São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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O escudo de Arquíloco



A importância do poeta para o Ocidente é comparável à de Homero e Hesíodo
JACYNTHO LINS BRANDÃO


Eis aqui um livro raro, pois não se trata só de um estudo que apresenta um autor antigo para um público local, mas de acurada pesquisa que passará a constar da bibliografia internacional sobre Arquíloco como obra de consulta indispensável.
É também raro por fazer o caminho inverso da maioria, que prefere interpretar em vez de ler. Não por acaso Paula Corrêa começa estudando a "fortuna crítica de Arquíloco na Antiguidade" e algumas das mais prestigiadas "leituras modernas" de sua obra. Configura-se o denso emaranhado que mediatiza nosso conhecimento dos textos antigos, submetidos a milênios de usos (e abusos) -situação mais aguda no caso de autores como Arquíloco, de que nos chegaram só fragmentos, em pedra, papiros e, sobretudo, em citações. A obra do poeta submete-se assim a toda sorte de acidentes materiais e textuais, os quais a autora examina, demonstrando formação, segurança e finura filológica para garimpar, em textos e contextos, preciosidades.
A poesia de Arquíloco é tão inaugural para o Ocidente quanto a de Homero e Hesíodo. Todavia, sua transmissão se deu de forma esfacelada, o que configura um paradoxo: prova o quanto foi lida e o quanto foi descurada. Os percalços da transmissão interferem nas interpretações, levando principalmente a que seja ela entendida a partir dos poemas homéricos e hesiódicos. Se isso pode enriquecer nossa compreensão, também arma ciladas. É natural que Arquíloco estabeleça algum grau de diálogo com os poetas anteriores, mas é prudente não esquecer que os gêneros líricos têm sua própria tradição, tão antiga quanto a da poesia heróica e didática.
Em "Armas e Varões", é essa difícil questão que a autora enfrenta, considerando apenas os fragmentos relativos à guerra, com rigor germânico e britânica contenção. De fato, o leitor pode decepcionar-se ao não descobrir, no livro, um guia para o "verdadeiro" entendimento da guerra em Arquíloco. O que se lhe oferece, entretanto, é algo de mais requintado: nenhum guia, mas autêntica arqueologia dos problemas que o tema da guerra levanta no velho poeta.
Para tanto, procede-se a crítica rigorosa da chamada Snell-Fränkel School, cujo método, baseado "quase exclusivamente no estudo lexical", intenta elaborar uma "história do espírito", debitária da teleologia de Hegel. Sua influência, sobretudo por meio do clássico de Bruno Snell, "A Descoberta do Espírito", estendeu-se amplamente, incluindo as escolas francesas contemporâneas, de que o autor mais conhecido entre nós é Jean-Pierre Vernant. Não se pode negar que esse método produziu boas vias de interpretação, mas é também inegável que reduz o sentido dos textos a certos parâmetros, orientados pela suposição que o "espírito" se desenvolve com o tempo, na direção de conceitos cada vez mais abstratos.

Várias leituras
O que o presente estudo demonstra é como a sociedade grega, desde quando a podemos conhecer, é complexa e aberta, convivendo com orientações, concepções e valores variados.
Justamente por isso o controle dos processos de leitura é fundamental. Em "Armas e Varões" podem-se apreciar vários exemplos, como o dos versos relativos ao escudo que o poeta afirma ter abandonado no campo de batalha para salvar sua vida. A mais antiga citação foi feita por Aristófanes, na comédia "A Paz", com conotação claramente negativa, "como expressão de covardia". Já o cético Sexto Empírico usa os versos para ilustrar que, "no que concerne à justiça, à injustiça e à virtude viril, há muita divergência", uma vez que Arquíloco vangloria-se de uma atitude que, entre os lacedemônios, seria punida pela lei. Nos neoplatônicos, a leitura sofre uma reviravolta radical: é que se passa a explorar, nos versos, imagens da oposição entre a alma e o corpo, equivalendo o escudo a este último. Assim, afirma Olimpiodoro: "Pensemos em salvar a alma, sabendo que os bens e o corpo nada valem. Façamos, então, o que aquele disse: mas salvei-me. Que me importa aquele escudo? Que vá".

Armas e Varões - A Guerra na Lírica de Arquíloco
Paula da Cunha Corrêa Ed. da Unesp (Tel. 011/232-7171) 366 págs., R$ 35,00



Esse único exemplo ilustra os problemas que cercam o "corpus" de Arquíloco: seus versos, de tão famosos, tornaram-se proverbiais, submetendo-se a diferentes usos e intenções. Como então recuperar a forma original? Como se faz em "Armas e Varões", nada mais resta que contextualizar os fragmentos: de um lado, na época de Arquíloco, usando evidências literárias, arqueológicas e históricas; de outro, no contexto em que cada citação se transmite; enfim, lidando com as "fontes diretas" antigas, epigráficas e papiráceas. Para fazer tudo isso, a autora alia argúcia na decifração dos textos e atenção aos suportes em que se transmitiram, o que funciona como controle eficaz contra elucubrações vazias. Um método exemplar, que produziria bons resultados em outros "corpora", como os dos filósofos pré-socráticos, sobre os quais muito se tem fantasiado.
A leitura tem sua própria história, sendo o que consagra uma obra como clássica. Conforme Barthes, "clássico é todo texto legível" -eu diria: ele é o legível por excelência, no sentido de que suporta, em grau máximo, leituras variadas. Exploremos mais o nosso exemplo. O fragmento do escudo apresenta duas variantes principais: em Aristófanes lê-se "mas salvei minha vida" ("psykhèn d'exesáosa"), enquanto, nos neoplatônicos, "salvei-me a mim mesmo" ("autón m'exesáosa"). Ora, ao equipararem o escudo ao corpo, estes últimos interpretam que o que se salva é a alma ("psykhé"), como, já sem saber quem seria o autor dos versos, acredita Elias, entendendo que o poeta teria chamado "sua alma ("psykhé') de si próprio ("autón') e seu corpo de escudo". Conforme observa Vicenzo di Benedetto, em que pese o conceito neoplatônico de "psykhé" ser sem dúvida diferente dos de Aristófanes e de Arquíloco, não deixa de ser curioso como, por vias tortuosas, infere-se justamente a lição mais antiga: salvei minha "psykhé".
Pergunta-se: que opção adotar? A autora seguiu West, abandonando o testemunho de Aristófanes, mas cada um poderá fazer sua própria escolha, a partir do que se discute no livro. Afinal, o que importa é que o leitor perceba a própria trama de leituras que se sucedem, opõem e sobrepõem, desautorizando a ilusão de "originalidade". E, de tabela, desautorizado fica ainda o pressuposto de que, no Brasil, se você tem uma boa idéia, só pode mesmo escrever uma canção. Filologia clássica, afinal, não é coisa só para alemão. Prova-o bem a perícia de Paula Corrêa.


Jacyntho Lins Brandão é professor de língua e literatura grega da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "O Fosso de Babel" (Nova Fronteira).


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