|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Temer ou não temer
Janine reinterpreta Hobbes
JORGE E. DOTTI
A justificada fama da obra de
Hobbes reverbera sobre suas interpretações que revelam sagacidade e força de sugestão. É o caso
do belo ensaio de Renato Janine
Ribeiro, cuja reedição se justifica
plenamente. Com esse trabalho, o
investigador paulista aprofunda e
amplia uma leitura que já havia
apresentado um resultado altamente significativo ("A Marca do
Leviatã", Ática, 1978).
Um dos motivos que permitem
a nosso autor levar a bom termo
seu diálogo com Hobbes é a apropriada desconfiança que sente
diante das investigações metodológicas e epistemológicas que povoam a geografia filosófica contemporânea, condicionando a
hermenêutica antes que esta se
ponha em marcha.
Do mesmo modo, Ribeiro assume a exigência de incorporar ao
labor interpretativo essas referências diretas que marcam o texto
motivador de suas reflexões, tais
como certos elementos históricos
imprescindíveis para a compreensão de muitas das idéias em
jogo, mas também o sistema de
metáforas imperante na atmosfera cultural em que vive Hobbes e a
trama ideológica e simbólica em
geral (conceitos, idéias-força, lugares-comuns, iconografia), dentro da qual e contra a qual escreve
o filósofo de Malmesbury.
Daí decorre a estrutura do livro,
no qual a cerrada análise das noções filosóficas em sentido mais
estrito mantém seu equilíbrio
com uma erudita remissão interpretativa a proclamações e discursos políticos, a imagens literárias e configurações estéticas variadas (o burlador de Sevilha, a
emblemática barroca), às posturas doutrinais de reis, chanceleres, parlamentares, juristas e bispos, nesse convulsionado século
17 inglês, e às teorias de filósofos e
estudiosos contemporâneos e
posteriores a Hobbes (desde Locke, Montesquieu e Rousseau a
Strauss, Macpherson -bem redimensionado por Ribeiro-, Pocock ou Skinner, entre outros).
Dessa maneira, o texto hobbesiano é submetido a uma interpretação que se insere com personalidade própria nesse jogo entre
leituras sutis, polêmicas iluminadoras, tergiversações leais e recepções fiéis em sua infidelidade a
um Hobbes polifacetado, que
-mais além de louvá-lo ou de
denunciar seus perigos- elevaram o pensamento hobbesiano a
esse ápice que merece na filosofia
política moderna.
Paixão anfíbia
A interpretação de Ribeiro gira
em torno desse núcleo já assinalado (não sem ironia retórica) pelo
próprio Hobbes: o "medo", paixão anfíbia -natural e civil-
por excelência. O livro apresenta,
assim, uma fina avaliação da função conceitual cumprida pelo medo num esquema tensionado entre a irrupção desagregadora do
natural (o temor que infunde o
Behemoth anárquico-revolucionário, destruidor da ordem civilizada) e a advertência pacificadora
(o temor civilizador que infunde o
Leviatã republicano, para apaziguar e educar); o medo como motivo doutrinal e como elemento
constante na biografia política e
intelectual do filósofo, um estrategista no manejo do pavor como
critério que dá ossatura à teoria
ensinada e como critério regulador de sua própria vida.
A criação e manutenção da condição de civilidade supõem que o
soberano monopolize o uso pedagógico dessa paixão, como legislador, executor e juiz. Mas esse dispositivo estatal, embora ignore a
formulação liberal da divisão de
poderes, não equivale a totalitarismo, já que nenhum dos traços
distintivos deste complexo fenômeno do século 20 caracterizaria
adequadamente o artifício barroco proposto por Hobbes; nem
tampouco o despotismo, regime
"oriental" (isto é, construção com
que o Ocidente afasta de si seus
próprios medos, sem deixar de se
sentir atraído por tal perversão de
seus princípios) que, ao desconhecer sem mais nem menos a liberdade e a propriedade, torna-se
incompatível com o esquema
hobbesiano.
Finalmente, e virando a perspectiva, Ribeiro observa com
acerto que é também impróprio
reduzir a belicosidade da natureza humana, sustentada por Hobbes, a transcrição filosófica da
competição no mercado, "ethos"
burguês por excelência. Ao contrário, embora a visão de Hobbes
seja de um individualismo extremo, não deixa de ser antiburguesa
à sua maneira. A propriedade
-resultante da soberania e protegida por ela- está conceitualmente subordinada à máxima
fundacional da estabilidade leviatânica: prioridade republicana da
soberania representativa e primazia dos deveres do "citoyen"(cidadão) frente às exigências do
"bourgeois" (burguês).
Razão e vontade
A legitimação hobbesiana do
Estado enraíza-se menos na razão
(meramente instrumental) que
na vontade, capacidade democrática por excelência. A dinâmica do
querer e decidir, que envolve súditos e soberano (tanto na crise
fundacional como no cotidiano
normal da ordem jurídica), tem
como atores exclusivos indivíduos conscientes, sim, das vantagens de conviver politicamente,
mas que fundamentalmente decidem autolimitar-se (obedecer a
quem os protege).
É nesse gesto da vontade, na decisão pela cidadania, que se assenta a legitimidade do Estado de direito, cuja cabeça soberana (monárquica, aristocrática ou democrática) recebe o consentimento
-mediante pacto- para reter
com exclusividade a interpretação e aplicação das leis naturais,
isto é, para monopolizar a produção de normatividade positiva. E
essa vontade (que se desnaturaliza ao criar o artifício político)
também justifica o absolutismo
inevitável do soberano republicano, fonte de legalidade e instância
judicial inapelável. Se não fosse
"legibus solutus" (acima das leis),
não teria, dentro dos justos limites, o perigo de recair nessa vida
pré-política, "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".
A esperança
Ao reduzir a "voluntas" (vontade) a deliberação última e decisão
consequente, privando-a de toda
substancialidade e diferenciando-a do livre-arbítrio, Hobbes derruba (pelo menos a partir da filosofia) todas as coações exercidas sobre as decisões político-jurídicas
da autoridade estatal por aqueles
que invocam a palavra de Deus, o
"ius naturale" (direito natural), a
"common law" (lei comum) ou as
prerrogativas dos estamentos e
corpos intermediários.
Mas isso não significa que o caráter absoluto da soberania autorize arbitrariedades, porque a
vontade prudentemente atemorizada do cidadão está acompanhada pela "esperança", a paixão lícita que impulsiona o bem viver, a
estabelecer o nexo mando/obediência com a finalidade de ser
proprietário e gozar as comodidades da vida pacífica.
Renato Janine Ribeiro acentua
esse aspecto, habitualmente descuidado pelos intérpretes. A esperança respalda o "conatus" (impulso) econômico, que encontra
aqui seu reconhecimento, sem
deixar de se submeter à lógica vertical do Estado bem constituído.
O representante hobbesiano respeita a dinâmica infinita do desejo de seus súditos. Se afogasse o
desdobramento horizontal da
produção e do intercâmbio, deixaria de ser soberano, tanto de direito (ao violar as leis naturais, pelo que deverá prestar contas a
Deus, seu único juiz), como de fato: a revolução acabaria com o seu
poder e o castigaria, fazendo-o recair na condição de guerra de todos contra todos.
Sedução e sedição
Sensato canalizador do medo e
da esperança como motores da
sociabilidade, o Leviatã não pode,
entretanto, ser tolerante com
aqueles que pretendem seduzir o
cidadão com doutrinas que o façam crer que pode manter sua
condição de juiz, embora viva numa república, ou que a última instância judicativa compete a autoridades distintas da estatal.
A esses enganadores, "dom juanes" da política (a conexão que
Ribeiro desenvolve entre "sedução" e "sedição" é um entre tantos
achados do seu livro) -que a
partir do púlpito, da banca parlamentar ou da cátedra universitária iludem com sua retórica, sua
manipulação dos textos sagrados
e sua interpretação das leis naturais-, Hobbes opõe sua filosofia
como um chamado para que o leitor-cidadão realize a introspecção
que o levará a comprovar a solidez dos argumentos que está lendo, porque em cada um de nós
coabitam consciência cidadã e
potencialidade ferina, mas também a capacidade de entrelaçá-las
beneficamente, tal como expõe
Hobbes com rigor e sensatez demolidores. Assim, para Ribeiro, a
doutrina hobbesiana nada impõe
a seu interlocutor que este não
possa encontrar, penetrando platonicamente em si mesmo.
Essa invocação à introspecção
como procedimento civilizador é,
ao mesmo tempo, a chave a que
nosso autor recorre para destravar a situação aporética a que levaria o ato fundacional da república entendido como "contrato".
Hobbes reconhece que, para ter
eficácia, os acordos devem estar
respaldados por uma autoridade
que castigue aqueles que os violam. Portanto, o soberano é necessário para que se torne eficaz o
pacto a que o próprio soberano
deve sua origem.
A presumida petição de princípio resolve-se -segundo Ribeiro- se se entende a argumentação hobbesiana como simples advertência educativa: vivei no foro
externo como se a convivência social num regime de mando-obediência houvesse nascido da passagem consensual do estado de
natureza ao Estado político, e
convencei-vos no foro interno de
que só a condição de cidadão permite neutralizar o temor e alentar
a esperança. A ficção da origem
educa porque -mediante a introspecção- permite corrigir a
"hybris" (desmedida) da desobediência e a fraqueza da sempre latente predisposição a se deixar seduzir por aqueles que incitam à
guerra civil.
Acreditamos ser fiéis ao espírito
que anima Ribeiro se propusermos ao seu "leitor sem medo" que
não deixe totalmente de tê-lo, já
que a cidadania republicana nasce do equilíbrio entre a prudência
do medroso e a segurança de
quem se sabe protegido pelo soberano estatal frente a essas
ameaças corporativas e particularistas, as "potestates indirectae"
(poderes indiretos) que Hobbes
combateu e que hoje são cada vez
mais poderosas e diretas.
Jorge E. Dotti é professor da Universidade de Buenos Aires.
Texto Anterior: Wolfgang Leo Maar: Uma nova sociabilidade Próximo Texto: José Carlos Estevão: Filosofar em árabe Índice
|