São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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Sociólogo francês estuda famílias paulistas

Os sentidos do trabalho

Travail, Famille et Mondialisation - Récits de la Vie Ouvrière, São Paulo, Brésil
Robert Cabanes
IRD-Karthala
479 págs., 27,50 euros

Onde encomendar
Livraria Francesa (Tel. 0/xx/11/3231-4555)

VERA DA SILVA TELLES

Recém-publicado na França, o livro de Robert Cabanes apresenta um fino trabalho de decifração do mundo social. Por meio dos relatos biográficos de 33 famílias da grande São Paulo, o autor coloca em evidência mudanças e recomposições societárias pouco legíveis sob a voragem das atuais transformações econômicas. Fazendo uso da "abordagem biográfica", busca observar o social na escala das vidas e temporalidades próprias das histórias de homens, mulheres e suas famílias. Esse é o traçado que lhe permite apreender -e nos mostrar- o que não se deixa capturar pela lógica do mercado ou pela atual celebração do individualismo empreendedor e aquisitivo, percebendo outros horizontes que não a resignada ou cínica adaptação às regras dominantes.
As personagens deste livro moram em bairros periféricos e recobrem as mais variadas situações de trabalho -aposentados e desempregados, operários, trabalhadores do mercado informal, empregados do comércio ou de serviços. Ao apresentar seus percursos, o autor tece uma fina malha de relações e interações sociais que armam algo como microcenários que permitem ver as mudanças operantes no mundo social.
Os dramas do desemprego, do trabalho instável e das incertezas quanto ao futuro perpassam todos os relatos. Mas aparecem como situações que configuram campos de uma problematização de si e da sociedade. Ao contrário de um suposto fim do trabalho como valor, é em torno dele que se cristalizam expectativas, esperanças, projetos individuais e familiares.

Vida privada e social
Essa é uma das contribuições fortes deste livro. Reativa uma questão há muito fora de cena, recoloca a centralidade do trabalho nas dinâmicas sociais e -esse o ponto a ser notado- os sentidos cristalizados em torno do trabalho dão a senha para a compreensão do que acontece no mundo social. Os sentidos do trabalho são elaborados nas relações muitas vezes tensas e descompassadas entre os acontecimentos biográficos de cada um e as mudanças que transcorrem no âmbito privado das famílias. As conexões entre vida privada e vida social é o foco do trabalho interpretativo de Cabanes, e nos fios que tecem essas relações está a novidade que o autor nos entrega.
A entrada da mulher no mercado de trabalho e as tendências de maior igualização de gênero operam de maneira crítica no quadro doméstico, abalam antigas hierarquias patriarcais e permitem filtrar nas vidas cotidianas as expectativas de autonomia e igualdade que conformam o que o autor chama de "individualismo civil" e que também se alimenta dos legados dos movimentos sociais das décadas passadas. Expectativas de autonomia, esperanças de maior igualdade nas relações sociais, desejos de realização de si conformam práticas e orientam escolhas, operando como um prisma de valor, algo como um ponto de vista crítico que permite problematizar, sob modalidades diversas, a vida social.
É uma crítica em ato, que nem sempre é formulada, que sugere um terreno de resistência às atuais tendências de mercantilização perversa e excludente da vida social, mas também uma reafirmação do trabalho como valor, aberto às dimensões do direito, da igualdade e da justiça.
O que se perfila ao longo do texto é a importância do grupo doméstico. É nele que se processam formas de individualização regidas pelos valores da igualdade e exigências de reciprocidade nas relações sociais. Nas suas expectativas de autonomia e promessas de um futuro melhor, os "cuidados de si" inscrevem-se no horizonte da vida pública.
As relações entre vida privada e vida social dão, portanto, a chave que estrutura o modo como Cabanes apresenta as narrativas. Nelas, seus personagens comparecem em ação, atores que fazem escolhas e mobilizam estratégias para lidar com as adversidades do trabalho; alguns se adaptam e se dobram às condições dadas, outros buscam contorná-las e construir alternativas para a realização de si e de projetos familiares.
Nesse modo de encenar suas personagens se explicita a questão que move o empreendimento de Cabanes: o que funda as diferentes escolhas sociais? Qual a base dessa tomada de posição prática inscrita nas formas de ação social, entre a crítica social -crítica militante em alguns casos, implícita em outros- e a resignação passiva dos que simplesmente se deixam levar pelas circunstâncias de cada momento? São a essas transformações silenciosas da vida social que Cabanes dirige sua atenção, mostrando as conexões entre a experiência privada, as expectativas de autonomia aí elaboradas e as formas de ação social.
Resta saber, pergunta-se Cabanes, se esse individualismo igualitário e interativo que se processa nas dimensões privadas da vida social e se difunde no plano individual pode cimentar novas solidariedades, capazes de expressão coletiva. Até que ponto e sob quais condições as expectativas projetadas no trabalho podem ser traduzidas em referências coletivas de uma experiência partilhada?
Atento ao que anda acontecendo dos dois lados do Atlântico, Cabanes nos sugere o apelo universal que pode estar contido nessas expectativas, conformando um horizonte de possibilidades capaz, talvez, de relançar o trabalho no centro de uma reivindicação ampliada por direitos, por justiça e igualdade nas relações sociais. Mas então se pergunta também se o discurso e a prática políticas não teriam que ser redefinidos, talvez reinventados, para dar forma, sentido e dimensão pública às experiências e expectativas tecidas no mundo social.
Sociólogo francês, Robert Cabanes morou no Brasil entre 1984 e 1987 e realizou várias pesquisas no campo da sociologia do trabalho. Os depoimentos que compõem este livro foram colhidos entre 1986 e 1994. A familiaridade com a sociedade brasileira transparece a cada linha, na sutileza com que são feitas as conexões entre eventos biográficos e tempo histórico. E todo o rigor teórico aparece na cuidadosa tessitura do livro, no modo como apresenta os relatos, problematiza os percursos individuais e familiares e busca discernir as relações entre a experiência do trabalho, os cuidados de si e a vida doméstica. Agora nos cabe torcer pela breve tradução de seu livro.


Vera da Silva Telles é professora do departamento de sociologia da USP.

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