São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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O sentido da literatura brasileira



O historiador e crítico José Aderaldo Castello busca a unidade das obras literárias do país, da Colônia até a década de 60
TELÊ ANCONA LOPEZ


Dois volumes, matéria dividida em quatro partes, 25 capítulos e dois apêndices perfazem esta obra magna de José Aderaldo Castello, agora publicada.
Ao estender liames entre autores e textos, o processo comparativo adotado por esse historiador e crítico busca a aproximação unificadora, envolvendo a literatura do Brasil, da Colônia até a década de 60 do século 20. Visa destacar, nesse percurso, o sentido de "auto-identificação" dessa literatura, preso à relação homem-terra, alimentado pelos "legados europeus e americanos", sentido capaz de calçar a unidade que detecta. Assim, focaliza, ao longo de quatro séculos, os traços da sociedade, o campo intelectual, as idéias estéticas, a obra de cronistas, poetas e ficcionistas; a oratória sacra, a epistolografia, o jornalismo literário, polêmicas e manifestos, a memorialística.

Historiador e crítico
Detém-se naqueles que toma como "autores-síntese" -Anchieta, Vieira, José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Alberto de Oliveira, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, José Américo de Almeida, Jorge de Lima, Jorge Amado, Murilo Rubião, Guimarães Rosa, entre outros. Alencar e Machado contribuem de perto, na crítica que escreveram sobre a produção do tempo deles e sobre a antecedente, como uma espécie de fio condutor na avaliação que Castello faz da literatura do século 19.
O processo comparativo, aproximando autores e estéticas no correr dos períodos, consciente das distâncias e diferenças, mas arguto no assinalar semelhanças e ecos, permite que se veja "A Literatura Brasileira: Origens e Unidade (1500-1960)" como uma espécie de hipertexto, em que a leitura não pode ser única ou linear, e exige retornos e avanços, verificação. É leitura multiplicadora de campos, valorizando a união indissolúvel entre o historiador e o crítico, quando a crítica prioriza temas, projetos literários, soluções de estilo, tratamento do espaço etc., e percebe a vitalidade dos paralelos no ofício de historiar.
A capacidade de vincular autores e projetos dá um sabor especial ao livro, pois exerce aquela que, para Saint-Beuve, é a principal tarefa do crítico -ensinar a ler. Descobre Alencar optando pelo uso de feições brasileiras na língua portuguesa, a ponto de se tornar, em 1928, merecedor de uma primeira dedicatória de Mário de Andrade em "Macunaíma": "A José de Alencar/ pai-de-vivo", isto é, antepassado que virou estrela. E Alencar, que bebe, pela vez dele, em José Bonifácio, palavras do cotidiano, que estarão, não só no romantismo, mas também, muito mais tarde, na bandeira da renovação de 1922. Só o domínio de um vasto repertório pôde garantir a José Aderaldo Castello a arte de relacionar Bernardo Guimarães e Aluízio Azevedo (na "literatura de crítica e combate ao sistema escravocrata"); Afonso Arinos e Autran Dourado (a propósito de temas mineiros), Távora e Gilberto Freyre; "Casos do Romualdo", de Simões Lopes Neto, e "Histórias de Alexandre", de Graciliano Ramos; Manuel Antônio de Almeida, Inglês de Souza e Lima Barreto (observando o "tom de crônica maliciosa e mordaz, quase panfletária, contra instituições"); o conto "O Gado do Valha-me-Deus", do prosador paraense, e "Com o Vaqueiro Mariano", de Guimarães Rosa, para lembrar alguns exemplos.
As marcas da trajetória intelectual de Castello mostram-se bem nítidas nesta sua monumental história da literatura do Brasil. Aqui estão retomados (e em certos pontos revistos) os principais apegos do historiador da literatura, na escolha que a maturidade plena realizou: a literatura colonial e o movimento academicista, o nativismo romântico, Machado de Assis, o regionalismo, a visão panorâmica, as revistas literárias, mormente as modernistas. Novas reflexões completam os principais livros que Castello escreveu nas décadas de 50, 60 e 70: "A Literatura Brasileira: Manifestações Literárias do Período Colonial"; "O Movimento Academicista no Brasil: 1641-1820/22" (14 tomos); "O Romantismo no Brasil"; "Textos que Interessam à História do Romantismo" (3 volumes); "Realidade e Ilusão em Machado de Assis"; "José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo"; "A Presença da Literatura Brasileira" (antologia com Antonio Candido).

A sala de aula
Aqui se vê o pesquisador pioneiro na coleta e publicação de documentos -talvez o primeiro, na área da literatura brasileira, a usar a microfilmagem, montando ele próprio, em 1946, com uma Leica e filmes de 36 poses, um aparelho quase portátil, para percorrer os arquivos mineiros, em busca de manuscritos das academias. Esse pesquisador fundamenta, revela autores e obras, abre perspectivas, ilumina com originalidade aspectos pouco focalizados, principalmente nos capítulos dedicados ao barroco, às academias, ao romantismo e ao regionalismo nordestino.

A Literatura Brasileira: Origens e Unidade (1500-1960)
José Aderaldo Castello Edusp (Tel. 011/818-4150) 464 págs. (vol. 1), 584 págs. (vol. 2) Preço indefinido



"A Literatura Brasileira: Origens e Unidade" guarda também os passos do professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, mestre de várias gerações e difusor de nossos escritores em universidades da França e da Alemanha. Sua presença está na capacidade didática que o faz desenvolver, em cada capítulo, apresentações gerais, exposições detalhadas, sempre fixando correlações, e conclusões enfeixando a matéria explorada. Didatismo que desenha com precisão, no capítulo sexto, um belo quadro sinóptico acolhendo as manifestações literárias do período colonial, ótimo para uso em salas de aula. Está na exploração detalhada das principais revistas literárias do século 19 e do 20, refletindo o grande projeto de estudo de periódicos literários, por ele capitaneado no curso de pós-graduação de literatura brasileira da FFLCH, nos anos 70, e seu papel de editor interessado em fontes primárias, que será também objeto de nossa atenção.
Na didática cabe também o pesquisador, o bibliófilo e o "expert" em edições, que providencia farta e pertinente ilustração para os volumes, enriquecendo-os com fotos, reproduções de desenhos e pinturas (retratando autores, recriando personagens), capas de livros e revistas (identificados sempre os artistas gráficos) e fac símiles de manuscritos.
A marca do Castello diretor, que afirmou nacional e internacionalmente o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), tornando-o um centro interdisciplinar de pesquisas sobre o modernismo e instituição modelar na salvaguarda de acervos, une-se à do editor que, na mesma instituição, responsabilizou-se pela série de livros reunindo teses e dissertações dos orientandos do professor, resultantes do grande projeto de estudo dos periódicos literários (1). Esse editor criou também, ali, a Biblioteca Universitária de Literatura Brasileira (a Bulb), formada por coletâneas de ensaios sobre crítica e história literária assinadas por Antonio Candido, Alfredo Bosi, Guilhermino César, João Alexandre Barbosa, entre outros, e por edições críticas.
A pesquisa, forte traço na vida e na obra de Castello, merece também destaque neste livro. O "Apêndice 1º", "A Literatura Brasileira: História e Pesquisa", traça um panorama que tem início no empenho dos cronistas em recolher depoimentos e vai até os pesquisadores e instituições contemporâneas que lidam com arquivos. Completa o trabalho realizado e aponta caminhos. Introduz o grande "Roteiro Bibliográfico", "Apêndice 2º", na verdade, obra de referência rigorosa, em que o historiador compartilha suas fontes brasileiras e estrangeiras -bibliografias, dicionários bibliográficos, histórias da literatura (divididas por séculos e por gêneros), antologias- e nos oferece uma "Bibliografia Seletiva da Produção Literária" que remete, minuciosamente, a todos os autores referidos, suas datas, seus títulos, nomes no cartório e nomes de guerra. O roteiro nos conta da importância que Castello sempre atribuiu às bibliografias e nos faz lembrar a magnífica "Bibliografia do Período Colonial", de Rubens Borba de Moraes, por ele editada no IEB, em 1969.
Entre os pontos principais que uma resenha rápida levanta, nesta história de largo alento, resta o estilo do ensaísta. Uma certa poesia na linguagem, clareza, simplicidade e precisão proporcionam uma leitura boa, chamando-nos para dentro do livro e fazendo com que guardemos belas visões, como a de Anchieta, "já peregrino amoroso em nossas terras".

Nota 1. As edições, vindas do projeto de José Aderaldo Castello, das teses e dissertações sob sua responsabilidade ou de Alfredo Bosi, Cecília de Lara e Neroaldo Pontes (estes últimos formados por Castello) podem ser conhecidas em comunicação de Margaret A. Wood da Silva, na "Revista do IEB", nº 21, págs. 118-122. Atualmente Antonio Dimas continua esse trabalho.


Telê Ancona Lopes é pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e autora de "Mário de Andrade - Ramais e Caminhos" (Duas Cidades).


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