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Ensaios de Perry Anderson apostam num marxismo capaz de aprofundar a democracia liberal
Um marxismo renovado
Afinidades Seletivas
Perry Anderson
Seleção e apresentação: Emir Sader
Tradução: Paulo Cesar Castanheira
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3875-7250)
382 págs., R$ 38,00
RICARDO MUSSE
Em "Considerações sobre o Marxismo
Ocidental" (1976, publicado no Brasil pela ed. Brasiliense), Perry Anderson destacou algumas coordenadas gerais desse
movimento, apreendido como uma tradição intelectual. Condenou o abandono
do exame preferencial das estruturas econômicas e políticas, em particular do Estado burguês, e da estratégia necessária
para derrubá-lo. Os marxistas continentais, na linhagem aberta por Gramsci e
Lukács, teriam promovido o retorno da
cultura burguesa, deslocando a teoria para temas culturais, filosóficos e até mesmo estéticos.
Essa mesma crítica, no entanto, poderia
ser dirigida hoje ao autor de "Afinidades
Seletivas", uma coletânea que se debruça,
entre outras, sobre a obra de John Rawls,
Isaiah Berlin, Mangabeira Unger, Marshall Berman e Norberto Bobbio. Teria
Perry Anderson abjurado suas convicções anteriores e aderido ao programa do
marxismo ocidental?
Convém antes fazer um esclarecimento. "Afinidades Seletivas" consiste em
uma tradução ampliada de "A Zone of
Engagement". A primeira versão dessa
obra em português -"Zona de Compromisso" (Unesp, 1996)- reproduzia, estranhamente, apenas quatro artigos do
original. "Afinidades Seletivas" traz os
ensaios restantes, acrescidos de outros
textos de mesma estirpe, publicados na
"New Left Review".
Rumos da "Nova Esquerda"
A divergência de Perry Anderson em
relação ao marxismo ocidental assentava-se sobretudo na definição acerca do
projeto do trabalho intelectual mais pertinente naquela quadra histórica. Tratava-se de um dos pontos da discussão sobre os rumos da "Nova Esquerda" anglo-saxônica, encorpada à época pelos acontecimentos de Maio de 1968 e pelas manifestações contra a Guerra do Vietnã.
A partir dos anos 1970, grande parte
desse programa foi executada por Anderson e seus colegas de geração. A questão
do Estado no Ocidente -abordada primeiramente por Barrington Moore Jr.
("As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia", ed. Martins Fontes) e em seguida por Anderson ("Linhagens do Estado Absolutista", ed. Brasiliense)- foi
retomada nos anos 1990 por Charles Tilly
("Coerção, Capital e Estados Europeus",
Edusp). O próprio Anderson examinou a
transição do declínio e queda do Império
Romano para a sociedade medieval, em
"Passagens da Antiguidade ao Feudalismo" (1976, ed. Brasiliense), ao mesmo
tempo em que seu colega na "New Left
Review", Robert Brenner, debruçava-se
sobre a passagem do feudalismo para o
capitalismo, gerando uma polêmica reunida depois em "The Brenner Debate".
"As Antinomias de Gramsci", o ensaio
mais antigo (1976) e extenso de "Afinidades Seletivas", cumpre à risca o programa
que Anderson contrapôs ao marxismo
ocidental. As noções de hegemonia, Estado e sociedade civil são submetidas a
uma exegese rigorosa, que procura deslindar as relações entre esses conceitos,
levando em conta as condições em que o
texto foi escrito (sob a censura fascista).
O fulcro dessa constelação são as diferenças entre a forma adquirida pelo Estado nos países centrais e na periferia (na
linguagem da época, entre Ocidente e
Oriente), da qual decorrem estratégias
distintas para a conquista do poder.
Gramsci, no entanto, teria oscilado sobre o modo de resolver esse problema, o
que se torna patente nas três maneiras
distintas com que concebe a relação entre
hegemonia, Estado e sociedade civil.
Perry Anderson procura esclarecer os
termos da questão, reconstituindo com
admirável precisão a recepção dessas três
posições pelo marxismo da época, assim
como o debate anterior no âmbito da Segunda e da Terceira Internacionais
-embora surpreendentemente ignore a
"Introdução de 1895", de Engels, que estabeleceu a oposição entre guerra de movimentos e combate prolongado por posições, e apenas tangencie o debate sobre
a Revolução Russa de 1905 na social-democracia alemã, que iniciou a distinção
entre estratégia do Oriente e do Ocidente.
Nesse ensaio, Anderson retoma tópicos
de sua crítica ao marxismo ocidental, seja
acusando Gramsci de uma aproximação
com o idealismo de Benedetto Croce (a
famigerada cultura burguesa), seja refutando a supervalorização da cultura em
detrimento do papel da coerção na análise do Estado. Mas também aproxima-se
do campo do marxismo ocidental não só
ao apoiar suas considerações na obra de
um de seus fundadores (Gramsci) como
ao se deparar com a questão que mais
marcou esse movimento: o "fenômeno
do consentimento popular institucionalizado em relação ao capital no Ocidente".
Estabilização do capitalismo
Apenas uma parcela da obra de Perry
Anderson dedica-se, no entanto, à investigação das estruturas do poder capitalista. A outra vertente de seu trabalho de
historiador concentra-se, desde os anos
de 1960, precisamente na inquirição das
coordenadas do debate cultural do século
20. Aos ensaios sobre a cultura na Inglaterra, coligidos posteriormente em "English Questions", seguiu-se o balanço de
"Considerações sobre o Marxismo Ocidental" (1976), que teve uma espécie de
continuação, em 1983, com "In the
Tracks of Historical Materialism" (traduzido no Brasil como "A Crise da Crise do
Marxismo", ed. Brasiliense), o qual examina os desdobramentos da teoria crítica
na década de 1970 e seu confronto com o
pós-estruturalismo francês.
É a partir da junção dessa vertente de
"história da cultura" com a questão da estabilização do capitalismo que podemos
entender, assim, a nova inflexão dos ensaios de Anderson, reunidos em "A Zone
of Engagement" (1992). Ao longo da década de 1980 desaparece sem deixar vestígios o ambiente histórico a que Anderson
alude em "As Antinomias de Gramsci": a
esperança suscitada pela revolta de Maio
de 1968 na França, pela "Revolução dos
Cravos", em Portugal (1974), sem contar
a força dos PCs da Itália e da Espanha, recém-convertidos ao "eurocomunismo".
"Afinidades Seletivas" abandona os panoramas históricos. Seus textos consistem em resenhas longas, ensaísticas, um
gênero pouco praticado entre nós. O arco
de abrangência estende-se da sociologia e
da história, passando pela política e o
pensamento socialista até a esfera da estética. Reencontramos a prática interdisciplinar distintiva da tradição marxista,
avessa a especializações acadêmicas. A
que se soma um inigualável domínio das
questões, das discussões internas e mesmo das controvérsias metodológicas
próprias a cada uma dessas disciplinas.
Além disso, diferentemente dos marxistas ocidentais, em geral presos a sua cultura nacional, Anderson circula com
igual desenvoltura pelo pensamento anglo-saxônico, alemão, francês e italiano.
Os ensaios combinam -segundo pesos específicos diferentes, que variam caso a caso- uma apresentação da obra (às
vezes também da vida) do pensador em
questão, a análise minuciosa de um de
seus livros (em geral inspirador do artigo) e um tratamento abrangente de algum problema subjacente. O procedimento crítico privilegia a lógica interna
de argumentação. Atento às incongruências, seu alvo prioritário são as antinomias próprias a cada autor ou livro, que
procura desdobrar ao máximo.
Só depois de destacar esse núcleo contraditório é que Anderson procura esclarecê-lo, confrontando-o com o contexto
histórico. A aplicação desse "método"
concede aos textos uma imparcialidade e
objetividade (de historiador) tal que desmente o axioma filosófico de que, ao comentar o alheio, fala-se sobretudo de si.
Alguns ensaios retomam e complementam a obra anterior de Perry Anderson. Os perfis de Isaac Deutscher e Sebastiano Timpanaro destacam dois marxistas que exerceram muita influência sobre
a geração da "New Left Review" e cuja extemporaneidade não possibilitou sua inclusão nos panoramas anteriores. Deutscher tinha a formação e os interesses da
geração revolucionária de Lênin, Rosa
Luxemburgo e Trótsky, embora fosse
contemporâneo do marxismo ocidental.
Sua obra debruçou-se sobre os desenvolvimentos da revolução de 1917. Suas
análises, perspicazes e realistas, acerca do
que acontecia no mundo do "socialismo
real", não o impediam de apostar em um
desdobramento na direção da democracia socialista, uma esperança compartilhada por Anderson. Já Timpanaro manteve-se alheio e crítico do marxismo ocidental, embora sua trajetória intelectual e
os temas de sua obra fossem muito semelhantes ao itinerário e aos assuntos dos
membros desse movimento.
As obras de Michael Mann e Ste. Croix
retomam o recorte histórico e um pouco
da perspectiva do par complementar
"Passagens da Antiguidade ao Feudalismo" e "Linhagens do Estado Absolutista". Ste. Croix trata das lutas de classe como bases históricas das formas sucessivas do Estado e da sociedade no mundo
antigo. Apresenta também uma contribuição teórica para a discussão sobre as
classes. "The Sources of Social Power", de
Mann, propõe-se a constituir uma história e uma teoria das relações de domínio
nas sociedades humanas. Estende-se das
primeiras civilizações até o limiar da Revolução Industrial, investigando quatro
fontes de poder social: econômica, ideológica, política e militar. Anderson saúda
efusivamente o livro e não hesita em colocá-lo em pé de igualdade com "Economia e Sociedade", de Max Weber.
Dois outros clássicos da historiografia
dos anos de 1980 já não recebem o mesmo tratamento. O ensaio sobre Carlo
Ginzburg (em "Zona de Compromisso")
detém-se em "História Noturna" (Cia.
das Letras). Apesar de reconhecer a importância e a originalidade da interpretação de Ginzburg acerca do sabá, Anderson refuta os principais passos de sua
construção, recorrendo, com uma erudição impressionante, às próprias fontes
bibliográficas (em geral no campo da antropologia) e metodológicas do livro.
No artigo sobre Braudel (em "Zona de
Compromisso"), Anderson intriga-se
com a motivação que o teria levado a redigir, com quase 80 anos, uma história da
França, projeto interrompido com sua
morte em 1985. Em uma longa digressão
que estabelece uma teoria acerca da substituição dos estudos sobre o caráter nacional pelos trabalhos sobre a identidade
nacional, Anderson atribui os motivos de
Braudel à persistência do nacionalismo
na antevéspera da integração européia.
Na análise de "Tudo que é Sólido Desmancha no Ar" (Cia. das Letras), de
Marshall Berman, outro "hit" da década
de 1980, Anderson não se acanha em corrigir, com a bonomia que lhe é característica, os equívocos da compreensão de
Berman dos conceitos de "modernização", "modernismo" e "modernidade".
A interpretação histórica que Anderson
fornece do modernismo estético é particularmente notável e deveria ser objeto
de um estudo à parte, tarefa que ele cumpriu apenas parcialmente, em 1998, com
"As Origens da Pós-Modernidade".
O ensaio que melhor permite entender
as preocupações de Anderson, durante o
período que se estende do final dos anos
de 1970 até o desmoronamento do "socialismo real", em 1992, aborda Max Weber, autor cuja incorporação foi decisiva
para a configuração do marxismo ocidental. O artigo desdobra, uma a uma, as
antinomias weberianas, da dicotomia entre idealismo e materialismo até a contradição entre liberalismo e nacionalismo,
num esforço dialético que lembra a crítica de Georg Lukács ao idealismo alemão
em "História e Consciência de Classe".
Compreender o presente
O objetivo de Anderson, no entanto,
não é esclarecer os efeitos sobre a consciência burguesa do fetichismo da mercadoria, mas compreender o presente histórico, a estabilização do capitalismo em
um cenário de reestruturação produtiva e
a possibilidade entreaberta de uma revolução democrática no Leste europeu.
A questão do conflito, concebido pelos
marxistas como interno, mas que na história do século 20 muitas vezes foi submergido pelo antagonismo entre as nações, ressurge esporadicamente no decorrer do livro. Já o embate de Anderson
com o liberalismo desdobra-se em ensaios sobre Rawls, Berlin, Unger e Bobbio. O artigo sobre Rawls, focado na análise de "Liberalismo Político", lamenta o
recuo dessa obra em relação ao clássico
"Uma Teoria da Justiça". Os panoramas
conceituais de Berlin -acerbamente criticados por Anderson como modelos de
"história das idéias"- são associados a
sua adesão política e filosófica ao "pluralismo", um parti pris que muitas vezes
transmuta-se em seu inverso.
Mangabeira Unger é saudado, ao lado
de Edward Said e Salman Rushdie, como
exemplo de intelectual do Terceiro Mundo que muito teria a ensinar ao Primeiro
Mundo. A análise de Anderson ajuda a
compreender melhor pontos obscuros
da fracassada campanha presidencial de
Ciro Gomes, como a indecisão acerca de
base social de seu projeto transformador
(um novo setor emergente ou a velha pequena burguesia?) e o modelo de presidencialismo plebiscitário.
O veredicto de Anderson sobre a possibilidade de uma junção entre liberalismo
e socialismo só se completa nos artigos
sobre Bobbio (acrescido da correspondência entre ambos). Ao destacar os limites de um liberalismo que tangencia, mas
nunca incorpora devidamente, o socialismo, Perry Anderson deposita suas esperanças em um marxismo renovado, capaz de aprofundar, em seu projeto de socialismo, os valores e as instituições da
democracia liberal.
Ricardo Musse é professor de sociologia na USP.
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