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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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Rumo aos fundamentos



Introdução aos Fundamentos Axiomáticos da Ciência
Décio Krause
EPU (Tel. 0/xx/11/3168-6077)
224 págs., R$ 55,00


VALTER ALNIS BEZERRA

Durante o século 20, ocorreram profundas transformações em nossa compreensão do que é a ciência e de como ela funciona. Essas transformações levaram os filósofos a elaborar uma imagem de ciência que diverge marcadamente das imagens acalentadas até o século 19. A imagem de ciência legada pelo século 20 não é, porém, unificada e coesa, mas plural. Isso se deve, em parte, ao fato de que a ciência foi analisada sob várias perspectivas diferentes -ora buscando uma teoria da racionalidade científica, ora privilegiando o estudo sociológico da comunidade científica, ora examinando a história e buscando uma teoria do progresso científico.
Uma das perspectivas em que se realizaram estudos filosóficos sobre a ciência é a análise da estrutura das teorias científicas. É nessa vertente que se insere este notável livro do lógico, físico e filósofo brasileiro Décio Krause. Como a ciência moderna se caracteriza pelo uso intenso da matemática, é natural esperar que ela compartilhe com a matemática a abordagem axiomática. Buscar uma axiomatização para uma teoria significa, essencialmente, procurar descrever da maneira mais precisa, geral e completa a sua estrutura conceitual, explicitando seus princípios fundamentais, bem como entender de maneira rigorosa como se opera com esses princípios de modo a obter conclusões testáveis acerca do mundo.
Existiram basicamente duas grandes fases no estudo da estrutura da ciência no século 20. No período entreguerras tomou corpo uma concepção segundo a qual a estrutura da ciência poderia ser capturada por meio da lógica. As teorias científicas seriam, segundo essa concepção, basicamente sistemas formais ou cálculos lógicos, interpretados por meio de regras que visavam vincular os construtos teóricos às propriedades observáveis. Esse enfoque foi predominante até os anos 1950. Pensadores tão brilhantes quanto laboriosos aperfeiçoaram essa teoria (denominada "concepção padrão"), e muitas questões importantes sobre a ciência puderam ser formuladas de maneira precisa pela primeira vez.
Em meados dos anos 50, uma nova concepção de estrutura da ciência começou a ser desenvolvida por Patrick Suppes. Essa nova concepção defende que a ferramenta mais adequada para investigar a estrutura da ciência não é a lógica de primeira ordem, como se pensava até então, mas sim a teoria de conjuntos, combinada com uma disciplina conhecida como teoria de modelos. É sobre esse enfoque (denominado "conjuntista", "modelo-teórico" ou "não-enunciativo") que versa o livro de Décio Krause. Trata-se da primeira exposição realmente didática sobre o enfoque conjuntista e modelo-teórico em ciência, um livro que possui méritos pedagógicos incontestáveis. Cabe lembrar que o autor trabalhou com o lógico brasileiro Newton da Costa, que desenvolveu e divulgou a proposta de Suppes.
Krause nos brinda com um texto escrito num estilo muito claro e objetivo, que também não é desprovido de verve, evidenciando assim estar plenamente à vontade com o assunto. O autor se detém em esclarecimentos muito oportunos exatamente nos pontos mais necessários, que outros autores costumam ignorar ou relegar a segundo plano. Um exemplo é a discussão feita no início do capítulo 2, que ajuda a elucidar a relação existente entre duas máximas do programa conjuntista: (a) "axiomatizar uma teoria é formular um predicado conjuntista" e (b) "uma teoria é a classe de seus modelos". No mesmo capítulo, o autor discute três exemplos de axiomatização de teorias científicas, começando com a mecânica clássica de partículas. Os biólogos certamente irão apreciar a discussão sobre a teoria sintética da evolução, que vem em seguida. Por fim, a discussão sobre a física de segunda quantização constitui um ponto alto do livro, porém requer certo conhecimento de física.
Os capítulos 3 a 5 constituem um verdadeiro curso avançado sobre a teoria de conjuntos, que, como frisa o autor, "é onde tudo acontece" na axiomática da matemática e da ciência. São apresentadas e discutidas em detalhe sete diferentes versões da teoria de conjuntos. O axioma da escolha e a hipótese do contínuo, que desempenharam papel importantíssimo na pesquisa em fundamentos, são devidamente discutidos. Dá-se especial atenção aos paradoxos, contra-exemplos e extensões que funcionaram como força motriz no desenvolvimento da teoria. Finalmente, no capítulo 6, somos apresentados à área de pesquisa atual do autor, que é o estudo dos objetos indistinguíveis em física quântica, envolvendo a teoria de quase-conjuntos e a lógica não-reflexiva.
Uma virtude importante do livro é não apresentar o enfoque conjuntista e modelo-teórico como se fosse "tirado do nada", sem precursores nem origens. Ao contrário, insere o enfoque dentro de uma perspectiva mais ampla, situando-o em relação a toda uma tradição de axiomática que vem desde o final do século 19 até os dias atuais, que inclui Hilbert, Cantor, Russell, Tarski, Gödel, o grupo Bourbaki etc. O autor também não deixa de dar a palavra aos críticos do enfoque, como V.I. Arnold e Clifford Truesdell. Desse modo, evita-se uma certa falta de perspectiva histórica e crítica que às vezes existe, sobretudo em obras de caráter mais técnico.
Um reparo que pode ser feito ao livro diz respeito à ausência de uma discussão das outras versões que existem do enfoque conjuntista e modelo-teórico, além daquela devida a Suppes. A ausência mais sentida é a do enfoque dito "estruturalista", fundado por Joseph Sneed em 1971 e desenvolvido por W. Stegmüller, C. Moulines e W. Balzer, entre outros. Embora inicialmente inspirado pelas idéias de Suppes, a concepção estruturalista acabou se desenvolvendo numa direção diferente e tem gerado muitos desenvolvimentos importantes nas últimas décadas, o que a credenciaria a ser mencionada no livro.
De qualquer modo, graças às suas inúmeras qualidades, o livro de Décio Krause está destinado a figurar no rol das melhores obras existentes sobre a estrutura da ciência. Não seria grande exagero afirmar que é um livro que provavelmente o próprio Patrick Suppes, pioneiro do enfoque conjuntista, se orgulharia de ter escrito.

Valter Alnis Bezerra é formado em física, doutor em filosofia e pesquisador de pós-doutorado na USP.


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