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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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O Nordeste brasileiro no cinema e na literatura

Sertão intraduzível


Cinéma et Littérature au Brésil Les Mythes du Sertão: Émergence d'une Identité Nationale
Sylvie Debs
L'Harmattan
360 págs, 28,50 euros

Onde encomendar
Em São Paulo, Livraria Francesa (Tel. 0/xx/ 11/3231-4555); no Rio de Janeiro, na Livraria Marcabru (Tel. 0/xx/ 21/2294-5994).


LÚCIA NAGIB

Finalmente é publicado na França o trabalho de Sylvie Debs sobre as representações literárias e cinematográficas do Nordeste e do sertão brasileiros. A obra resulta de anos de pesquisa da autora para sua tese de doutorado recentemente defendida. Não é difícil supor que o móvel principal na escolha de seu objeto foi o renascimento da temática do sertão durante a chamada "retomada do cinema brasileiro", nos anos 1990.
Após a alienação da era Collor, quando vários cineastas brasileiros acreditaram que a única saída era o aeroporto, as leis de incentivo e do audiovisual em meados da década impulsionaram um retorno às origens, ao "coração" do Brasil. O resultado foram obras emblemáticas, como "Central do Brasil", e a "redescoberta" do país pelos estrangeiros. O filme de Walter Salles, como muitos outros do período, vai buscar justamente no sertão nordestino uma identidade individual e nacional perdida, remetendo ao sertão de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha e, por esse intermédio, a "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Como não podia deixar de ser, a obra de Euclides é tratada aqui como grande matriz e primeira tentativa bem-sucedida de encontrar a cara do Brasil e do brasileiro.
Debs tem sólido conhecimento de causa, algo que já demonstrara em ensaios sobre a obra do cineasta cearense Rosemberg Cariry, um especialista em Nordeste e sertão. O virtuosismo com que domina e cita vasta bibliografia em várias línguas amplia a relevância de seu livro. No entanto, o projeto de esgotar assunto tão complexo não se realiza sem percalços.
Já o título sugere que o volume de dados levantados poderia ter resultado em três obras separadas: "cinema e literatura no Brasil"; "os mitos do sertão"; e finalmente "emergência de uma identidade nacional". Combinar esses três grandes temas exigiu desvios longos e uma estruturação da obra em espiral, pela qual se volta incessantemente aos objetos que compõem o "corpus" da análise, vendo-se o leitor obrigado à garimpagem para extrair novas informações.
A ligação entre literatura e cinema pela temática do sertão é facilmente localizável no período do cinema novo, particularmente, como salienta Debs, no projeto de Nelson Pereira de adaptar grandes obras literárias brasileiras com vistas à criação de um cinema nacional independente, começando pela literatura social de Graciliano Ramos e seu "Vidas Secas", ambientado no sertão nordestino. O divisor de águas é consolidado por Glauber, ao traduzir em imagens, em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), a saga de Canudos, pioneiramente documentada por Euclides da Cunha no início do século 20. O cinema novo seria, portanto, o momento privilegiado para o início da abordagem do sertão como elo entre cinema e literatura. Debs, porém, provavelmente impulsionada pelo desejo de informar leitores estrangeiros, optou por resumir toda a história da literatura brasileira desde a carta de Caminha.
Quanto ao cinema, a autora descreve outro longo périplo, voltando às origens com Pascoal Segreto e suas tomadas de vistas do Rio no fim do século 19. Por fascinante que seja, esse percurso dificilmente traz novidades, embora ocupe dezenas de páginas. A abordagem da temática central do Nordeste e do sertão só acontece após resumos vertiginosos de décadas e séculos, ao longo dos quais se estabelecem relações surpreendentes e não raro arbitrárias.
O problema se apresenta já na escolha das obras do "corpus". São elas, no campo literário: "Os Sertões" (1902); "O Quinze" (1930), de Rachel de Queiroz; "Vidas Secas" (1938), de Graciliano; "O Turista Aprendiz" (1943), de Mario de Andrade; e "Grande Sertão: Veredas" (1956), de Guimarães Rosa. No cinema: "O Cangaceiro" (1953), de Lima Barreto; "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos; "Os Fuzis" (1963), de Ruy Guerra; "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969), de Glauber; "Corisco e Dadá" (1996), de Rosemberg Cariry; "O Sertão das Memórias" (1996), de José Araujo; e "Central do Brasil" (1998), de Walter Salles.

As lacunas
Os critérios dessa escolha não se esclarecem por completo, ora tendendo para a representatividade das obras, ora para sua recepção. Qualquer que seja o caso, a lista apresenta lacunas. Com relação ao cinema recente, a mais notável é de "Baile Perfumado" (1997), dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira, um dos filmes mais inovadores da retomada. Um olhar ainda que rápido sobre essa obra pop, na qual um sertão verde se encontra impregnado de cultura urbana e globalizada, poria em xeque a hipótese, sustentada ao longo do livro, do caráter necessariamente isolado, árido e incomunicável do sertão em suas expressões artísticas.
Critério adotado com maior ênfase é a divisão entre aquilo que a autora chamou de olhar "endógeno" e "exógeno" ou "focalização interna e externa". Segundo essa abordagem, no campo da literatura, teríamos um olhar "sulista", representado por Mario e Euclides, em contraposição ao "local", representado por Graciliano, Raquel e Guimarães. Mas as fronteiras se revelam difíceis de traçar, especialmente no cinema. Diante da impossibilidade de colocar entre sulistas ou nordestinos alguém como Nelson Pereira dos Santos, um paulista que desde cedo se identificou com todas as outras regiões do Brasil, a divisão acaba se limitando à oposição entre a visão "redentora" de Walter Salles e a abordagem "histórica" de diretores nascidos no Nordeste, como Glauber, Rosemberg Cariry e José Araújo. Os limites dessa oposição não tardam a surgir, e a autora é a primeira a apontá-los -mas então, mais uma vez, sua construção se dissolve.
Em várias passagens, sente-se que Debs gostaria de ver no olhar endógeno o mais capaz de produzir a identidade nacional. Quanto ao cinema, chega a afirmar que "apenas os cineastas nordestinos põem sistematicamente em cena os personagens típicos e históricos do panteão nordestino, o que lhes permite inscrever a saga nordestina no contexto nacional brasileiro". Mas a hipótese não se consolida pela própria variedade das obras e o "individualismo" -segundo Debs- dos cineastas recentes, alheios a regras de grupos e escolas.
Em seu ímpeto totalizante, o livro por vezes torna-se redutor. As passagens mais críticas resultam da dificuldade de classificação de Guimarães Rosa, um mineiro cuja produção não se encaixa nas especificidades do sertão nordestino. Por sorte, sua classificação como autor "pós-moderno" é logo deixada de lado. Porém, na conclusão, ele é surpreendentemente alinhado ao diretor Lima Barreto, ambos, segundo a autora, possuidores de uma visão "estereotipada" do sertão, "totalmente desligada de qualquer preocupação realista", que leva "o espectador e o leitor à descoberta de um universo situado fora do tempo e do espaço contemporâneos". A ausência de análises detalhadas de "O Cangaceiro" e de "Grande Sertão: Veredas" torna difícil perceber como o "nordestern" estilo Vera Cruz pode ser equiparado à extraordinária erudição de Guimarães sobre o sertão mineiro, seu povo, sua língua, seus costumes e suas histórias.
O livro de Sylvie Debs realmente cresce quando faz a caracterização do espaço mítico do sertão. Nesse momento, descobrimos, nas belas palavras encontradas pela autora, o sertão "intraduzível", o exato oposto ao mar e idêntico a ele em grandeza. Penetramos a intimidade desse esconderijo, "deserto e distante", que nunca se alcança por completo e do qual nunca se sai, o "desertão", o mundo fora do mundo e "fora-da-lei", lugar do inferno e das utopias. Enquanto "negação do espaço cotidiano e conhecido", o sertão, de fato, se conforma como repositório ideal da verdade, ou seja, da identidade nacional. Mas talvez em sua dinâmica, que continua atraindo artistas ao longo dos tempos, o sertão seja ainda mais, e "mais misturado", como diria Guimarães. Eis a questão que deixa em aberto esta obra, de resto louvável, ao comprovar a centralidade desse tema na cultura brasileira.

Lúcia Nagib é professora de cinema na Unicamp e autora, entre outros livros, de "O Cinema da Retomada" (Ed. 34).


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