister. Para ele, explica Teixeira, "conhecer a realidade é conhecer o todo. Só conhecemos a parte a partir do todo ou integrada no todo". A abstração, pois, consoante seu sentido etimológico, é separação; distanciamo-nos do real, do concreto, fazemos da parte um todo, contentamo-nos em forjar universais (por exemplo, a humanidade) ao invés de nos voltarmos para as coisas singulares (por exemplo, este ou aquele homem).
Tanto é assim que a não-abstração é a marca peculiar do mais alto modo de percepção, denominado "ciência intuitiva". Para o espinosismo, a verdade só vibra fortemente quando pensamos o concreto, as coisas particulares, a totalidade e suas conexões. E, por isso, como resposta à questão: como não pensar abstratamente?, vem o tema da reforma da inteligência, sua "emenda" ("emendatio", diz Espinosa), definida por Teixeira como "uma nova atitude em relação à maneira de pensar sobre o seu próprio pensamento".
Termos significativos: o cuidado em não se perder em abstrações, portanto pensar nosso pensamento e nossas relações com o real, equivale ao esforço de repensar também nossas atitudes diante do real. Por compreendê-lo, este estudo não é mera apresentação da teoria do conhecimento espinosana, mas a demonstração profunda de que tudo no espinosismo encaminha para uma só interrogação: como sermos felizes?
Uma bem-sucedida reforma da inteligência deve ser simultânea a uma reforma da vida. A abstração é a matriz de superstições, a ignorância é uma tristeza. Conhecer o todo, compreender nosso lugar nele, é via segura para, ao invés de nos perdermos em lamentos sobre o que o mundo deveria ser, assumirmos uma atitude serena e feliz ao viver o mundo como ele é.
É nessa medida, pensamos, que este estudo pode interessar a um espectro de leitores bem mais amplo que só o dos estudiosos do espinosismo. De suas páginas salienta-se uma concepção de filosofia que, até pela distância que se interpõe entre o século 17 e o nosso, convida-nos à reflexão sobre o papel da filosofia hoje. O que a exigência espinosana da totalidade teria a dizer daquela "guerra ao todo" pregada, como sintoma de novos tempos, por Jean-François Lyotard ("O Pós-Moderno Explicado às Crianças") ou então de uma ciência cuja autonomia bem amiúde se dá a despeito de nós próprios? Esse Espinosa, segundo Lívio Teixeira, traz a quem quiser ler preciosas sugestões quanto ao papel da filosofia diante da "ensimesmice" científica e da fragmentação pós-moderna.
Uma filosofia que não claudica perante a vida, não se mete em abstrações e, principalmente, não deixa a emulação do todo e da felicidade encontrar seu refúgio último no auto-ajudismo e nos diversos misticismos.


Homero Santiago é doutorando em filosofia pela USP e tradutor de "O Espinosismo", de Victor Delbos (Discurso).

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