São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Ensaios de Perry Anderson apostam num marxismo capaz de aprofundar a democracia liberal

Um marxismo renovado

Afinidades Seletivas
Perry Anderson
Seleção e apresentação: Emir Sader
Tradução: Paulo Cesar Castanheira
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3875-7250)
382 págs., R$ 38,00

RICARDO MUSSE

Em "Considerações sobre o Marxismo Ocidental" (1976, publicado no Brasil pela ed. Brasiliense), Perry Anderson destacou algumas coordenadas gerais desse movimento, apreendido como uma tradição intelectual. Condenou o abandono do exame preferencial das estruturas econômicas e políticas, em particular do Estado burguês, e da estratégia necessária para derrubá-lo. Os marxistas continentais, na linhagem aberta por Gramsci e Lukács, teriam promovido o retorno da cultura burguesa, deslocando a teoria para temas culturais, filosóficos e até mesmo estéticos.
Essa mesma crítica, no entanto, poderia ser dirigida hoje ao autor de "Afinidades Seletivas", uma coletânea que se debruça, entre outras, sobre a obra de John Rawls, Isaiah Berlin, Mangabeira Unger, Marshall Berman e Norberto Bobbio. Teria Perry Anderson abjurado suas convicções anteriores e aderido ao programa do marxismo ocidental?
Convém antes fazer um esclarecimento. "Afinidades Seletivas" consiste em uma tradução ampliada de "A Zone of Engagement". A primeira versão dessa obra em português -"Zona de Compromisso" (Unesp, 1996)- reproduzia, estranhamente, apenas quatro artigos do original. "Afinidades Seletivas" traz os ensaios restantes, acrescidos de outros textos de mesma estirpe, publicados na "New Left Review".

Rumos da "Nova Esquerda"
A divergência de Perry Anderson em relação ao marxismo ocidental assentava-se sobretudo na definição acerca do projeto do trabalho intelectual mais pertinente naquela quadra histórica. Tratava-se de um dos pontos da discussão sobre os rumos da "Nova Esquerda" anglo-saxônica, encorpada à época pelos acontecimentos de Maio de 1968 e pelas manifestações contra a Guerra do Vietnã.
A partir dos anos 1970, grande parte desse programa foi executada por Anderson e seus colegas de geração. A questão do Estado no Ocidente -abordada primeiramente por Barrington Moore Jr. ("As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia", ed. Martins Fontes) e em seguida por Anderson ("Linhagens do Estado Absolutista", ed. Brasiliense)- foi retomada nos anos 1990 por Charles Tilly ("Coerção, Capital e Estados Europeus", Edusp). O próprio Anderson examinou a transição do declínio e queda do Império Romano para a sociedade medieval, em "Passagens da Antiguidade ao Feudalismo" (1976, ed. Brasiliense), ao mesmo tempo em que seu colega na "New Left Review", Robert Brenner, debruçava-se sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo, gerando uma polêmica reunida depois em "The Brenner Debate".
"As Antinomias de Gramsci", o ensaio mais antigo (1976) e extenso de "Afinidades Seletivas", cumpre à risca o programa que Anderson contrapôs ao marxismo ocidental. As noções de hegemonia, Estado e sociedade civil são submetidas a uma exegese rigorosa, que procura deslindar as relações entre esses conceitos, levando em conta as condições em que o texto foi escrito (sob a censura fascista).
O fulcro dessa constelação são as diferenças entre a forma adquirida pelo Estado nos países centrais e na periferia (na linguagem da época, entre Ocidente e Oriente), da qual decorrem estratégias distintas para a conquista do poder.
Gramsci, no entanto, teria oscilado sobre o modo de resolver esse problema, o que se torna patente nas três maneiras distintas com que concebe a relação entre hegemonia, Estado e sociedade civil. Perry Anderson procura esclarecer os termos da questão, reconstituindo com admirável precisão a recepção dessas três posições pelo marxismo da época, assim como o debate anterior no âmbito da Segunda e da Terceira Internacionais -embora surpreendentemente ignore a "Introdução de 1895", de Engels, que estabeleceu a oposição entre guerra de movimentos e combate prolongado por posições, e apenas tangencie o debate sobre a Revolução Russa de 1905 na social-democracia alemã, que iniciou a distinção entre estratégia do Oriente e do Ocidente.
Nesse ensaio, Anderson retoma tópicos de sua crítica ao marxismo ocidental, seja acusando Gramsci de uma aproximação com o idealismo de Benedetto Croce (a famigerada cultura burguesa), seja refutando a supervalorização da cultura em detrimento do papel da coerção na análise do Estado. Mas também aproxima-se do campo do marxismo ocidental não só ao apoiar suas considerações na obra de um de seus fundadores (Gramsci) como ao se deparar com a questão que mais marcou esse movimento: o "fenômeno do consentimento popular institucionalizado em relação ao capital no Ocidente".

Estabilização do capitalismo
Apenas uma parcela da obra de Perry Anderson dedica-se, no entanto, à investigação das estruturas do poder capitalista. A outra vertente de seu trabalho de historiador concentra-se, desde os anos de 1960, precisamente na inquirição das coordenadas do debate cultural do século 20. Aos ensaios sobre a cultura na Inglaterra, coligidos posteriormente em "English Questions", seguiu-se o balanço de "Considerações sobre o Marxismo Ocidental" (1976), que teve uma espécie de continuação, em 1983, com "In the Tracks of Historical Materialism" (traduzido no Brasil como "A Crise da Crise do Marxismo", ed. Brasiliense), o qual examina os desdobramentos da teoria crítica na década de 1970 e seu confronto com o pós-estruturalismo francês.
É a partir da junção dessa vertente de "história da cultura" com a questão da estabilização do capitalismo que podemos entender, assim, a nova inflexão dos ensaios de Anderson, reunidos em "A Zone of Engagement" (1992). Ao longo da década de 1980 desaparece sem deixar vestígios o ambiente histórico a que Anderson alude em "As Antinomias de Gramsci": a esperança suscitada pela revolta de Maio de 1968 na França, pela "Revolução dos Cravos", em Portugal (1974), sem contar a força dos PCs da Itália e da Espanha, recém-convertidos ao "eurocomunismo".
"Afinidades Seletivas" abandona os panoramas históricos. Seus textos consistem em resenhas longas, ensaísticas, um gênero pouco praticado entre nós. O arco de abrangência estende-se da sociologia e da história, passando pela política e o pensamento socialista até a esfera da estética. Reencontramos a prática interdisciplinar distintiva da tradição marxista, avessa a especializações acadêmicas. A que se soma um inigualável domínio das questões, das discussões internas e mesmo das controvérsias metodológicas próprias a cada uma dessas disciplinas. Além disso, diferentemente dos marxistas ocidentais, em geral presos a sua cultura nacional, Anderson circula com igual desenvoltura pelo pensamento anglo-saxônico, alemão, francês e italiano.
Os ensaios combinam -segundo pesos específicos diferentes, que variam caso a caso- uma apresentação da obra (às vezes também da vida) do pensador em questão, a análise minuciosa de um de seus livros (em geral inspirador do artigo) e um tratamento abrangente de algum problema subjacente. O procedimento crítico privilegia a lógica interna de argumentação. Atento às incongruências, seu alvo prioritário são as antinomias próprias a cada autor ou livro, que procura desdobrar ao máximo.
Só depois de destacar esse núcleo contraditório é que Anderson procura esclarecê-lo, confrontando-o com o contexto histórico. A aplicação desse "método" concede aos textos uma imparcialidade e objetividade (de historiador) tal que desmente o axioma filosófico de que, ao comentar o alheio, fala-se sobretudo de si.
Alguns ensaios retomam e complementam a obra anterior de Perry Anderson. Os perfis de Isaac Deutscher e Sebastiano Timpanaro destacam dois marxistas que exerceram muita influência sobre a geração da "New Left Review" e cuja extemporaneidade não possibilitou sua inclusão nos panoramas anteriores. Deutscher tinha a formação e os interesses da geração revolucionária de Lênin, Rosa Luxemburgo e Trótsky, embora fosse contemporâneo do marxismo ocidental.
Sua obra debruçou-se sobre os desenvolvimentos da revolução de 1917. Suas análises, perspicazes e realistas, acerca do que acontecia no mundo do "socialismo real", não o impediam de apostar em um desdobramento na direção da democracia socialista, uma esperança compartilhada por Anderson. Já Timpanaro manteve-se alheio e crítico do marxismo ocidental, embora sua trajetória intelectual e os temas de sua obra fossem muito semelhantes ao itinerário e aos assuntos dos membros desse movimento.
As obras de Michael Mann e Ste. Croix retomam o recorte histórico e um pouco da perspectiva do par complementar "Passagens da Antiguidade ao Feudalismo" e "Linhagens do Estado Absolutista". Ste. Croix trata das lutas de classe como bases históricas das formas sucessivas do Estado e da sociedade no mundo antigo. Apresenta também uma contribuição teórica para a discussão sobre as classes. "The Sources of Social Power", de Mann, propõe-se a constituir uma história e uma teoria das relações de domínio nas sociedades humanas. Estende-se das primeiras civilizações até o limiar da Revolução Industrial, investigando quatro fontes de poder social: econômica, ideológica, política e militar. Anderson saúda efusivamente o livro e não hesita em colocá-lo em pé de igualdade com "Economia e Sociedade", de Max Weber.
Dois outros clássicos da historiografia dos anos de 1980 já não recebem o mesmo tratamento. O ensaio sobre Carlo Ginzburg (em "Zona de Compromisso") detém-se em "História Noturna" (Cia. das Letras). Apesar de reconhecer a importância e a originalidade da interpretação de Ginzburg acerca do sabá, Anderson refuta os principais passos de sua construção, recorrendo, com uma erudição impressionante, às próprias fontes bibliográficas (em geral no campo da antropologia) e metodológicas do livro.
No artigo sobre Braudel (em "Zona de Compromisso"), Anderson intriga-se com a motivação que o teria levado a redigir, com quase 80 anos, uma história da França, projeto interrompido com sua morte em 1985. Em uma longa digressão que estabelece uma teoria acerca da substituição dos estudos sobre o caráter nacional pelos trabalhos sobre a identidade nacional, Anderson atribui os motivos de Braudel à persistência do nacionalismo na antevéspera da integração européia.
Na análise de "Tudo que é Sólido Desmancha no Ar" (Cia. das Letras), de Marshall Berman, outro "hit" da década de 1980, Anderson não se acanha em corrigir, com a bonomia que lhe é característica, os equívocos da compreensão de Berman dos conceitos de "modernização", "modernismo" e "modernidade". A interpretação histórica que Anderson fornece do modernismo estético é particularmente notável e deveria ser objeto de um estudo à parte, tarefa que ele cumpriu apenas parcialmente, em 1998, com "As Origens da Pós-Modernidade".
O ensaio que melhor permite entender as preocupações de Anderson, durante o período que se estende do final dos anos de 1970 até o desmoronamento do "socialismo real", em 1992, aborda Max Weber, autor cuja incorporação foi decisiva para a configuração do marxismo ocidental. O artigo desdobra, uma a uma, as antinomias weberianas, da dicotomia entre idealismo e materialismo até a contradição entre liberalismo e nacionalismo, num esforço dialético que lembra a crítica de Georg Lukács ao idealismo alemão em "História e Consciência de Classe".

Compreender o presente
O objetivo de Anderson, no entanto, não é esclarecer os efeitos sobre a consciência burguesa do fetichismo da mercadoria, mas compreender o presente histórico, a estabilização do capitalismo em um cenário de reestruturação produtiva e a possibilidade entreaberta de uma revolução democrática no Leste europeu.
A questão do conflito, concebido pelos marxistas como interno, mas que na história do século 20 muitas vezes foi submergido pelo antagonismo entre as nações, ressurge esporadicamente no decorrer do livro. Já o embate de Anderson com o liberalismo desdobra-se em ensaios sobre Rawls, Berlin, Unger e Bobbio. O artigo sobre Rawls, focado na análise de "Liberalismo Político", lamenta o recuo dessa obra em relação ao clássico "Uma Teoria da Justiça". Os panoramas conceituais de Berlin -acerbamente criticados por Anderson como modelos de "história das idéias"- são associados a sua adesão política e filosófica ao "pluralismo", um parti pris que muitas vezes transmuta-se em seu inverso.
Mangabeira Unger é saudado, ao lado de Edward Said e Salman Rushdie, como exemplo de intelectual do Terceiro Mundo que muito teria a ensinar ao Primeiro Mundo. A análise de Anderson ajuda a compreender melhor pontos obscuros da fracassada campanha presidencial de Ciro Gomes, como a indecisão acerca de base social de seu projeto transformador (um novo setor emergente ou a velha pequena burguesia?) e o modelo de presidencialismo plebiscitário.
O veredicto de Anderson sobre a possibilidade de uma junção entre liberalismo e socialismo só se completa nos artigos sobre Bobbio (acrescido da correspondência entre ambos). Ao destacar os limites de um liberalismo que tangencia, mas nunca incorpora devidamente, o socialismo, Perry Anderson deposita suas esperanças em um marxismo renovado, capaz de aprofundar, em seu projeto de socialismo, os valores e as instituições da democracia liberal.


Ricardo Musse é professor de sociologia na USP.

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