São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Ver o nada

LEOPOLDO WAIZBORT

00"Se levarmos muito à risca a regularidade, deparamo-nos em seara árida." Assim Klee doutrinava seus alunos em Dessau, sem poder imaginar que, muito longe dali, Milton Dacosta, por força própria, acabaria por cumprir o mesmo programa. Realizando por si mesmo o que outro sonhara e soubera realizar, o pintor de Niterói inscreveu sua obra singular na história de nossas artes plásticas. Mas de modo absolutamente próprio, em uma trajetória pictórica cheia de idiossincrasias -a maior delas, decerto, é sua duvidosa obra tardia.
00O que alinha Dacosta ao professor da Bauhaus é uma certa compreensão do processo da abstração. Uma fantasia muito particular permitia-lhe conjugar, por força do modo como decantou o processo da abstração, forças e contraforças do vetor construtivo, geométrico, serial, formal. A contraforça sempre operante é a presença constante de um elemento orgânico em sua obra construtiva, que a desalinha.
00Responde, assim, não só à exigência de Klee, mas a uma tendência da arte e não só da pintura em nosso século, o enrijecimento. A liberdade de Dacosta contrapõe-se, soberana, a uma exigência de composição absolutamente integral, sem contudo renunciar a ela. Trata-se de paradoxo, o que é sinal de sua maestria. Como disse, isso decorre de sua compreensão do processo da abstração.
00Um depoimento permite-nos encaminhar o problema:
00"(Pergunta) - Mas os primeiros abstratos não chegaram a isso (a ruptura, o abandono da figuração) abandonando progressivamente a temática e a figura? (Resposta) - Talvez você veja isto nos quadros de Dacosta. A estilização, progressiva, o despojamento, a simplificação da figura, mas eu não acredito que aquele processo por si mesmo conduzisse fatalmente à abstração". Essa resposta de Ferreira Gullar toca na nervura da obra de Dacosta: o processo pictórico do pintor não leva inexoravelmente à abstração, e a aparição das Vênus tardias é sua prova. Mas, na mesma medida, a obra do pintor é exemplar na "estilização", no caráter de percurso, na "simplificação da figura".
00Esse talvez o âmago do problema, pois que, embora simplificada, resta algo da figura; tal resquício, traço, vestígio, é justamente o orgânico, com o qual o pintor responde às contradições históricas do processo da abstração, nomeadamente o enrijecimento. Outro jargão permitiria falar de um elemento expressivo que molda o construtivo, que permanece pulsante por entre as linhas e cores e não por trás. Como quer que seja, interessa menos o jargão do que o fenômeno.
00Contudo, permanece o desafio da compreensão do modo peculiar como Dacosta põe nas obras o problema. Isso diz respeito à relação de proximidade e distância que Dacosta trabalha em sua obra e se entrelaça com a relação parte/todo, fragmento/totalidade. Se compreendermos a dinâmica que o pintor soube imprimir e conservar nessas relações, temos chave explicativa para o processo da abstração concretizado em sua obra e, em mesma medida, para a especificidade de suas proposições/ soluções. Isso inclui o problema das relações micro/macro, tematizada constantemente em sua pintura.
00A relação micro/macro está presente inclusive no tamanho das telas do pintor. Por exemplo, a "Construção sobre Fundo Branco" (19 x 24 cm) é uma redução e condensação de um "grande" quadro em tela pequena; a dimensão imaginada da obra poderia ser a da "Construção sobre Fundo Negro" (120 x 160 cm).
00Tal jogo na dimensão das telas é sinal das preocupações com o nexo micro/macro, de entrecruzamento e embaralhamento, pois não se sabe se é todo ou parte, ou grande ou pequeno: aproximação e afastamento são elementos constituintes que estruturam essa pintura.
00Disse que não se sabe se é todo ou parte. Isso se evidencia na "Figura com Chapéu", de que podemos perguntar: não seria o chapéu uma das inúmeras "Composições"? Seria ou é? O pintor atiça a pintura e seus observadores; o problema todo/ parte está inscrito na obra: seria o chapéu um todo em si mesmo? Seriam suas "Composições", na verdade, partes de alguma "Figura"? O conhecimento da obra leva-nos a indagar acerca do nexo que se estabelece, e essa relação é a forma mediante a qual se realiza, no autor, o processo da abstração.
00O problema das dimensões não pode ser banalizado. Há "Encontros" que mal passam de um palmo de tamanho, enquanto outros ultrapassam o metro. Isso é uma provocação do pintor, que exige um aproximar e afastar constante dos seus observadores. Esse mesmo movimento, uma vez desencadeado, propaga-se no interior de uma mesma tela, e leva-nos a enxergar a tela dentro da tela -digamos, a "Composição" na "Figura"- e a tela fora da tela -a "Figura" na "Composição".
Com isso, Dacosta problematiza o que já se denominou como totalidade pictórica e o faz explorando uma certa "condicionalidade antropológica do horizonte de visibilidade" (Hans Blumenberg). O que amplia o horizonte de visibilidade é a consciência desperta para ver o que antes não era visto, e é isto que a pintura de Dacosta instiga, criando continuamente novas situações na visibilidade.
00Creio que é isso que Mário Pedrosa tinha em vista quando disse que Milton Dacosta nos convida a "ver" o nada. E que o livro em epígrafe nos permite, cheios de prazer, verificar.
00Muito do que se disse acima está em sintonia com o ensaio introdutório de Paulo Venancio Filho. Mas, em meio a muitos méritos, há algo que perturba em sua análise. Subjaz ao texto uma fórmula pronta, que ocasionalmente emerge, como ao se afirmar que "a forma avançou sem equivalente na base social da cultura", e isso, ao que parece, por conta de certa "situação periférica".
00O problema é que aqui se transpõe, como fórmula já pronta, um modelo analítico gestado alhures e que tem sua enorme força justamente por não se tratar de fórmula, mas sim de análise imanente da obra. Já aqui, o que antes se forjou na própria decifração da obra de arte converte-se em uma espécie de solução dada de antemão: no limite, uma explicação fácil, que nos libera de elaborar mais a reflexão, de mergulhar mais na obra. Nesse mesmo limite, corre-se o risco de que tal fórmula não diga nada. E, nesse caso, talvez seja melhor "ver" o nada.



Dacosta
Paulo Venancio Filho
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/255-8808)
112 págs., R$ 33,00




Leopoldo Waizbort é professor de sociologia na USP.

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