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Um artista na capital do vice-reino
Estudo reconstitui atividade do artista Valentim da Fonseca no Rio de Janeiro
GUILHERME S. GOMES JR.
O Rio de Janeiro é uma cidade
cheia de reminiscências. Por mais
monstruosos que sejam seus problemas sociais, por mais deletério
e arrogante que seja o seu recente
perfil urbano, temos lá um passado que convida à reflexão.
"Mestre Valentim", por seu
aparato iconográfico e pela reconstituição dos caminhos trilhados por esse artista notável nas
três décadas que antecederam a
fuga da família real portuguesa
para o Brasil, pode servir de guia
para o reencontro de um mundo
que só parcialmente foi soterrado.
A presença de parte significativa
da obra de Valentim da Fonseca
no Rio de Janeiro atual talvez seja
o resultado de uma vontade, ainda que agônica, de desmentir a
máxima que diz que as cidades do
Novo Mundo não foram feitas para durar. Desfigurou-se o traçado
do Passeio Público, mas ainda estão lá o Portal, os obeliscos piramidais, a Fonte dos Amores, a Bica do Menino; no imponente largo do Paço, o Chafariz da Pirâmide; e do Chafariz das Marrecas,
que devia ser o mais bonito, criminosamente demolido para a
ampliação de um quartel, ainda
temos a lembrança, nos bronzes
de Eco e Narciso que foram transferidos para o Jardim Botânico.
As igrejas heroicamente vão
conservando sua talha, seus frisos, seus tetos, suas capelas laterais, seus anjos e santos, seus
magníficos altares. Porém espero
que essa constatação não seja lida
como complacência.
Mas, apesar dos méritos evidentes da edição, e de ser perceptível
que a autora conhece bem o artista e sua fortuna crítica, o texto padece de alguns problemas que talvez se justifiquem por sua história. O livro tem origem em uma
tese de mestrado defendida em
1988, que foi em parte publicada
na revista "Gávea" (nº 7, Rio de
Janeiro, 1989). Ao ser adaptado
para a última edição, algumas coisas foram suprimidas e outras
tantas agregadas, mas não é muito claro que o texto tenha se beneficiado com isso.
Uma informação de muito interesse, e que foi suprimida, diz respeito aos recursos que tornaram
possível o Passeio Público, obra
civil de maior importância na carreira de Valentim da Fonseca.
Conta a autora, em artigo na "Gávea", que o passeio foi financiado
por uma "caixa" engenhosamente enriquecida pelo vice-rei, dom
Luis de Vasconcelos, com o trabalho forçado de desocupados, que
foram tirados das ruas do Rio de
Janeiro e aprisionados na fortaleza da Ilha das Cobras. Postos a
trabalhar em seus ofícios, como
em um campo de concentração,
forneceram compulsoriamente
os rendimentos para as obras que
embelezaram a cidade. Exemplo
notável da mola perversa do escravismo a serviço do processo
"civilizador" em curso.
Supressões de outro tipo comprometem o entendimento. A
certa altura do texto, tratando da
distinção entre o artesão e o artista, a autora cita Damisch, que, por
sua vez, cita Diderot, e tudo isso é
arrematado por um complemento de citação no qual aparece a expressão "intelectual orgânico".
Suprimiu-se a referência bibliográfica dos textos citados e, como
consequência, fica a estranha impressão de que Diderot possa ter
sido leitor de Gramsci.
Eco e Narciso
No que diz respeito ao manejo
de noções relativas à história da
arte e à intrincada linguagem técnica para a descrição das obras, a
autora revela um amplo domínio,
mas sua interpretação às vezes padece de um problema que é constante em estudos dessa natureza.
Para descrever as esculturas de
Eco e Narciso, que antes adornavam o Chafariz das Marrecas, são
simultaneamente mobilizadas as
seguintes noções: "tendência classicizante", "naturalismo óptico",
"barroco", "postura não-clássica", "rococó" e "nativismo". Tudo isso a serviço da idéia de que
convivem no mestre "tendências
estéticas conflitantes".
Não quero questionar o eventual ecletismo de Mestre Valentim, mas sim a maneira pela qual
se constrói essa idéia. Classicismo, barroco, rococó são grandes
unidades de sentido elaboradas
ou recicladas pela história da arte
a partir do século 19, que nem
sempre dizem respeito ao vocabulário ou aos artefatos mentais
operados pelos artistas cujas
obras são interpretadas por meio
delas. São categorias construídas
mediante sucessivas abstrações
que, para serem forjadas, demandaram não apenas estudos estilísticos, mas uma ampla gama de
elementos, que remetem à teologia, à retórica, à política, aos comportamentos...
Mas, na linguagem de muitos
historiadores, os traços distintivos que, por indução, serviram
para a constituição dessas categorias acabam sendo confundidos
com elas: um rosto sereno é clássico, um jogo de tensões nos volumes é barroco, um requinte delicado na superfície é rococó, uma
certa característica do modelado é
naturalismo. Tudo isso em dois
bronzes que, além do mais, em razão de uma presumida feição
mestiça, revelariam o nativismo
do artista.
E o manejo dessas noções complica-se mais ainda quando são
levemente politizadas na conclusão do livro. O rococó, tendência
não totalmente assimilada por
Valentim, é dito "liberal" e "progressista", enquanto o neoclassicismo é considerado "mais conservador", associado na obra do
artista ao barroco joanino, que
nele teria uma dimensão "atávica". No entanto o neoclassicismo,
em época de avanço das Luzes,
tem seu caráter conservador atenuado por pressupor a "evolução
histórica da humanidade".
Articulado a tudo isso, emerge
na reflexão um sujeito histórico: a
"burguesia colonial" e seu sonho
de liberdade -aquela que irá frequentar o Passeio Público, em
1783. Nada é muito claro, mas Valentim, mesmo estando a serviço
da coroa, é visto como alguém
que acalenta o mesmo sonho.
No plano da prática, é o artesão
que almeja a condição de artista;
no plano da especulação, é aquele
que quer submeter a natureza carioca à ação positiva da razão e da
ciência, mas não se prende a isso,
já que projeta na natureza uma
dimensão cosmológica ou edênica; no plano cultural, é o "artista
mulato e brasileiro" que reafirma
a crença na sua terra. E o neoclassicismo é a linguagem de superfície que recalca a tendência rococó, que primeiro foi dita liberal e
progressista, mas tem também
seu lado arcaizante, pois é com ela
que "o artista mulato imagina e
fabrica o Éden carioca".
Se há algo excessivo em suas especulações, o livro, no entanto, é
um bom guia para um reencontro com a obra de Valentim da
Fonseca, principalmente quando
percorre a arte sacra, bem descrita e documentada. É nesse segmento que se vê melhor o trabalho da historiadora, mais preocupada em constituir um inventário
preciso da obra do artista, qualidade que já tinha demonstrado
no artigo "A Madeira como Arte e
Fato", publicado no catálogo da
exposição "O Universo Mágico
do Barroco Brasileiro".
Mais concentrada na trama dos
conjuntos escultóricos, a autora,
ao mesmo tempo em que disseca
cada item, é cuidadosa ao relacioná-los com as tradições estilísticas ligadas à ordens e às escolas
que propagaram essa magnífica
arte, o melhor legado da fé e do
império na América portuguesa.
Quanto à biografia do artista, os
dados trazidos pelo livro não vão
muito além daquilo que Nair Batista e Anibal Matos conseguiram
documentar até os anos 40. Diz-se que Valentim foi filho de um fidalgote português e de uma escrava, e que teria sido levado para
Portugal ainda menino, onde
aprendeu o ofício de escultor,
tendo lá permanecido até os 25
anos.
Mas tudo isso está baseado exclusivamente no relato oral de
um discípulo, obtido por Araújo
Porto Alegre em meados do século passado. O que se sabe do artista com segurança é o que está nas
obras: na madeira, na pedra, nos
bronzes, em cuja técnica foi pioneiro. Pelo que fez, é muito provável que tenha tido reconhecimento e respeito em seu tempo.
Mas foi preciso esperar a historiografia romântica para que saísse
do anonimato e fosse colocado
entre os homens ilustres fundadores da nacionalidade.
Mestre Valentim
Ana Maria Fausto
Monteiro de Carvalho
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/255-8808)
110 págs., R$ 33,00
Guilherme Simões Gomes Jr. é professor de antropologia na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Palavra
Peregrina - O Barroco e o Pensamento
sobre Artes e Letras no Brasil" (Edusp).
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