São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Temer ou não temer

Janine reinterpreta Hobbes
JORGE E. DOTTI

A justificada fama da obra de Hobbes reverbera sobre suas interpretações que revelam sagacidade e força de sugestão. É o caso do belo ensaio de Renato Janine Ribeiro, cuja reedição se justifica plenamente. Com esse trabalho, o investigador paulista aprofunda e amplia uma leitura que já havia apresentado um resultado altamente significativo ("A Marca do Leviatã", Ática, 1978).
Um dos motivos que permitem a nosso autor levar a bom termo seu diálogo com Hobbes é a apropriada desconfiança que sente diante das investigações metodológicas e epistemológicas que povoam a geografia filosófica contemporânea, condicionando a hermenêutica antes que esta se ponha em marcha.
Do mesmo modo, Ribeiro assume a exigência de incorporar ao labor interpretativo essas referências diretas que marcam o texto motivador de suas reflexões, tais como certos elementos históricos imprescindíveis para a compreensão de muitas das idéias em jogo, mas também o sistema de metáforas imperante na atmosfera cultural em que vive Hobbes e a trama ideológica e simbólica em geral (conceitos, idéias-força, lugares-comuns, iconografia), dentro da qual e contra a qual escreve o filósofo de Malmesbury.
Daí decorre a estrutura do livro, no qual a cerrada análise das noções filosóficas em sentido mais estrito mantém seu equilíbrio com uma erudita remissão interpretativa a proclamações e discursos políticos, a imagens literárias e configurações estéticas variadas (o burlador de Sevilha, a emblemática barroca), às posturas doutrinais de reis, chanceleres, parlamentares, juristas e bispos, nesse convulsionado século 17 inglês, e às teorias de filósofos e estudiosos contemporâneos e posteriores a Hobbes (desde Locke, Montesquieu e Rousseau a Strauss, Macpherson -bem redimensionado por Ribeiro-, Pocock ou Skinner, entre outros).
Dessa maneira, o texto hobbesiano é submetido a uma interpretação que se insere com personalidade própria nesse jogo entre leituras sutis, polêmicas iluminadoras, tergiversações leais e recepções fiéis em sua infidelidade a um Hobbes polifacetado, que -mais além de louvá-lo ou de denunciar seus perigos- elevaram o pensamento hobbesiano a esse ápice que merece na filosofia política moderna.

Paixão anfíbia
A interpretação de Ribeiro gira em torno desse núcleo já assinalado (não sem ironia retórica) pelo próprio Hobbes: o "medo", paixão anfíbia -natural e civil- por excelência. O livro apresenta, assim, uma fina avaliação da função conceitual cumprida pelo medo num esquema tensionado entre a irrupção desagregadora do natural (o temor que infunde o Behemoth anárquico-revolucionário, destruidor da ordem civilizada) e a advertência pacificadora (o temor civilizador que infunde o Leviatã republicano, para apaziguar e educar); o medo como motivo doutrinal e como elemento constante na biografia política e intelectual do filósofo, um estrategista no manejo do pavor como critério que dá ossatura à teoria ensinada e como critério regulador de sua própria vida.
A criação e manutenção da condição de civilidade supõem que o soberano monopolize o uso pedagógico dessa paixão, como legislador, executor e juiz. Mas esse dispositivo estatal, embora ignore a formulação liberal da divisão de poderes, não equivale a totalitarismo, já que nenhum dos traços distintivos deste complexo fenômeno do século 20 caracterizaria adequadamente o artifício barroco proposto por Hobbes; nem tampouco o despotismo, regime "oriental" (isto é, construção com que o Ocidente afasta de si seus próprios medos, sem deixar de se sentir atraído por tal perversão de seus princípios) que, ao desconhecer sem mais nem menos a liberdade e a propriedade, torna-se incompatível com o esquema hobbesiano.
Finalmente, e virando a perspectiva, Ribeiro observa com acerto que é também impróprio reduzir a belicosidade da natureza humana, sustentada por Hobbes, a transcrição filosófica da competição no mercado, "ethos" burguês por excelência. Ao contrário, embora a visão de Hobbes seja de um individualismo extremo, não deixa de ser antiburguesa à sua maneira. A propriedade -resultante da soberania e protegida por ela- está conceitualmente subordinada à máxima fundacional da estabilidade leviatânica: prioridade republicana da soberania representativa e primazia dos deveres do "citoyen"(cidadão) frente às exigências do "bourgeois" (burguês).

Razão e vontade
A legitimação hobbesiana do Estado enraíza-se menos na razão (meramente instrumental) que na vontade, capacidade democrática por excelência. A dinâmica do querer e decidir, que envolve súditos e soberano (tanto na crise fundacional como no cotidiano normal da ordem jurídica), tem como atores exclusivos indivíduos conscientes, sim, das vantagens de conviver politicamente, mas que fundamentalmente decidem autolimitar-se (obedecer a quem os protege).
É nesse gesto da vontade, na decisão pela cidadania, que se assenta a legitimidade do Estado de direito, cuja cabeça soberana (monárquica, aristocrática ou democrática) recebe o consentimento -mediante pacto- para reter com exclusividade a interpretação e aplicação das leis naturais, isto é, para monopolizar a produção de normatividade positiva. E essa vontade (que se desnaturaliza ao criar o artifício político) também justifica o absolutismo inevitável do soberano republicano, fonte de legalidade e instância judicial inapelável. Se não fosse "legibus solutus" (acima das leis), não teria, dentro dos justos limites, o perigo de recair nessa vida pré-política, "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".

A esperança
Ao reduzir a "voluntas" (vontade) a deliberação última e decisão consequente, privando-a de toda substancialidade e diferenciando-a do livre-arbítrio, Hobbes derruba (pelo menos a partir da filosofia) todas as coações exercidas sobre as decisões político-jurídicas da autoridade estatal por aqueles que invocam a palavra de Deus, o "ius naturale" (direito natural), a "common law" (lei comum) ou as prerrogativas dos estamentos e corpos intermediários.
Mas isso não significa que o caráter absoluto da soberania autorize arbitrariedades, porque a vontade prudentemente atemorizada do cidadão está acompanhada pela "esperança", a paixão lícita que impulsiona o bem viver, a estabelecer o nexo mando/obediência com a finalidade de ser proprietário e gozar as comodidades da vida pacífica.
Renato Janine Ribeiro acentua esse aspecto, habitualmente descuidado pelos intérpretes. A esperança respalda o "conatus" (impulso) econômico, que encontra aqui seu reconhecimento, sem deixar de se submeter à lógica vertical do Estado bem constituído. O representante hobbesiano respeita a dinâmica infinita do desejo de seus súditos. Se afogasse o desdobramento horizontal da produção e do intercâmbio, deixaria de ser soberano, tanto de direito (ao violar as leis naturais, pelo que deverá prestar contas a Deus, seu único juiz), como de fato: a revolução acabaria com o seu poder e o castigaria, fazendo-o recair na condição de guerra de todos contra todos.

Sedução e sedição
Sensato canalizador do medo e da esperança como motores da sociabilidade, o Leviatã não pode, entretanto, ser tolerante com aqueles que pretendem seduzir o cidadão com doutrinas que o façam crer que pode manter sua condição de juiz, embora viva numa república, ou que a última instância judicativa compete a autoridades distintas da estatal.
A esses enganadores, "dom juanes" da política (a conexão que Ribeiro desenvolve entre "sedução" e "sedição" é um entre tantos achados do seu livro) -que a partir do púlpito, da banca parlamentar ou da cátedra universitária iludem com sua retórica, sua manipulação dos textos sagrados e sua interpretação das leis naturais-, Hobbes opõe sua filosofia como um chamado para que o leitor-cidadão realize a introspecção que o levará a comprovar a solidez dos argumentos que está lendo, porque em cada um de nós coabitam consciência cidadã e potencialidade ferina, mas também a capacidade de entrelaçá-las beneficamente, tal como expõe Hobbes com rigor e sensatez demolidores. Assim, para Ribeiro, a doutrina hobbesiana nada impõe a seu interlocutor que este não possa encontrar, penetrando platonicamente em si mesmo.
Essa invocação à introspecção como procedimento civilizador é, ao mesmo tempo, a chave a que nosso autor recorre para destravar a situação aporética a que levaria o ato fundacional da república entendido como "contrato". Hobbes reconhece que, para ter eficácia, os acordos devem estar respaldados por uma autoridade que castigue aqueles que os violam. Portanto, o soberano é necessário para que se torne eficaz o pacto a que o próprio soberano deve sua origem.
A presumida petição de princípio resolve-se -segundo Ribeiro- se se entende a argumentação hobbesiana como simples advertência educativa: vivei no foro externo como se a convivência social num regime de mando-obediência houvesse nascido da passagem consensual do estado de natureza ao Estado político, e convencei-vos no foro interno de que só a condição de cidadão permite neutralizar o temor e alentar a esperança. A ficção da origem educa porque -mediante a introspecção- permite corrigir a "hybris" (desmedida) da desobediência e a fraqueza da sempre latente predisposição a se deixar seduzir por aqueles que incitam à guerra civil.
Acreditamos ser fiéis ao espírito que anima Ribeiro se propusermos ao seu "leitor sem medo" que não deixe totalmente de tê-lo, já que a cidadania republicana nasce do equilíbrio entre a prudência do medroso e a segurança de quem se sabe protegido pelo soberano estatal frente a essas ameaças corporativas e particularistas, as "potestates indirectae" (poderes indiretos) que Hobbes combateu e que hoje são cada vez mais poderosas e diretas.


Jorge E. Dotti é professor da Universidade de Buenos Aires.


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