São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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A consciência dolorosa da distância entre os intelectuais e o povo

O desafio Dostoiévski

Dostoiévski (1860-1865) Os Efeitos da Libertação
Joseph Frank
Tradução: Geraldo Gerson de Souza
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
522 págs., R$ 52,00

SALETE DE ALMEIDA CARA

Neste terceiro volume da biografia de Dostoiévski, o crítico-biógrafo Joseph Frank cutuca a onça com vara muito curta. O anos que vão de 1860 a 1865 seriam incluídos no segundo volume, mas Frank notou a tempo que esse material tão importante, quase sempre desprezado pela crítica literária russa e internacional, merecia destaque. Excelente decisão! No entanto, se o Dostoiévski anticapitalista, antiidealista e antipositivista, que explode vigoroso destas páginas, continua pouco enfrentado pela crítica, o que dizer do sentido próprio que suas idéias passam a ter nas obras literárias? Afinal, é bem mais ampla a matéria do romancista ao tratar dos homens e da sociedade russa de seu tempo.
O desafio é expresso pelo próprio Dostoiévski: "A forma artística é útil no mais alto grau, e útil exatamente do seu ponto de vista". Todavia, os impasses ideológicos de Joseph Frank diante do material que recolhe põem a perder o que sua intuição crítica e formal muitas vezes apreende. De modo que a leitura deste livro faz pensar que a melhor crítica literária é aquela capaz de perceber como a forma artística ilumina, nas suas permanências e transformações, a experiência psicossocial da qual também depende.
O material inclui, além de ficção, um diário de viagens, cartas e textos de revistas que Dostoiévski dirigiu nesses anos com o irmão, escancarando sua consciência dolorosa da distância entre os intelectuais e o povo. Como escreveu com ironia em 1863, um povo que "já nos considera de todo estrangeiros e não compreende uma palavra, um livro, um pensamento nosso, e isto, digam o que quiserem, é progresso".

Ir ao povo
O escritor referia-se, naturalmente, ao papel que vinham assumindo as idéias européias em solo russo, aclimatadas até pelos próprios eslavófilos que, desde os anos 40, defendiam o projeto de "ida ao povo", do qual Dostoiévski se aproximava a seu modo. Idéias presentes ainda nos movimentos políticos da esquerda que, nesses anos 60, procurava mobilizar as energias populares para uma "revolução sangrenta", à qual se opunha o escritor.
Para Frank, as críticas de Dostoiévski aos deslumbrados pela opção modernizante revelavam, antes de mais nada, atitude antieuropéia compreensível num autor que vislumbrava, como saída, uma sociedade construída em torno do "auto-sacrifício" e da fraternidade próprios ao homem russo das aldeias -uma "sociedade cristã-socialista", com a ênfase da ortodoxia oriental na noção cristã do livre-arbítrio. Em 1859, Dostoiévski chegara de dez anos de prisão na Sibéria por acusação de conspiração política, presenciando a miséria e revolta que se seguiriam à libertação dos servos por Alexandre 2º em 1861.
Frank coloca no centro de sua leitura a "estreita relação entre a psicologia e a metafísica religiosa tão típica de Dostoiévski" e elege como mote interpretativo a questão da liberdade individual, entendendo que Dostoiévski teria transferido as responsabilidades do sistema social para uma nova moral individual.
É bom lembrar que Joseph Frank escreve em 1986 e é adepto confesso de Mikhail Gorbatchov e da solução pan-liberal que marca a vitória capitalista nas disputas da Guerra Fria. Daí também a centralidade que confere às divergências de Dostoiévski com a esquerda russa dos anos 60, reunida em torno de Tchernichévski e sua teoria do "egoísmo racional", isto é, um egoísmo natural para todo o homem esclarecido acerca de seus próprios interesses sociais. Segundo Frank, egoísmo sem freio moral -já parodiado em "Humilhados e Ofendidos" (1861), romance folhetim de grande sucesso popular.
Nesse passo, acredita que os horrores vividos por Dostoiévski na prisão da Sibéria, mundo de injustiças e "ódio subterrâneo" que mostra em "Recordações da Casa dos Mortos" (1861), teriam sido definitivos em sua oposição à "ideologia radical" e às esperanças revolucionárias da classe instruída, pois ali o escritor aprendera que qualquer homem é capaz de sacrificar seus interesses por uma ilusão, ainda que momentânea, de autonomia moral e individual.
As novelas siberianas dos fins dos anos 50, "O Sonho do Tio" e "A Aldeia de Stiepântchikovo", deixam claro que também no meio rural os valores e a retórica liberais já eram argumento de peso para manter e justificar antigas opressões. Uma das boas sugestões formais de Frank chama a atenção para o tipo de narrador-cronista, que estará ainda nos romances posteriores, ambientados na província, "Os Demônios" e "Os Irmãos Karamasov". Narrador limitado e incerto nas interpretações dos mexericos que ouve e do que vê, ele cede seu espaço para que boatos e difamações passem a funcionar como um coro comentando a ação principal.
Desperdiçando o achado, Frank insiste na chave da responsabilidade individual e refere-se à personagem Fomá Fomitch, de "A Aldeia de Stiepântchikovo", ex-agregado que manipula o patrão religioso e crédulo e todos os que o cercam, como o primeiro esboço do "homem do subsolo". Arma por aí a relação dessa novela, escrita na Sibéria, com livros posteriores, inclusive a "Casa dos Mortos".
"Memórias do Subsolo" (1865), cuja voz narrativa em primeira pessoa, sempre porosa ao contato com um interlocutor imaginário e consigo mesma, expõe sua dispersão e fragmentação, é tomada como paródia das idéias políticas dos grupos radicais de 1860. Com um esquema binário, Frank fixa posições para privilegiar valores: "O homem do subterrâneo não rejeita a prosperidade, a riqueza, a liberdade e a paz por si mesmas; rejeita o ponto de vista de que o único meio de alcançá-las é através do sacrifício da liberdade e da personalidade do homem".
Sua análise vai no sentido contrário à de Mikhail Bakhtin, para quem o "homem do subsolo" estaria condenado a um movimento de dissonâncias e provocações com seus interlocutores (que são ele mesmo, aquele que é suposto pelas falas, e o próprio andamento do mundo), e sua interpretação vai no sentido contrário à de Georg Lukács, que, na constante desintegração e destruição das personagens de Dostoiévski, reconhece os limites impostos à fé, o alcance reflexivo do próprio ateísmo e a impossibilidade de superação do egoísmo, como se o escritor fixasse, no nascedouro, o que estava por vir com a voragem capitalista do mundo, registrando seus sintomas de deformação psíquica.

Rascunho preliminar
Ainda segundo Frank, as anotações da viagem de Dostoiévski à Europa no início da década, "Notas de Inverno sobre Impressões de Verão" (1863), seriam um "rascunho preliminar" do livro de 1865. Em comum entre eles, o papel desagregador das idéias européias para o homem russo. Nessas notas de viagem os temas da liberdade, humilhação e egoísmo humanos são tratados no espaço da própria burguesia colonialista européia, onde o viajante russo observa a miséria dos pobres e a mescla de triunfo e medo dos burgueses, seja na aparente normalidade francesa, seja na desordem londrina com sua multidão de desvalidos que "nem mais é povo, mas uma perda de consciência, sistemática, dócil, estimulada". E, fazendo toda a diferença, o escritor ridiculariza como caminho de modernidade na sociedade russa, que ele não perde de vista, não só os modismos europeus, mas também as propostas populistas de preservação da comunidade rural primitiva.
"O senhor pretendia escrever sobre Paris e agora trata de vergastas. O que Paris tem a ver com isso?". Uma boa pergunta! Parênteses para uma correção tipográfica (mas não só): falta um ponto de interrogação na citação da pág. 336, onde o romancista pergunta, olhando a multidão na Exposição Mundial no Palácio de Cristal em Londres: "Não será este realmente o "rebanho único'?". Numa das notas de rodapé, Frank se refere à proximidade das visões de Dostoiévski e de Engels sobre Londres, que foi assunto da revista de Dostoiévski, em 1861.
Não se justifica, portanto, que apenas o conto satírico inacabado "O Crocodilo" (1864), escrito na sequência das notas de viagem, seja considerado como início de uma "nova fase" porque teria um novo alvo de crítica -no caso, o desvio capitalista de revolucionários como Píssarev. Só para lembrar, "O Crocodilo" conta a história de Ivan Matviéitch, burocrata cheio de pretensão que, engolido por um crocodilo (que aqui representa o capital estrangeiro), pensa poder tirar vantagens pessoais (aquelas prometidas pelo capital) justamente por estar naquela barriga!
O leitor deverá tomar posição própria voltando aos textos. Na história da fortuna crítica de Dostoiévski, Joseph Frank representa uma boa medida do tipo de dificuldade e de limite que um crítico pode enfrentar diante de autores que exigem perceber, na forma literária, uma atitude também radical diante da prosa do mundo. Por isso a forma realista do romance dostoievskiano está à espera de seus críticos, a despeito das contribuições de Bakthin, que conhecemos por aqui mais do que outros leitores russos do escritor, mas que escolheu destacar sobretudo a estabilidade artística de uma forma -no caso o "romance polifônico"- através dos tempos.


Salete de Almeida Cara é professora de literatura na USP.

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