|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O banho do bebê
SYLVIA CAIUBY NOVAES
Eu pesquiso: observo, anoto em
meu caderno de campo, entrevisto,
colho informações aqui e ali, focando uma temática previamente definida. Planejo minhas observações,
os dados a serem colhidos. Busco interpretações e as testo mediante novos dados de campo, avalio se o foco
escolhido é adequado.
Essa é a forma tradicional de pesquisa nas diversas áreas das ciências
sociais e, em especial, na antropologia. Algo parece mudar quando um
novo recurso é introduzido: a observação fílmica. Se a observação direta
da realidade sensível é mediada pela
linguagem, que se interpõe entre o
olhar e o pensamento, "a observação
fílmica, apesar de não totalmente liberada da linguagem -longe disso-, possui a vantagem, em relação
à observação direta, de conferir a seu
resultado, o observado fílmico, um
status de referência epistemológica
mais legítimo, sob vários aspectos,
que aquele conferido à observação
direta", como afirma Claudine de
France no artigo que introduz esta
coletânea. Mas não é só isso. A antropologia fílmica traz ainda a possibilidade de aliar a dimensão sensível
-associada à imagem- ao inteligível que a ciência domina.
Dito assim parece mesmo o melhor dos dois mundos. Mas o que os
artigos reunidos nesta coletânea trazem está bem longe disso. Por uma
razão muito simples. Todos estão
ainda muito ligados a uma concepção de etnografia típica dos anos 30,
hiperdescritiva, na qual se supõe a
possibilidade de uma total objetividade, e os fatos sociais são literalmente tratados como coisa. As exigências de realismo do filme etnográfico, para os autores, não são em
nada diferentes daquelas do filme
científico. Quanto mais simples o
objeto, mais será submetido à rígida
lei da microdescrição.
Vem daí, a meu ver, o compromisso que a maior parte dos filmes etnográficos parece assumir com o enfado e a chatice. Há, nesses filmes,
uma concepção de ciência que não
vê grandes diferenças entre a descrição do sistema de circulação do sangue e o acontecimento de um ritual.
Essa parece ser a tônica da Escola de
Paris 10-Nanterre, a que pertencem
quatro dos cinco autores da coletânea.
O artigo de Jean-Marc Rosenfeld,
"Filmar: Uma Reconversão do
Olhar", sublinha o fato de que a observação fílmica permite dispor de
um suporte persistente, ao contrário
da observação direta, eminentemente fugaz. Essa possibilidade de
reprodução ao infinito de manifestações visíveis é que permitirá a análise detalhada, por exemplo, dos banhos que pai e mãe dão em seus bebês, tal como descrito no artigo de
Jane Guéronnet, após 14 meses de
observação detalhada dos cuidados
maternos com o corpo da criança. O
banho do bebê é, aliás, um tema
clássico dos filmes etnográficos e está, certamente, associado à atenção
que os estudos de cultura e personalidade dedicavam, na década de 40, à
socialização da criança, elemento-chave para compreender a formação do "ethos" de um povo.
A grande descoberta da pesquisa
de Guéronnet não chega muito além
daquilo que toda mãe sabe: o banho
propicia uma "dimensão ritual de
caráter lúdico" e as frases que a mãe
dirige ao bebê, muito mais do que
transmitir informações, enunciam a
função fática da linguagem. Comparando o banho do bebê parisiense
com o do bebê japonês, a pesquisa
permite perceber que, entre os japoneses, como o pai está imerso na banheira, pode apoiar o bebê em sua
coxa e servir-se das mãos para brincar com a criança. O pai parisiense
deve usar as mãos para sustentá-lo
na banheirinha. Há, assim, uma distinção entre tempo eficaz e tempo
lúdico para o pai parisiense, que se
confunde para o pai japonês.
O artigo de Annie Comolli -"A
Pesquisa Fílmica das Aprendizagens"- aponta o uso da antropologia fílmica para a transmissão e o
aprendizado de "técnicas de dominante material, corporal ou ritual".
Por meio desta cinematografia da
aprendizagem, a autora pesquisou o
toalete e o banho; o aprendizado de
tarefas domésticas como lavar pratos, arrumar a cama, fazer bolos; atividades como lições de judô, cursos
de musculação e, numa outra fase,
atividades religiosas: a aprendizagem de ritos domésticos do sabá e as
práticas ligadas à sua preparação.
O filme é aqui o campo essencial
da pesquisa, muito mais do que os
dados vindos da observação direta.
No entanto, cabe ressaltar que o filme é não só campo, mas, igualmente, o instrumento principal da pesquisa, instrumento que para esses
autores se iguala ao microscópio para o biólogo ou aos tubos de ensaio
para os químicos. Nesse sentido, interações sociais são de algum modo
equivalentes à evolução de bactérias
ou à reação de elementos químicos.
O último artigo é de Philippe
Lourdou e trata do comentário nos
filmes de Marcel Griaule. O grande
espanto é a escassez de textos sobre
aquele que foi o pioneiro dos filmes
etnográficos. Nos filmes de Griaule,
no final da década de 30 entre os dogon do Mali, os comentários foram
reescritos e narrados por um locutor
profissional.
Lourdou mostra ainda o que significou para o cinema a passagem do
filme mudo para o filme sonoro que,
num certo sentido, pode ser pensada como a passagem do mundo da
escrita para o da oralidade. Essa passagem altera bastante o estilo do comentário, pois "aquilo que se pode
ler com facilidade nem sempre suporta o desafio da dicção". Como
mostra Lourdou, essa passagem terá
consequências para o comentário
nos filmes etnográficos que, aos
poucos, será assumido pelo próprio
etnólogo -como o faz Jean Rouch,
o principal seguidor de Griaule- e,
mais tarde, pelos próprios protagonistas dos filmes.
Espantoso é que um dos maiores
nomes do cinema-documentário
francês, Jean Rouch, pareça tão afastado de seus seguidores mais contemporâneos em Paris 10-Nanterre.
Apesar de antecedê-los cronologicamente, Rouch está anos à frente desses autores. Sabemos, todos os pesquisadores, o quanto as notas de
campo são reordenadas, reagrupadas e cruzadas para que os dados
possam "fazer sentido". Não passa
pela cabeça de um pesquisador
apresentá-las na ordem em que foram colhidas. Mas algumas escolas
do filme etnográfico insistem na sequência cronológica das tomadas,
no "realismo" que pode chegar a impedir uma iluminação mais adequada, a utilização de efeitos sonoros
etc.
Rouch sempre teve total liberdade
com seus filmes. Manipulava as sequências, para criar não um filme de
pesquisa, mas um verdadeiro filme
cinematográfico: sabia bem fazer
uso do transe que o próprio ato de
filmar provocava. A entrevista com
Jean Rouch, no final desta coletânea,
é com certeza o que de mais interessante ela nos traz. Rouch fala sobre a
inserção dos comentários nos filmes, que eram sempre feitos de modo improvisado, a partir da projeção
das imagens para os próprios protagonistas. Gravavam-se assim os comentários feitos "na imagem" e as
vozes eram então pós-sincronizadas. "Aqueles que fazem filmes querem ter um tom objetivo. Os eruditos é que falam. Os eruditos não têm
coração", diz sabiamente o mestre
Rouch.
Sylvia Caiuby Novaes é professora de antropologia na USP e coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia.
Do Filme Etnográfico à
Antropologia Fílmica
Claudine de France (org.)
Ed. da Unicamp
(Tel.0/xx/11/3788-7740)
145 págs., R$ 12,00
Texto Anterior: Paixões de Hobsbawm Próximo Texto: A vida no deserto refrigerado Índice
|