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Diagnóstico da universidade
IRENE CARDOSO
Na retórica do poder universitário, a posição crítica que diagnostica a situação da universidade brasileira hoje, nomeando-a "universidade em ruínas",
vem sendo designada como a do "pessimismo paralisante", identificada a uma "inércia do passado que
paralisa a universidade". Nessa retórica, essas formulações enunciadas no tom da desqualificação se
opõem a outras, vistas como alternativas, nomeadas,
se não como as de um inteiro otimismo, ao menos
como as da "vitalidade" e do "dinamismo". "Velha
mentalidade", "imobilismo institucional" e outras
tantas formulações no mesmo estilo constituem o
que deve ser eliminado, como obstáculo à mudança,
para dar lugar à mentalidade "nova", "criativa", "flexível".
A enunciação do discurso na chave otimismo/pessimismo, dinamismo/paralisia, na forma do deslocamento ou da desqualificação, explícita ou implícita, não reconhece a fala do outro como proveniente
de um discurso político.
Despolitizando o "diálogo", paradoxalmente, a retórica do poder universitário continua afirmando a
sua posição de defesa da universidade "pública", como se o caráter "público" da universidade não exigisse o reconhecimento da diversidade dos pontos
de vista "políticos" acerca da instituição, que dizem
respeito a diferenças de perspectivas quanto ao seu
modo de ser e que trazem as marcas de interpretações também diversas sobre a sociedade.
Aquela chave, acentuando o tempo presente, considerando o passado como a inércia que o paralisa,
só pode pretender, ainda paradoxalmente, manter a
posição de defesa da universidade pública obscurecendo o fato de que o caráter do "público" implica a
transcendência da pura imediatez do presente.
Apagar as marcas das gerações na instituição, em
outros termos, a sua história, é apagar o processo da
sua produção -as lutas políticas e as escolhas em
torno de projetos de educação que a conduziram a
um certo modo de ser no presente que aparece hoje
como inevitável -, a diversidade de discursos políticos que a constituíram, mesmo quando um modelo
se impôs sobre outros.
A importância desse livro organizado por Hélgio
Trindade está em explicitar a "perspectiva acadêmica e política" que busca o "debate público" sobre a
universidade, reunindo autores de diferentes inserções e experiências nas instituições, desde as mais estritamente acadêmicas até as de gestão administrativa. Ao afirmar essa posição, permite, pelo modo como organiza a discussão, visualizar o interlocutor
numa posição política, marcada pela escolha de um
certo modelo para o sistema universitário brasileiro,
que aparece no discurso como único e inevitável.
Os 16 artigos que compõem o livro, tendo como
objetivo realizar um "diagnóstico" do sistema federal de ensino superior (contribuindo para uma reflexão sobre as universidades estaduais paulistas),
constroem análises densas sobre a universidade brasileira, seja enfatizando os processos históricos que
produziram o modelo atual que vem sendo implantado, seja analisando conceitualmente aspectos relevantes sujeitos a interpretações distintas, ou ainda
elaborando análises comparativas que identificam
aproximações ou diferenças em relação a modelos
de organização universitária na América Latina, nos
EUA, na Inglaterra e na França, que vêm sendo objetos de discussão na literatura especializada.
O livro, ao apresentar essa diversidade de experiências, permite ao leitor perceber claramente as injunções históricas e políticas das opções por projetos
de organização dos sistemas universitários, rompendo de fato com o discurso monolítico da retórica do
poder universitário no Brasil.
Os artigos articulam as questões de fundo para
uma discussão: a do princípio da autonomia universitária e as novas relações entre o Estado, a universidade e o seu financiamento; a da dominância do sistema privado de educação superior sob a forma de
"empresas educacionais" sobre o sistema público federal e estadual; a da ameaça que pesa sobre a gratuidade do ensino público; a da função controladora
dos organismos internacionais de contenção de gastos públicos, especialmente a do Banco Mundial, para o ajuste da educação a um novo tipo de Estado; a
da avaliação do sistema universitário construída na
lógica da relação custos/benefício; a da desvalorização do ensino diante da hegemonia da pesquisa, que
está na base da "divisão do trabalho" que hierarquiza a universidade de pesquisa e as instituições de ensino que não deverão ter mais o nome de universidade. Essas questões equacionadas politicamente ganham especial relevância no confronto entre o discurso governamental que incorpora as teses para o
ajuste econômico do Banco Mundial e as alternativas
provenientes de outros organismos internacionais,
como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que pressupõem o
"compromisso irrenunciável" do Estado, "de investimento estratégico de longo prazo no ensino superior".
O confronto entre essas posições, na consideração
ainda dos seus efeitos para a educação superior e para o país, evidencia o caráter político de um projeto
que se quer apenas técnico por se pretender referido
ao "mundo real". É nesse registro de projeto técnico
que a retórica do "novo", do "dinamismo", da "flexibilidade" desqualifica a possibilidade da discussão
política e, portanto, pública sobre a universidade.
Universidade em Ruínas na
República dos Professores
Hélgio Trindade (Org.)
Editora Vozes (Tel.0/xx/24/237-5112)
223 págs., R$ 19,00
Irene Cardoso é professora de sociologia na USP.
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