São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Uma nova sociabilidade

WOLFGANG LEO MAAR

00Ricardo Antunes ergue bravamente a questão do sentido do trabalho num país onde este tradicionalmente é condenação, suplício. O pressuposto implícito é apreender o trabalho em seu nexo formativo, o que exige uma ótica não reduzida à dimensão produtiva. Exclui-se a atribuição heterônoma de sentido, mera exaltação (asc)ética da labuta.
00A chave é pensar o sentido do trabalho no plano de uma atribuição autônoma dos trabalhadores, na perspectiva da (auto)formação pelo trabalho dos que trabalham. Trabalho é, simultaneamente, trabalho aquisitivo-produtivo e trabalho formativo, nexo sujeito-objeto em que se formam, no âmbito da realização laboral, os constituintes básicos das conexões recíprocas entre os homens e destes com a natureza.
00O alegado fim da sociedade do trabalho se refere sobretudo à perda do potencial formativo do trabalho não liberado; aos excluídos se prega a integração pelo trabalho como fardo e pela (de)formação que acarreta. Essa ideologia é um componente estrutural do capitalismo. A tese do fim da sociedade do trabalho traduz uma intervenção real. A chamada sociedade integrada não é uma totalização capitalista estabilizada; depende de permanente intervenção, inclusive teórica, para dominar o trabalho vivo.
00O que distingue este importante livro de Ricardo Antunes é a abordagem do trabalho "tanto nas formas de materialidade quanto na esfera da subjetividade". Sua meta é "recolocar e dar concretude à tese da centralidade da categoria trabalho na formação societal contemporânea, contra a desconstrução teórica que foi realizada nos últimos anos". Seu alvo principal são "teorias" sobre o trabalho. Nas últimas décadas, ocorreu um engajamento mistificador no plano conceitual, uma construção ideológica voltada à demonstração da perda da centralidade do trabalho na sociedade e da conversão da ciência em principal força produtiva. Antunes procura denunciar esta efetiva mística conceitual para "empreender a crítica e a desfetichização das formas de representação vigentes, do ideário que domina nossa sociedade contemporânea".
00Os cinco capítulos iniciais referem-se à investigação dos contextos em que se constitui a forma atual de estabilização do processo de acumulação. Crise do taylorismo e do fordismo, Welfare State, toyotismo; importa aqui destacar as formas de mistificação teórica envolvidas. Questões como compromisso social-democrático, qualidade total, eficiência produtiva são dissolvidas nos momentos constitutivos que compõem a "desconstrução teórica". Antunes mostra como há um grande movimento de reestruturação social, de que a reestruturação produtiva é parte, ultrapassando o plano do curso imediato em que se trava a luta de classes, para interferir nas condições da mesma, tornando-as favoráveis à retomada do processo de valorização do capital travado pelo Estado do Bem-Estar Social. Tudo culmina na excelente exposição da desmontagem do Estado Social do período Thatcher, finalizando com a terceira (primeira) via de Blair.
00À contra-reforma historicamente efetivada corresponderiam certas representações ou "constructos" teóricos fetichizados, cuja análise nos capítulos 6 e 7 resume os dois temas dominantes do debate atual: o presumido fim das classes e a aparente perda da centralidade do trabalho para a ciência como força produtiva. Como anteriormente, a investigação se pauta pela dissolução do resultado forjado na dinâmica auto-reprodutora da sociedade vigente. O aparente ocaso das classes e da nuclearidade do trabalho não resiste à exposição da dimensão de inter-relação entre seus momentos, seja na constituição de uma classe trabalhadora apreendida como uma noção ampliada, seja no plano da interação entre trabalho material e imaterial. Há mais realidade empírica efetiva num conceito de trabalho coletivo que reúne "a classe que vive do trabalho" do que num conceito pautado pelo trabalho assalariado na realidade empírica imediata. O oitavo capítulo encerra esta parte, ao exemplificar a oposição teórica com Lukács e Habermas. Talvez fosse mais instigante contrapor Habermas e Adorno ou Marcuse, pois Lukács não acompanhou os acontecimentos centrais da estabilização capitalista.
00Os três títulos seguintes são decisivos. O capítulo 9 sustenta-se na ontologia crítica das falsas representações de Lukács. Aqui a crítica do capital seria fundamentada como crítica da conceituação científica e da linguagem cotidiana vigentes, em sua inépcia para dar conta do universal numa apreensão meramente fatual da realidade empírica.
00No capítulo 10, Antunes examina o trabalho "estranhado" (opção de tradução para "Entfremdung") como expropriação de tempo de vida. A redução da jornada pode intensificar o trabalho e a expropriação de tempo de vida. Ao emprego feminino corresponde uma perda. "Uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho. Não é possível compatibilizar trabalho assalariado (...) com tempo (verdadeiramente) livre". É preciso articular redução de jornada e transformações no trabalho destinadas a evitar a expropriação do tempo de vida. "Uma vida cheia de sentido" depende da "demolição das barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho". Assim, com "uma atividade vital cheia de sentido, autodeterminada, para além da divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital hoje vigente e, portanto, sobre bases inteiramente novas" poderia se "desenvolver uma nova sociabilidade".
00O sentido emancipatório do trabalho é só e precisamente sua autodeterminação, pela qual os indivíduos sociais se autoformam na crítica à desumanização, à heteronomia do capital, no próprio trabalho socialmente necessário, minimizável mas inevitável.



Os Sentidos do Trabalho
Ricardo Antunes
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3865-6947)
264 págs., R$ 23,00



Wolfgang Leo Maar é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos.

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