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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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Obra em repouso



Laura Vinci
Textos de Alberto Tassinari, Lorenzo Mammì, Paulo Venâncio Filho e José Miguel Wisnik
Coleção Artistas da USP
Edusp/ Imprensa Oficial do Estado (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
184 págs., R$ 40,00

CELSO FAVARETTO

Reconstituindo 15 anos da trajetória artística de Laura Vinci -das pinturas em que as telas rasgadas abrem espaço e a cor é instanciada por sulcos, que em visão retrospectiva preludiam as hastes que breve se instalam no espaço, até os elementos que brotam do chão, que estão pousados, suspensos ou entrelaçados, mesmo fluidos-, é de repouso que fala este livro, as imagens e os textos.
O estado de repouso e a estabilidade das obras figuram um tempo imóvel, eternamente presente. São, digamos, esculturas, matéria circunscrita, formas que incluem o lugar em que aparecem. Pontuando e ritmando o espaço, não preenchendo-o, geram espaço. Mesmo o escoamento da areia, embora movimento, não destoa do repouso do ferro fundido, do chumbo, dos blocos de mármore suspensos ou brotados do solo. E a água congelada alude ao movimento em repouso. O detalhe da forma é o movimento, diz T.S. Eliot.
Tensionamento do estático e paralisação do movimento, como bem notou Marcelo Dantas sobre a exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, a tensão entre materialidade e imaterialidade, entre o que é parado e o que escorre, cifram os estados dispostos por Laura Vinci. A tensão, contudo, não se resolve; suspensão do instante, ela faz a atenção perdurar: concentração e elevação do espírito. Dados a ver, pedindo a contemplação, as obras eternizam-se; pulsam sob o olhar que nelas se fixa e logo flutua.
Nem plenitude nem vazio, entretanto, pois as obras são destituídas de significado. Aí não há premência de desejo; nem falta nem excesso, apenas presença. A transformação dos materiais -pedra, areia, vidro; água, gelo, vapor-, é a matriz do desenvolvimento da obra de Laura Vinci, de um único movimento que, segundo a artista, pretende "provocar no observador o instante da percepção, conquistar o olhar, o estado do olhar", em correspondência aos estados da obra.
Os textos que integram o livro contemplam com diferentes ênfases os estados de repouso conformados por Laura Vinci; unânimes em afirmar a excelência do trabalho da artista, coincidem no destaque das principais características das obras. Desconsiderando as particularidades reflexivas de cada crítico, os supostos teóricos e modos enunciativos, os textos exibem perspectivas críticas que são constantes no tratamento dos desafios evidenciados nos trabalhos contemporâneos: as dificuldades de contextualização, de inscrição simbólica das obras e a impossibilidade de elaboração de juízos propriamente estéticos.
De modo geral, os textos, e mesmo este que se produz a partir deles, ao valorizarem as obras ou o trabalho em andamento de um determinado artista, entram em sintonia com os implícitos do trabalho, na tentativa de explicitar uma experiência singular. Se essa atitude é adequada à singularidade dos trabalhos, não deixa também de ser uma estratégia problemática, dada a circularidade em que incide. Assim, passando em revista os textos, é interessante apontar neles alguns aspectos analíticos ou interpretativos que lhes permitem captar as razões da excelência da arte de Laura Vinci.
Os textos falam da experiência das obras; inventam dispositivos de linguagem, elaboram teorias, e, a partir delas, categorias que não são outras senão as que as obras produzem. A crítica surge de uma nova imagem do pensamento: a relação moderna de entendimento e sensibilidade aparece transfigurada em estratégias enunciativas.
Alberto Tassinari faz coincidir uma certa teoria da escultura, reflexão propriamente estética, em que a tensão de repouso e movimento resulta, em Laura Vinci, nas "formas em repouso". Descrição e categorização exercem-se como pensamento do que aparece, como vulto do sensível; nas obras não se buscam alusões, pois Vinci executa uma operação precisa, que articula massas e espaço, chão e alturas, de modo que o repouso vem da contenção do movimento. A força da obra provém da imanência expressiva, da exploração "da potência das coisas e dos elementos". Recapturando já nos riscos verticais do espaço das pinturas de Laura o começo das esculturas, Tassinari procura não uma suposta coerência da trajetória, e sim o que é fundamental, "uma necessidade estética", uma coerência expressiva.
No texto de Lorenzo Mammì, "Entre Vazios", é significativa a ênfase na operação que engendra forma, "poiesis": "As esculturas de Laura Vinci não criam um espaço, instalam-se num já existente que só elas, porém, tornam visível". Remetendo a trajetória de Laura a operações de Volpi, fazendo analogias e diferenciações com as de Giacometti, inserindo-a no âmbito de uma série de seletos artistas brasileiros contemporâneos, Mammì também a inclui, valorizando-a, na sua reflexão sobre uma teoria da escultura, principalmente ao explorar a relação entre as massas e o ar. Assim, no entre-espaço determinado pelas esculturas, o olhar é tragado pelo vazio que elas provocam.
E quando Paulo Venâncio Filho diz que, para falar das esculturas de Laura Vinci, "teríamos que usar o gênero neutro, o verbo estar, os advérbios aqui, ali, lá", está reiterando o estado de repouso como o efeito deliberado da experiência do espaço. Instalando-se com a disseminação, aqui, ali, de elementos, que pontuam o espaço assim derivado, "estas esculturas de imediato propõem cadências, pausas, silêncios". Daí dizer que elas simplesmente estão.
Surpreende nas esculturas, contudo, uma espécie de inquietação, de antagonismo, entre a serenidade do conjunto e as marcas da atuação da artista sobre a matéria, do trabalho com as mãos fixado nos moldes para fundição; sente um espaço impregnado de pulsações da vida de todo dia, que assim introduz no ambiente de repouso e calma a passagem do tempo, os traços visíveis da experiência, de um corpo que se transforma na ação.
A ênfase de José Miguel Wisnik nas transformações e trocas de estado dos materiais, no intercâmbio do ferro com a areia e o ar, por exemplo, reivindicando, entretanto, "um fundo comum insondável", parece querer ver no trabalho de Laura uma busca semelhante à procura, drummondiana, da poesia. Voltada para a apreensão do ponto de interseção entre o imanente e o transcendente, que salta das mutações dos corpos, das matérias, dos espaços, às vezes como uma operação em cadeia -do ferro ao granito, ao mármore, à areia, ao vidro, à água, ao vapor, ao gelo, ao ar-, essa busca ambiciona atingir "o estado de contaminação receptiva e de alteração recíproca na massa do mundo".
Assim, inquietude e serenidade compõem esse estado de pura presença, lavrada em silêncio.

Celso Favaretto é professor da Faculdade de Educação da USP e autor de, entre outros, "Tropicália - Alegoria Alegria" (Ateliê).


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