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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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Édipo no espelho



Édipo em Tebas - O Herói Trágico de Sófocles e seu Tempo
Bernard Knox
Tradução: Margarida Goldsztyn
Perspectiva
(Tel. 0/xx/11/3885-8388)
212 págs., R$ 30,00


RACHEL GAZOLLA

Quando imaginamos quase esgotadas as possibilidades interpretativas da cultura grega antiga no que respeita às tragédias, eis que surge mais um texto que carrega o leitor a pensamentos em nada assentados. Publicada em 1957 pela Yale University Press, este livro teve críticas favoráveis e foi reeditado em 1988, com modificações mínimas, e chega agora ao Brasil. Diz o autor que escreve para aqueles que "não dominam o grego". Diríamos que, bem mais que isso, Bernard Knox expõe, de modo claro, uma tese audaciosa e bem cuidada que vale a pena conferir: não seria o Édipo tebano uma construção poética de Sófocles para o histórico Péricles, da histórica Atenas? Por mais que outras leituras tenham aproximado o Édipo "tyrannos" do também chamado Péricles "tyrannos", Knox crê exageradas e mal fundamentadas tais interpretações; porém, como não se pode descartar facilmente essa hipótese, propõe a sua.
Se os amigos de Péricles, e também seus oponentes, chamavam-no "tirano", o autor aproveita-se dessas similitudes presentes nos textos e recolhe inúmeras passagens da tragédia sofocliana, bem como notícias sobre essa época histórica, para cotejar Édipo-Péricles. Irrepreensível a fundamentação em textos que faz o autor, a abundância de notícias e notas ao redor do seu núcleo temático, o que denota Knox como partícipe daquela cada vez mais rara tribo dos pacientes helenistas de longa formação.
Péricles um tirano? Édipo, também. Péricles inteligente, autoconfiante, sintético na fala, dedicado à cidade, de temperamento irascível, incansável nas atividades? Édipo, também. Ao tecer várias comparações, o leitor é levado à aceitação de que "Édipo, em seu caráter e forma de agir, é uma representação simbólica da Atenas de Péricles". Péricles, Atenas, Édipo. B. Knox sustenta muito bem sua hipótese, com bons textos, e os interessados na cultura helênica têm, nesta obra cuidadosamente impressa, um texto rico em detalhes da época grega clássica.
Apesar disso, por que se conclui a leitura com um certo gosto ácido na alma? Se isso ocorrer ao leitor, talvez se deva à metodologia usada frequentemente pelos anglo-americanos, e muito pouco pelos de língua latina (amplo senso): Knox tem uma hipótese na mão antes de iniciar seu estudo e procura confirmá-la no decorrer da investigação.
Ora, não necessariamente terá que ser assim. O que impede que tal hipótese Édipo-Péricles possa ser aplicada a Édipo-Alexandre? Ou devemos admitir que a figura de Édipo só tem paralelo para Knox com o império ateniense, e não com o macedônico? As comparações também se aplicam à personalidade de Alexandre. Veja-se a generalidade do procedimento. Knox diz, por exemplo, quanto à guerra ateniense contra Esparta, que o "estado de ânimo da liderança ateniense no início da guerra era de um conformismo exterior e um ceticismo interior (...); e nos ataques frequentes de Eurípides ao oráculo de Delfos (...) temos alguma idéia da forte reação ateniense contra o encorajamento entusiasta de Delfos aos espartanos". E na sequência faz a ligação entre o histórico e o poético, dizendo que também esse era o caso de Édipo, enfurecido com o adivinho Tirésias, representante do deus Apolo, do templo de Delfos.
A leitura histórica do homem, do herói, da cidade, do deus, como faz Knox, é um apanhado geral de noções e acontecimentos, e não é outra sua proposta, porém é digno de nota que o autor seja otimista, como ele mesmo confessa, quanto ao alcance que se pode ter, hoje, da Grécia clássica nela mesma, de sua "verdade". Com efeito, ele parte de uma hipótese que parece bem moderna: o simbolismo que os poetas trágicos estariam usando para apontar a ideologia da época. Com isso, crê tocar Édipo, Péricles e Atenas em sua origem. Nada fácil. Se Knox tiver razão, já teriam os poetas trágicos esse astucioso e sutil instrumental para criar personagens símiles a fim de criticar o status quo. Pode ser possível? Sim, mas o estatuto mítico-religioso da tragédia se desintegra.
Há estudiosos que acreditam alcançar a antiga Grécia por meio dos textos que nos chegaram por eles mesmos e se aproximar, num estudo vertical, da origem. Um esforço de distanciamento dos próprios valores é necessário. Há os que crêem impossível tal proeza e qualquer interpretação será, portanto, legítima. B. Knox talvez salte da primeira hipótese em seu otimismo para se encontrar, inadvertidamente, na segunda.
Mesmo com saltos mortais, e qualquer que seja o ponto de partida ou chegada, "Édipo em Tebas" traz, ao redor do seu núcleo investigativo, muitas notícias de textos de importância para os estudiosos do helenismo, desde as tragédias, comédias, passando por Tucídides, Demóstenes, chegando ao tardio Plutarco. É uma obra bem-vinda, apesar de uma certa conturbação nos focos propostos, ou melhor, apesar de uma certa tontura provocada pelos excessivos reflexos dos espelhos.

Rachel Gazolla é professora de história da filosofia antiga na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora, entre outros livros, de "Para Não Ler Ingenuamente uma Tragédia Grega" (Loyola).


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