São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Um crítico raro

Mário Pedrosa examina a arte moderna
RICARDO FABBRINI

"Modernidade Cá e Lá" reúne textos do crítico Mário Pedrosa sobre arte moderna, suas tendências e artistas principais: sobretudo "cá", no Ocidente; mas também "lá", no Oriente. São artigos de jornal e ensaios que compõem uma história da arte moderna: do pós-impressionismo francês do fim do século 19 à "pop art" americana dos anos 60 (que Pedrosa, "avant la lettre", denominava "pós-moderna").
Integram a antologia artigos sobre Gauguin, Cézanne, Modigliani, Klee, Kandinsky, Brancusi, Arp ou Calder, e ensaios, como o "Panorama da Pintura Moderna", de 1951, que expõem com didatismo a sucessão vertiginosa das vanguardas agrupadas por Pedrosa em duas vertentes: a expressionista (baseada em formas orgânicas) e a construtiva (fundadas em formas geométricas). Este volume possui ainda um prefácio de Otília Arantes, que, com a perícia esperada, desentranha os pressupostos de cada texto, inserindo-os na trajetória do autor e na concretude da época.
A análise de Pedrosa é singular, pois situa a modernidade artística em seu contexto histórico: o neocolonialismo europeu. A arte moderna, acentua ele, surgiu do impacto de uma arte arcaica ou primitiva sobre a velha cultura ocidental ("o encontro de dois mundos: o erudito e o popular", como diz a organizadora). Picasso encontrou nas máscaras africanas, assim como Matisse nos ornamentos marroquinos, uma "forma de sentimento" e uma "arquitetura de pensamento" que "expressavam as forças mais profundas da vida". Pedrosa, assim, em complicado ecletismo conceitual, via em certas culturas primitivas uma fusão entre arte e vida que caberia à arte moderna realizar, ou seja, a utopia de um "mundo reconciliado", a lembrar uma "ordem cósmica", porém "recriada pelos homens".
Pedrosa também encontrou na arte infantil essa vitalidade da arte primitiva, ausente na "representação naturalista" do Ocidente, que considerava pueril, mas sem pureza, graciosa, mas sem grandeza. Calder, "escultor de cataventos", revelou-lhe o vigor da arte construtiva, conciliando ciência moderna e infância eterna. Fez assim da máquina, fetiche "yankee", "poesia e improvisação", esperança de liberdade. Sua obra abre uma "porta para o futuro", dizia Pedrosa em 1948, confiante nos poderes transformadores da arte moderna.

Impasse japonês
Foram também reunidos neste volume seus artigos, inéditos em livro, sobre arte e cultura do Japão, onde esteve em 1958. Pedrosa analisara até então a influência da "velha arte arcaica oriental" no "esforço criador da arte moderna ocidental", visível por exemplo no japonismo parisiense de Seurat ou Van Gogh. Procura agora, invertendo a ótica, mas fiel à questão da integração das culturas, avaliar o efeito da arte ocidental, inclusive moderna, sobre a arte tradicional japonesa. E constata, perplexo, o impasse do artista japonês, situado entre uma "bela tradição" (a "pintura "nihonga'") e a importação dos "últimos "ismos" ocidentais". Pensando ainda essa relação, criticou também, em 59, o último lance da arte moderna, o tachismo (ressalvando, contudo, Pollock e Rothko), tido por ele como uma pintura de borrões, de puro efeito decorativo, em nada análoga ao estilo caligráfico japonês que o encantara.
Nesses ensaios sobre arte moderna, Pedrosa analisa a constituição interna de uma obra singular sem recair no dito formalismo, ao mesmo tempo em que a inscreve em seu contexto histórico sem ceder ao sociologismo vulgar. Distancia-se assim tanto do formalismo de um crítico americano como Greenberg, seu contemporâneo, que concebia a arte moderna como um caminho de mão única, orientada tão somente por um conceito (a busca incessante da bidimensionalidade do plano), quanto das interpretações de um marxismo vulgar que reduzia a arte a reflexo de seu tempo, a mero produto ideológico. Pedrosa mostra, a cada ensaio, a possibilidade de apreender na autonomia da forma artística a concretude de seu contexto histórico.
A prosa de Pedrosa, rara na crítica de arte, é clara sem ser superficial, didática sem ser professoral, conceitual sem renunciar à imagens. Sua escrita é fluente, com poucas citações, sem notas, e não intimida o leitor: uma crítica culta em que as referências que informam o texto, oriundas da teoria da arte, da literatura, da filosofia ou da psicanálise (de autores como Fiedler, Eluard, Husserl ou Freud), não são exibidas. É também uma prosa que concilia exposição de argumentos e figuras de linguagem.
Perito, Pedrosa não usa imagens para ornar o texto, mas para restituir uma dada obra ao olhar, como em "graças lânguidas de Renoir" ou "vaporosidade cromática de Monet". Sua prosa, por fim, é engajada, mas nada sectária, porque sempre reflexiva, que tomou partido pela arte moderna contra a arte acadêmica, pela abstração em face do figurativismo, e pela geometria frente ao informalismo. Resta, contudo, um senão nessa escrita: as excessivas generalizações. Pedrosa, tão cioso, por exemplo, ao comentar os "modernos", recorre demasiadamente a termos genéricos como "realismo renascentista" ou "naturalismo greco-romano" ao tratar dos "antigos".
Pedrosa criticou, nos anos 60, com virulência a "pop art": a "arte do "establishment'". A arte moderna, para ele, como sonhava Breton, tinha por fim modificar o homem visando "a transformação geral das relações sociais", enquanto "ser pop", constata em texto de 67, é "ser complacente" ou simplesmente "gostar das coisas", na "boutade" de Warhol.
Esses "artistas comerciais", bate Pedrosa com Adorno, não observam simplesmente o ""fun'" do meio urbano", mas antes o exaltam. Conclui a análise constatando, porém, que é "desse meio urbano que têm surgido "beatles", "hippies", e negros" que preferem a vida à arte, a "ação coletiva" ao "fazer individual". Encanta-se então com o "caldo efervescente" da contracultura que não tardaria, como sabemos, a abrandar.
Pedrosa, abatido, abandona em 77 a atividade de crítico de arte, escrevendo tão somente textos sobre os "internos" de "Engenho de Dentro". Reitera, desde então, que a arte de vanguarda se convertera em atividade silenciosa de retaguarda, incapaz de modificar a realidade. Tendo a arte moderna se desvinculado da revolução social, Pedrosa, coerente, retoma agora a militância político-partidária. Por isso luta, até sua morte em 81, pela formação do Partido dos Trabalhadores, vindo a ser seu sócio-fundador nº 1.
É pena que as reproduções do livro sejam baças e de cores distorcidas. A publicação desses volumes é útil ao leitor leigo, que encontrará nesses textos uma via segura aos principais artistas e tendências do século 20. É proveitosa também à nova geração de artistas, que se dará conta da falta no presente de uma crítica ilustrada como a de Pedrosa. E é indispensável a todo aquele que quer avaliar, como mostrou Otília Arantes recentemente no Mais! (16/4), a possibilidade de reativar em tempo de globalização neoliberal a "carga negativa" de seu "método crítico".



Modernidade Cá e Lá
Mário Pedrosa
Otília Arantes (org.)
Edusp (Tel.0/xx/11/818-4149)
360 págs. R$ 36,00



Ricardo Nascimento Fabbrini é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "O Espaço de Lygia Clark" (Atlas).


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