São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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O banho do bebê

SYLVIA CAIUBY NOVAES

Eu pesquiso: observo, anoto em meu caderno de campo, entrevisto, colho informações aqui e ali, focando uma temática previamente definida. Planejo minhas observações, os dados a serem colhidos. Busco interpretações e as testo mediante novos dados de campo, avalio se o foco escolhido é adequado.
Essa é a forma tradicional de pesquisa nas diversas áreas das ciências sociais e, em especial, na antropologia. Algo parece mudar quando um novo recurso é introduzido: a observação fílmica. Se a observação direta da realidade sensível é mediada pela linguagem, que se interpõe entre o olhar e o pensamento, "a observação fílmica, apesar de não totalmente liberada da linguagem -longe disso-, possui a vantagem, em relação à observação direta, de conferir a seu resultado, o observado fílmico, um status de referência epistemológica mais legítimo, sob vários aspectos, que aquele conferido à observação direta", como afirma Claudine de France no artigo que introduz esta coletânea. Mas não é só isso. A antropologia fílmica traz ainda a possibilidade de aliar a dimensão sensível -associada à imagem- ao inteligível que a ciência domina.
Dito assim parece mesmo o melhor dos dois mundos. Mas o que os artigos reunidos nesta coletânea trazem está bem longe disso. Por uma razão muito simples. Todos estão ainda muito ligados a uma concepção de etnografia típica dos anos 30, hiperdescritiva, na qual se supõe a possibilidade de uma total objetividade, e os fatos sociais são literalmente tratados como coisa. As exigências de realismo do filme etnográfico, para os autores, não são em nada diferentes daquelas do filme científico. Quanto mais simples o objeto, mais será submetido à rígida lei da microdescrição.
Vem daí, a meu ver, o compromisso que a maior parte dos filmes etnográficos parece assumir com o enfado e a chatice. Há, nesses filmes, uma concepção de ciência que não vê grandes diferenças entre a descrição do sistema de circulação do sangue e o acontecimento de um ritual. Essa parece ser a tônica da Escola de Paris 10-Nanterre, a que pertencem quatro dos cinco autores da coletânea.
O artigo de Jean-Marc Rosenfeld, "Filmar: Uma Reconversão do Olhar", sublinha o fato de que a observação fílmica permite dispor de um suporte persistente, ao contrário da observação direta, eminentemente fugaz. Essa possibilidade de reprodução ao infinito de manifestações visíveis é que permitirá a análise detalhada, por exemplo, dos banhos que pai e mãe dão em seus bebês, tal como descrito no artigo de Jane Guéronnet, após 14 meses de observação detalhada dos cuidados maternos com o corpo da criança. O banho do bebê é, aliás, um tema clássico dos filmes etnográficos e está, certamente, associado à atenção que os estudos de cultura e personalidade dedicavam, na década de 40, à socialização da criança, elemento-chave para compreender a formação do "ethos" de um povo.
A grande descoberta da pesquisa de Guéronnet não chega muito além daquilo que toda mãe sabe: o banho propicia uma "dimensão ritual de caráter lúdico" e as frases que a mãe dirige ao bebê, muito mais do que transmitir informações, enunciam a função fática da linguagem. Comparando o banho do bebê parisiense com o do bebê japonês, a pesquisa permite perceber que, entre os japoneses, como o pai está imerso na banheira, pode apoiar o bebê em sua coxa e servir-se das mãos para brincar com a criança. O pai parisiense deve usar as mãos para sustentá-lo na banheirinha. Há, assim, uma distinção entre tempo eficaz e tempo lúdico para o pai parisiense, que se confunde para o pai japonês.
O artigo de Annie Comolli -"A Pesquisa Fílmica das Aprendizagens"- aponta o uso da antropologia fílmica para a transmissão e o aprendizado de "técnicas de dominante material, corporal ou ritual". Por meio desta cinematografia da aprendizagem, a autora pesquisou o toalete e o banho; o aprendizado de tarefas domésticas como lavar pratos, arrumar a cama, fazer bolos; atividades como lições de judô, cursos de musculação e, numa outra fase, atividades religiosas: a aprendizagem de ritos domésticos do sabá e as práticas ligadas à sua preparação.
O filme é aqui o campo essencial da pesquisa, muito mais do que os dados vindos da observação direta. No entanto, cabe ressaltar que o filme é não só campo, mas, igualmente, o instrumento principal da pesquisa, instrumento que para esses autores se iguala ao microscópio para o biólogo ou aos tubos de ensaio para os químicos. Nesse sentido, interações sociais são de algum modo equivalentes à evolução de bactérias ou à reação de elementos químicos.
O último artigo é de Philippe Lourdou e trata do comentário nos filmes de Marcel Griaule. O grande espanto é a escassez de textos sobre aquele que foi o pioneiro dos filmes etnográficos. Nos filmes de Griaule, no final da década de 30 entre os dogon do Mali, os comentários foram reescritos e narrados por um locutor profissional.
Lourdou mostra ainda o que significou para o cinema a passagem do filme mudo para o filme sonoro que, num certo sentido, pode ser pensada como a passagem do mundo da escrita para o da oralidade. Essa passagem altera bastante o estilo do comentário, pois "aquilo que se pode ler com facilidade nem sempre suporta o desafio da dicção". Como mostra Lourdou, essa passagem terá consequências para o comentário nos filmes etnográficos que, aos poucos, será assumido pelo próprio etnólogo -como o faz Jean Rouch, o principal seguidor de Griaule- e, mais tarde, pelos próprios protagonistas dos filmes.
Espantoso é que um dos maiores nomes do cinema-documentário francês, Jean Rouch, pareça tão afastado de seus seguidores mais contemporâneos em Paris 10-Nanterre. Apesar de antecedê-los cronologicamente, Rouch está anos à frente desses autores. Sabemos, todos os pesquisadores, o quanto as notas de campo são reordenadas, reagrupadas e cruzadas para que os dados possam "fazer sentido". Não passa pela cabeça de um pesquisador apresentá-las na ordem em que foram colhidas. Mas algumas escolas do filme etnográfico insistem na sequência cronológica das tomadas, no "realismo" que pode chegar a impedir uma iluminação mais adequada, a utilização de efeitos sonoros etc.
Rouch sempre teve total liberdade com seus filmes. Manipulava as sequências, para criar não um filme de pesquisa, mas um verdadeiro filme cinematográfico: sabia bem fazer uso do transe que o próprio ato de filmar provocava. A entrevista com Jean Rouch, no final desta coletânea, é com certeza o que de mais interessante ela nos traz. Rouch fala sobre a inserção dos comentários nos filmes, que eram sempre feitos de modo improvisado, a partir da projeção das imagens para os próprios protagonistas. Gravavam-se assim os comentários feitos "na imagem" e as vozes eram então pós-sincronizadas. "Aqueles que fazem filmes querem ter um tom objetivo. Os eruditos é que falam. Os eruditos não têm coração", diz sabiamente o mestre Rouch.


Sylvia Caiuby Novaes é professora de antropologia na USP e coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia.

Do Filme Etnográfico à Antropologia Fílmica
Claudine de France (org.)
Ed. da Unicamp (Tel.0/xx/11/3788-7740)
145 págs., R$ 12,00


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