São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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O texto da cultura


Coletânea reúne ensaios so antropólogo Clifford Geertz


FERNANDA PEIXOTO


Os novos ensaios de Clifford Geertz (1926) não são tão novos assim. Publicados em livro em 1983, desenvolvem as linhas mestras da proposta interpretativa do antropólogo, apresentada ao público em "A Interpretação das Culturas" (1973).
Inspirado na distinção diltheiana entre ciências da natureza e ciências do espírito, Geertz anuncia o rompimento com as taxinomias e terminologias caras às "hard sciences" e insere a antropologia na órbita das humanidades. A interpretação antropológica, afirma, "concentra-se no significado que instituições, ações, imagens, elocuções, eventos, costumes (...) têm para os seus "proprietários'". Debruçado, portanto, sobre os sistemas simbólicos construídos pelo homem, o intérprete da cultura não apenas descreve o mundo social, mas penetra no complexo universo das significações que tornam a vida social inteligível. E o faz, não com o auxílio das regras do método, mas sobretudo pela interpretação do "fluxo do discurso social", pela leitura dos textos culturais.
"Texto" é, na verdade, a palavra-chave na antropologia de Geertz; analogia explicativa inspirada nas formulações de Paul Ricoeur que, ao lado das imagens do jogo (Erving Goffman) e do drama (Victor Turner), contribui, na opinião do autor, para a reconfiguração da teoria social. A cultura é pensada como texto socialmente elaborado e como contexto no interior do qual as ações sociais podem ser descritas de forma inteligível, "com densidade". A etnografia, definida então como "descrição densa", é concebida como tarefa eminentemente interpretativa e -é bom lembrar- microscópica, o que leva a teoria a manter-se mais próxima ao terreno. O ensaio, por sua vez, mostra-se a forma mais adequada para apresentar os "tateios desajeitados" das interpretações culturais.
Variados tipos de "saberes locais" -a arte, o direito, o senso comum, o pensamento moderno e o poder- constituem os objetos dos exercícios interpretativos ora traduzidos, realizados com o apoio das pesquisas de campo das décadas de 50 e 60 na Indonésia (Java e Bali) e no Marrocos. Mas, antes de tratar desses domínios específicos, o intérprete abre o volume com três ensaios voltados para a reflexão mais ampla sobre o saber antropológico e sobre a prática etnográfica. Examina as afinidades existentes entre os ofícios do antropólogo e do crítico literário; problematiza a natureza do entendimento antropológico, usando como mote os diários de Malinowski; toma o senso comum (e o bom senso) como um corpo de crenças e juízos, cujo conteúdo varia no tempo e no espaço. Orientado por uma "razão coloquial" e voltado para explicar os fatos da vida cotidiana, o senso comum, apesar de sua extrema variabilidade, possuiria uma ordem única, passível de ser descrita empiricamente.

O Saber Local - Novos Ensaios de Antropologia Interpretativa
Clifford Geertz Tradução: Vera Mello Joselyne Vozes (Tel. 011/227-6266) 366 págs., R$ 27,00



A arte, que a princípio poderia ser vista como antípoda do senso comum, dele se aproxima, na medida em que é também corpo de saberes e práticas socialmente inteligíveis, afirma Geertz. Dessa maneira, o autor mostra-se reticente em relação a todo tipo de análise "formal" ou "técnica" da arte, que tomaria os "objetos estéticos como mero encadeamento de formas puras". Trata-se de propor o exame dos materiais artísticos por meio da exploração das sensibilidades, entendidas como formações coletivas socialmente forjadas.
A reflexão sobre o simbolismo do poder contida em "Centros, Reis e Carisma" apresenta a mesma inclinação analítica que o estudo sobre o Estado e o teatro balinês do século 19 ("Negara", 1980). Em ambos, Geertz elege símbolos, ritos e imagens como portas de acesso para a compreensão do conteúdo sagrado do poder do soberano. Mas, neste ensaio, o eixo da discussão gira em torno da noção de "carisma", mediante a interpretação de três cortejos específicos: o da coroação de Elisabeth Tudor, em 1559; um ocorrido na Java de Hayam Wuruk, e um terceiro que teve lugar no Marrocos muçulmano dos Alawites.
A cultura moderna é mais uma vez objeto de atenção do intérprete no ensaio que fecha o volume, "O Saber Local: Fatos e Leis em uma Perspectiva Comparada". Aí, Geertz propõe a relativização da oposição fato/lei por meio do exame de três "sensibilidades jurídicas" distintas: a islâmica, a índica e a malaia. Esse tipo de perspectiva comparativa e hermenêutica nos obrigaria, segundo ele, a rever as concepções correntes do direito que tendem a aprisionar as análises nas "taxinomias institucionais". Uma das utilidades do enfoque é que, por seu intermédio, o direito "une-se, uma vez mais, às outras grandes formações culturais da vida humana -a moral, a arte, a tecnologia, a ciência, a religião, a história".
Não custa repetir: os novos ensaios de Clifford Geertz já não são tão novos assim. Distante estamos da onda novidadeira dos ensaios irreverentes, na forma e no conteúdo, que anunciavam em 1973 o programa geral da antropologia interpretativa à moda de Geertz, como ele próprio reconhece na introdução de "O Saber Local": "Dez anos atrás, a sugestão de que fenômenos culturais pudessem ser tratados como sistemas significativos, capazes de propor questões expositivas, era muito mais alarmante para os cientistas sociais do que é agora". Passados 20 anos da primeira voga interpretativista da antropologia norte-americana, a sensação de "déjà vu" se agudiza. As idéias e o estilo de Geertz se rotinizaram, perderam parte de seu brilho e vigor, tributários em boa medida do impacto que tiveram na década de 70.


Fernanda Peixoto é professora de antropologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara.


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