São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um artista na capital do vice-reino

Estudo reconstitui atividade do artista Valentim da Fonseca no Rio de Janeiro
GUILHERME S. GOMES JR.

O Rio de Janeiro é uma cidade cheia de reminiscências. Por mais monstruosos que sejam seus problemas sociais, por mais deletério e arrogante que seja o seu recente perfil urbano, temos lá um passado que convida à reflexão.
"Mestre Valentim", por seu aparato iconográfico e pela reconstituição dos caminhos trilhados por esse artista notável nas três décadas que antecederam a fuga da família real portuguesa para o Brasil, pode servir de guia para o reencontro de um mundo que só parcialmente foi soterrado.
A presença de parte significativa da obra de Valentim da Fonseca no Rio de Janeiro atual talvez seja o resultado de uma vontade, ainda que agônica, de desmentir a máxima que diz que as cidades do Novo Mundo não foram feitas para durar. Desfigurou-se o traçado do Passeio Público, mas ainda estão lá o Portal, os obeliscos piramidais, a Fonte dos Amores, a Bica do Menino; no imponente largo do Paço, o Chafariz da Pirâmide; e do Chafariz das Marrecas, que devia ser o mais bonito, criminosamente demolido para a ampliação de um quartel, ainda temos a lembrança, nos bronzes de Eco e Narciso que foram transferidos para o Jardim Botânico.
As igrejas heroicamente vão conservando sua talha, seus frisos, seus tetos, suas capelas laterais, seus anjos e santos, seus magníficos altares. Porém espero que essa constatação não seja lida como complacência.
Mas, apesar dos méritos evidentes da edição, e de ser perceptível que a autora conhece bem o artista e sua fortuna crítica, o texto padece de alguns problemas que talvez se justifiquem por sua história. O livro tem origem em uma tese de mestrado defendida em 1988, que foi em parte publicada na revista "Gávea" (nº 7, Rio de Janeiro, 1989). Ao ser adaptado para a última edição, algumas coisas foram suprimidas e outras tantas agregadas, mas não é muito claro que o texto tenha se beneficiado com isso.
Uma informação de muito interesse, e que foi suprimida, diz respeito aos recursos que tornaram possível o Passeio Público, obra civil de maior importância na carreira de Valentim da Fonseca. Conta a autora, em artigo na "Gávea", que o passeio foi financiado por uma "caixa" engenhosamente enriquecida pelo vice-rei, dom Luis de Vasconcelos, com o trabalho forçado de desocupados, que foram tirados das ruas do Rio de Janeiro e aprisionados na fortaleza da Ilha das Cobras. Postos a trabalhar em seus ofícios, como em um campo de concentração, forneceram compulsoriamente os rendimentos para as obras que embelezaram a cidade. Exemplo notável da mola perversa do escravismo a serviço do processo "civilizador" em curso.
Supressões de outro tipo comprometem o entendimento. A certa altura do texto, tratando da distinção entre o artesão e o artista, a autora cita Damisch, que, por sua vez, cita Diderot, e tudo isso é arrematado por um complemento de citação no qual aparece a expressão "intelectual orgânico". Suprimiu-se a referência bibliográfica dos textos citados e, como consequência, fica a estranha impressão de que Diderot possa ter sido leitor de Gramsci.

Eco e Narciso
No que diz respeito ao manejo de noções relativas à história da arte e à intrincada linguagem técnica para a descrição das obras, a autora revela um amplo domínio, mas sua interpretação às vezes padece de um problema que é constante em estudos dessa natureza. Para descrever as esculturas de Eco e Narciso, que antes adornavam o Chafariz das Marrecas, são simultaneamente mobilizadas as seguintes noções: "tendência classicizante", "naturalismo óptico", "barroco", "postura não-clássica", "rococó" e "nativismo". Tudo isso a serviço da idéia de que convivem no mestre "tendências estéticas conflitantes".
Não quero questionar o eventual ecletismo de Mestre Valentim, mas sim a maneira pela qual se constrói essa idéia. Classicismo, barroco, rococó são grandes unidades de sentido elaboradas ou recicladas pela história da arte a partir do século 19, que nem sempre dizem respeito ao vocabulário ou aos artefatos mentais operados pelos artistas cujas obras são interpretadas por meio delas. São categorias construídas mediante sucessivas abstrações que, para serem forjadas, demandaram não apenas estudos estilísticos, mas uma ampla gama de elementos, que remetem à teologia, à retórica, à política, aos comportamentos...
Mas, na linguagem de muitos historiadores, os traços distintivos que, por indução, serviram para a constituição dessas categorias acabam sendo confundidos com elas: um rosto sereno é clássico, um jogo de tensões nos volumes é barroco, um requinte delicado na superfície é rococó, uma certa característica do modelado é naturalismo. Tudo isso em dois bronzes que, além do mais, em razão de uma presumida feição mestiça, revelariam o nativismo do artista.
E o manejo dessas noções complica-se mais ainda quando são levemente politizadas na conclusão do livro. O rococó, tendência não totalmente assimilada por Valentim, é dito "liberal" e "progressista", enquanto o neoclassicismo é considerado "mais conservador", associado na obra do artista ao barroco joanino, que nele teria uma dimensão "atávica". No entanto o neoclassicismo, em época de avanço das Luzes, tem seu caráter conservador atenuado por pressupor a "evolução histórica da humanidade".
Articulado a tudo isso, emerge na reflexão um sujeito histórico: a "burguesia colonial" e seu sonho de liberdade -aquela que irá frequentar o Passeio Público, em 1783. Nada é muito claro, mas Valentim, mesmo estando a serviço da coroa, é visto como alguém que acalenta o mesmo sonho.
No plano da prática, é o artesão que almeja a condição de artista; no plano da especulação, é aquele que quer submeter a natureza carioca à ação positiva da razão e da ciência, mas não se prende a isso, já que projeta na natureza uma dimensão cosmológica ou edênica; no plano cultural, é o "artista mulato e brasileiro" que reafirma a crença na sua terra. E o neoclassicismo é a linguagem de superfície que recalca a tendência rococó, que primeiro foi dita liberal e progressista, mas tem também seu lado arcaizante, pois é com ela que "o artista mulato imagina e fabrica o Éden carioca".
Se há algo excessivo em suas especulações, o livro, no entanto, é um bom guia para um reencontro com a obra de Valentim da Fonseca, principalmente quando percorre a arte sacra, bem descrita e documentada. É nesse segmento que se vê melhor o trabalho da historiadora, mais preocupada em constituir um inventário preciso da obra do artista, qualidade que já tinha demonstrado no artigo "A Madeira como Arte e Fato", publicado no catálogo da exposição "O Universo Mágico do Barroco Brasileiro".
Mais concentrada na trama dos conjuntos escultóricos, a autora, ao mesmo tempo em que disseca cada item, é cuidadosa ao relacioná-los com as tradições estilísticas ligadas à ordens e às escolas que propagaram essa magnífica arte, o melhor legado da fé e do império na América portuguesa.
Quanto à biografia do artista, os dados trazidos pelo livro não vão muito além daquilo que Nair Batista e Anibal Matos conseguiram documentar até os anos 40. Diz-se que Valentim foi filho de um fidalgote português e de uma escrava, e que teria sido levado para Portugal ainda menino, onde aprendeu o ofício de escultor, tendo lá permanecido até os 25 anos.
Mas tudo isso está baseado exclusivamente no relato oral de um discípulo, obtido por Araújo Porto Alegre em meados do século passado. O que se sabe do artista com segurança é o que está nas obras: na madeira, na pedra, nos bronzes, em cuja técnica foi pioneiro. Pelo que fez, é muito provável que tenha tido reconhecimento e respeito em seu tempo. Mas foi preciso esperar a historiografia romântica para que saísse do anonimato e fosse colocado entre os homens ilustres fundadores da nacionalidade.



Mestre Valentim
Ana Maria Fausto Monteiro de Carvalho
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/255-8808)
110 págs., R$ 33,00



Guilherme Simões Gomes Jr. é professor de antropologia na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Palavra Peregrina - O Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil" (Edusp).


Texto Anterior: Leopoldo Waizbort: Ver o nada
Próximo Texto: Ricardo Fabbrini: Um crítico raro
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.