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A consciência dolorosa da distância entre os intelectuais e o povo
O desafio Dostoiévski
Dostoiévski (1860-1865)
Os Efeitos da Libertação
Joseph Frank
Tradução: Geraldo Gerson de Souza
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
522 págs., R$ 52,00
SALETE DE ALMEIDA CARA
Neste terceiro volume da biografia de
Dostoiévski, o crítico-biógrafo Joseph
Frank cutuca a onça com vara muito curta. O anos que vão de 1860 a 1865 seriam
incluídos no segundo volume, mas Frank
notou a tempo que esse material tão importante, quase sempre desprezado pela
crítica literária russa e internacional, merecia destaque. Excelente decisão! No entanto, se o Dostoiévski anticapitalista, antiidealista e antipositivista, que explode
vigoroso destas páginas, continua pouco
enfrentado pela crítica, o que dizer do
sentido próprio que suas idéias passam a
ter nas obras literárias? Afinal, é bem
mais ampla a matéria do romancista ao
tratar dos homens e da sociedade russa
de seu tempo.
O desafio é expresso pelo próprio Dostoiévski: "A forma artística é útil no mais
alto grau, e útil exatamente do seu ponto
de vista". Todavia, os impasses ideológicos de Joseph Frank diante do material
que recolhe põem a perder o que sua intuição crítica e formal muitas vezes
apreende. De modo que a leitura deste livro faz pensar que a melhor crítica literária é aquela capaz de perceber como a forma artística ilumina, nas suas permanências e transformações, a experiência psicossocial da qual também depende.
O material inclui, além de ficção, um
diário de viagens, cartas e textos de revistas que Dostoiévski dirigiu nesses anos
com o irmão, escancarando sua consciência dolorosa da distância entre os intelectuais e o povo. Como escreveu com
ironia em 1863, um povo que "já nos considera de todo estrangeiros e não compreende uma palavra, um livro, um pensamento nosso, e isto, digam o que quiserem, é progresso".
Ir ao povo
O escritor referia-se, naturalmente, ao
papel que vinham assumindo as idéias
européias em solo russo, aclimatadas até
pelos próprios eslavófilos que, desde os
anos 40, defendiam o projeto de "ida ao
povo", do qual Dostoiévski se aproximava a seu modo. Idéias presentes ainda nos
movimentos políticos da esquerda que,
nesses anos 60, procurava mobilizar as
energias populares para uma "revolução
sangrenta", à qual se opunha o escritor.
Para Frank, as críticas de Dostoiévski
aos deslumbrados pela opção modernizante revelavam, antes de mais nada, atitude antieuropéia compreensível num
autor que vislumbrava, como saída, uma
sociedade construída em torno do "auto-sacrifício" e da fraternidade próprios ao
homem russo das aldeias -uma "sociedade cristã-socialista", com a ênfase da
ortodoxia oriental na noção cristã do livre-arbítrio. Em 1859, Dostoiévski chegara de dez anos de prisão na Sibéria por
acusação de conspiração política, presenciando a miséria e revolta que se seguiriam à libertação dos servos por Alexandre 2º em 1861.
Frank coloca no centro de sua leitura a
"estreita relação entre a psicologia e a metafísica religiosa tão típica de Dostoiévski" e elege como mote interpretativo a
questão da liberdade individual, entendendo que Dostoiévski teria transferido
as responsabilidades do sistema social
para uma nova moral individual.
É bom lembrar que Joseph Frank escreve em 1986 e é adepto confesso de Mikhail Gorbatchov e da solução pan-liberal que marca a vitória capitalista nas disputas da Guerra Fria. Daí também a centralidade que confere às divergências de
Dostoiévski com a esquerda russa dos
anos 60, reunida em torno de Tchernichévski e sua teoria do "egoísmo racional", isto é, um egoísmo natural para todo o homem esclarecido acerca de seus
próprios interesses sociais. Segundo
Frank, egoísmo sem freio moral -já parodiado em "Humilhados e Ofendidos"
(1861), romance folhetim de grande sucesso popular.
Nesse passo, acredita que os horrores
vividos por Dostoiévski na prisão da Sibéria, mundo de injustiças e "ódio subterrâneo" que mostra em "Recordações
da Casa dos Mortos" (1861), teriam sido
definitivos em sua oposição à "ideologia
radical" e às esperanças revolucionárias
da classe instruída, pois ali o escritor
aprendera que qualquer homem é capaz
de sacrificar seus interesses por uma ilusão, ainda que momentânea, de autonomia moral e individual.
As novelas siberianas dos fins dos anos
50, "O Sonho do Tio" e "A Aldeia de Stiepântchikovo", deixam claro que também
no meio rural os valores e a retórica liberais já eram argumento de peso para
manter e justificar antigas opressões.
Uma das boas sugestões formais de
Frank chama a atenção para o tipo de
narrador-cronista, que estará ainda nos
romances posteriores, ambientados na
província, "Os Demônios" e "Os Irmãos
Karamasov". Narrador limitado e incerto
nas interpretações dos mexericos que ouve e do que vê, ele cede seu espaço para
que boatos e difamações passem a funcionar como um coro comentando a
ação principal.
Desperdiçando o achado, Frank insiste
na chave da responsabilidade individual
e refere-se à personagem Fomá Fomitch,
de "A Aldeia de Stiepântchikovo", ex-agregado que manipula o patrão religioso e crédulo e todos os que o cercam, como o primeiro esboço do "homem do
subsolo". Arma por aí a relação dessa novela, escrita na Sibéria, com livros posteriores, inclusive a "Casa dos Mortos".
"Memórias do Subsolo" (1865), cuja
voz narrativa em primeira pessoa, sempre porosa ao contato com um interlocutor imaginário e consigo mesma, expõe
sua dispersão e fragmentação, é tomada
como paródia das idéias políticas dos
grupos radicais de 1860. Com um esquema binário, Frank fixa posições para privilegiar valores: "O homem do subterrâneo não rejeita a prosperidade, a riqueza,
a liberdade e a paz por si mesmas; rejeita
o ponto de vista de que o único meio de
alcançá-las é através do sacrifício da liberdade e da personalidade do homem".
Sua análise vai no sentido contrário à
de Mikhail Bakhtin, para quem o "homem do subsolo" estaria condenado a
um movimento de dissonâncias e provocações com seus interlocutores (que são
ele mesmo, aquele que é suposto pelas falas, e o próprio andamento do mundo), e
sua interpretação vai no sentido contrário à de Georg Lukács, que, na constante
desintegração e destruição das personagens de Dostoiévski, reconhece os limites
impostos à fé, o alcance reflexivo do próprio ateísmo e a impossibilidade de superação do egoísmo, como se o escritor fixasse, no nascedouro, o que estava por
vir com a voragem capitalista do mundo,
registrando seus sintomas de deformação psíquica.
Rascunho preliminar
Ainda segundo Frank, as anotações da
viagem de Dostoiévski à Europa no início
da década, "Notas de Inverno sobre Impressões de Verão" (1863), seriam um
"rascunho preliminar" do livro de 1865.
Em comum entre eles, o papel desagregador das idéias européias para o homem
russo. Nessas notas de viagem os temas
da liberdade, humilhação e egoísmo humanos são tratados no espaço da própria
burguesia colonialista européia, onde o
viajante russo observa a miséria dos pobres e a mescla de triunfo e medo dos
burgueses, seja na aparente normalidade
francesa, seja na desordem londrina com
sua multidão de desvalidos que "nem
mais é povo, mas uma perda de consciência, sistemática, dócil, estimulada". E, fazendo toda a diferença, o escritor ridiculariza como caminho de modernidade na
sociedade russa, que ele não perde de vista, não só os modismos europeus, mas
também as propostas populistas de preservação da comunidade rural primitiva.
"O senhor pretendia escrever sobre Paris e agora trata de vergastas. O que Paris
tem a ver com isso?". Uma boa pergunta!
Parênteses para uma correção tipográfica
(mas não só): falta um ponto de interrogação na citação da pág. 336, onde o romancista pergunta, olhando a multidão
na Exposição Mundial no Palácio de
Cristal em Londres: "Não será este realmente o "rebanho único'?". Numa das
notas de rodapé, Frank se refere à proximidade das visões de Dostoiévski e de
Engels sobre Londres, que foi assunto da
revista de Dostoiévski, em 1861.
Não se justifica, portanto, que apenas o
conto satírico inacabado "O Crocodilo"
(1864), escrito na sequência das notas de
viagem, seja considerado como início de
uma "nova fase" porque teria um novo
alvo de crítica -no caso, o desvio capitalista de revolucionários como Píssarev.
Só para lembrar, "O Crocodilo" conta a
história de Ivan Matviéitch, burocrata
cheio de pretensão que, engolido por um
crocodilo (que aqui representa o capital
estrangeiro), pensa poder tirar vantagens
pessoais (aquelas prometidas pelo capital) justamente por estar naquela barriga!
O leitor deverá tomar posição própria
voltando aos textos. Na história da fortuna crítica de Dostoiévski, Joseph Frank
representa uma boa medida do tipo de
dificuldade e de limite que um crítico pode enfrentar diante de autores que exigem perceber, na forma literária, uma atitude também radical diante da prosa do
mundo. Por isso a forma realista do romance dostoievskiano está à espera de
seus críticos, a despeito das contribuições
de Bakthin, que conhecemos por aqui
mais do que outros leitores russos do escritor, mas que escolheu destacar sobretudo a estabilidade artística de uma forma -no caso o "romance polifônico"-
através dos tempos.
Salete de Almeida Cara é professora de literatura na USP.
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