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Compreendendo nosso lugar no todo
Como ser feliz?
A Doutrina dos Modos
de Percepção e o Conceito
de Abstração na Filosofia
de Espinosa
Lívio Teixeira
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
198 págs., R$ 28,00
HOMERO SANTIAGO
Lívio Teixeira foi dos primeiros
brasileiros a assumir a docência
em filosofia na Universidade de
São Paulo, antes encargo exclusivo de franceses. Dedicou-se à história da filosofia e particularmente à da época moderna; empenho
de que nasceram ao menos dois
trabalhos fundamentais: o "Ensaio sobre a Moral de Descartes"
(ed. Brasiliense, 1990) e este agora
reeditado, tese de livre-docência
primeiramente publicada em
1954, em boletim da Faculdade de
Filosofia da USP.
Essas obras constituem o marco
de uma tradição, de um modo de
fazer história da filosofia; e, no caso do livro sobre Espinosa, isso é
ainda mais verdadeiro. Entre nós,
após algumas tentativas de Farias
Brito no século 19 e uns artigos esparsos (textos há pouco coligidos
no nš 7 dos "Cadernos Espinosanos", editados na USP), a tese de
Lívio foi o primeiro estudo sistemático da filosofia espinosana,
deixando um legado que, não
obstante a primeira edição restrita, pode perseguir-se em outras
tantas teses universitárias e mais
visivelmente no recente livro de
Marilena Chaui, "A Nervura do
Real" (aliás, entenda o leitor como discreta homenagem ser Lívio
a única "fonte secundária" citada
no corpo do texto, pág. 657), editado pela Cia. das Letras.
Não só no plano local, porém,
tais estudos fizeram fortuna. Em
sua apresentação do "Ensaio",
Bento Prado Jr. deslindou uma
trama que o situa em meio ao debate entre Martial Gueroult e
Maurice Merleau-Ponty, à maneira de "pequeno capítulo brasileiro
da história da interpretação francesa de Descartes". Ainda que
tanto não se possa dizer deste livro sobre Espinosa, vale mencionar aqui ao menos um juízo, de
P.-F. Moreau ("Spinoza, l'Expérience et l'Éternité", 1994), em estudo que ora faz autoridade na
academia francesa: "É o melhor
estudo sobre a questão".
O mote de "A Doutrina dos Modos de Percepção e o Conceito de
Abstração na Filosofia de Espinosa" é mais ou menos simples.
Sempre percebemos o mundo
(o verbo aí devendo ser compreendido em sua acepção clássica): vemos o Sol, ouvimos e entendemos as palavras de alguém,
compreendemos um teorema
geométrico -nesses casos todos,
percebemos.
Em sua primeira obra, o "Tratado da Reforma da Inteligência"
(traduzido por Teixeira para a
Cia. Ed. Nacional, 1966), Espinosa
dá a seguinte classificação dos
"modos de perceber": 1) percepção por ouvir dizer; 2) percepção
por experiência vaga, não determinada pelo intelecto; 3) percepção em que a essência de uma coisa se conclui de outra, mas inadequadamente, pois do efeito à causa ou a partir de algo universal; 4)
percepção de algo só por sua essência ou por sua causa próxima,
de maneira adequada.
Para aclarar a classificação, Espinosa oferece um "exemplo único": a análise de como em cada
modo procedemos para, "dados
três números, procurar um quarto que esteja para o terceiro como
o segundo está para o primeiro".
A abstração
O mesmo quadro e o mesmo
exemplo reaparecerão com pequenas modificações em ainda
dois outros trabalhos espinosanos: o "Breve Tratado" e a "Ética",
esta de 1677. O estudo de Lívio
constrói-se, tripartidamente, pela
investigação em cada uma dessas
obras da persistência de uma
doutrina que ele mostra inalterada através dos anos e de importância estrutural para todo o sistema espinosano. O segredo da armação, que nos leva com mãos seguras dos modos de percepção à
inteireza do sistema, é a proeminência dada ao conceito presente
na segunda metade do título do livro: a abstração.
Porventura mais que nenhuma
outra, a filosofia de Espinosa
emulou a totalidade e fez de sua
compreensão um mister. Para ele,
explica Teixeira, "conhecer a realidade é conhecer o todo. Só conhecemos a parte a partir do todo
ou integrada no todo". A abstração, pois, consoante seu sentido
etimológico, é separação; distanciamo-nos do real, do concreto,
fazemos da parte um todo, contentamo-nos em forjar universais
(por exemplo, a humanidade) ao
invés de nos voltarmos para as
coisas singulares (por exemplo,
este ou aquele homem).
Tanto é assim que a não-abstração é a marca peculiar do mais alto modo de percepção, denominado "ciência intuitiva". Para o
espinosismo, a verdade só vibra
fortemente quando pensamos o
concreto, as coisas particulares, a
totalidade e suas conexões. E, por
isso, como resposta à questão: como não pensar abstratamente?,
vem o tema da reforma da inteligência, sua "emenda" ("emendatio", diz Espinosa), definida por
Teixeira como "uma nova atitude
em relação à maneira de pensar
sobre o seu próprio pensamento".
Termos significativos: o cuidado em não se perder em abstrações, portanto pensar nosso pensamento e nossas relações com o
real, equivale ao esforço de repensar também nossas atitudes diante do real. Por compreendê-lo, este estudo não é mera apresentação da teoria do conhecimento espinosana, mas a demonstração
profunda de que tudo no espinosismo encaminha para uma só interrogação: como sermos felizes?
Uma bem-sucedida reforma da
inteligência deve ser simultânea a
uma reforma da vida. A abstração
é a matriz de superstições, a ignorância é uma tristeza. Conhecer o
todo, compreender nosso lugar
nele, é via segura para, ao invés de
nos perdermos em lamentos sobre o que o mundo deveria ser, assumirmos uma atitude serena e
feliz ao viver o mundo como ele é.
É nessa medida, pensamos, que
este estudo pode interessar a um
espectro de leitores bem mais amplo que só o dos estudiosos do espinosismo. De suas páginas salienta-se uma concepção de filosofia que, até pela distância que se
interpõe entre o século 17 e o nosso, convida-nos à reflexão sobre o
papel da filosofia hoje. O que a
exigência espinosana da totalidade teria a dizer daquela "guerra ao
todo" pregada, como sintoma de
novos tempos, por Jean-François
Lyotard ("O Pós-Moderno Explicado às Crianças") ou então de
uma ciência cuja autonomia bem
amiúde se dá a despeito de nós
próprios? Esse Espinosa, segundo
Lívio Teixeira, traz a quem quiser
ler preciosas sugestões quanto ao
papel da filosofia diante da "ensimesmice" científica e da fragmentação pós-moderna.
Uma filosofia que não claudica
perante a vida, não se mete em
abstrações e, principalmente, não
deixa a emulação do todo e da felicidade encontrar seu refúgio último no auto-ajudismo e nos diversos misticismos.
Homero Santiago é doutorando em filosofia pela USP e tradutor de "O Espinosismo", de Victor Delbos (Discurso).
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