São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Filosofar em árabe

JOSÉ CARLOS ESTEVÃO

00No momento histórico em que o Ocidente dá início ao Renascimento, os árabes conhecem o declínio: inércia, recuo e repetição. Enquanto nos conduzíamos à modernidade, a cultura árabe regredia intelectualmente aos primórdios da Idade Média ocidental. Um juízo tão duro é suspeito da pior xenofobia. Ainda mais levando em conta que, desde o fim da Guerra Fria, os árabes voltaram a ser sistematicamente satanizados. Um intelectual árabe, no entanto, se vê obrigado a sustentá-lo.
00Esta "Introdução" é uma apresentação da grande obra do autor: "Crítica da Razão Árabe". A idéia de uma "razão árabe" pode soar tão disparatada quanto a de uma "física judaica", mas trata-se de mostrar como se dá o exercício da razão na cultura árabe. Ou, na maioria das vezes, como a tradição religiosa sobrepõe a autoridade à razão. Todo o problema está em libertar a cultura árabe sem traí-la, empresa em que teriam fracassado tanto fundamentalistas, prisioneiros da tradição, quanto liberais e marxistas, estranhos a ela.
00O alvo da obra é determinar os caminhos árabes para a modernidade, que Al-Jabri define pela sua melhor face iluminista: democracia e racionalidade, sem as quais não se chega à contemporaneidade (a crítica pós-moderna parece "coisa de rico", de quem "pode se dar ao luxo"). Ao mesmo tempo, escaldado tanto pelas agruras do colonialismo quanto pelo fracasso das pretensões socialistas, não nutre qualquer ilusão quanto às possibilidades de importação das formas de racionalidade ocidentais; ao contrário, é preciso, diz ele, "fazer a nossa modernidade, repensando nossa tradição".
00Em primeiro lugar, a tradição é religiosa. E enraizada num nível de profundidade desconhecido por nós: o que pensar de uma língua que permanece imutável por mais de 14 séculos? Língua que forja "a cultura e o pensamento sem ser, em contrapartida, forjada por eles", como diz Al-Jabri. Ora, na tradição impera o argumento por analogia. Seja na "teologia", o "kalam", ou em "leis", o "fiqh" (as aspas e os termos árabes se justificam porque não têm real correspondência com os similares ocidentais), busca-se, sem qualquer preocupação com as condições de validade, a assimilação por analogia, por semelhança: seja qual for o tema, deve-se encontrar alguma referência tradicional com a qual estabelecer comparação. A "crítica da razão árabe" proposta por Al-Jabri é uma "ruptura epistemológica" com o pensamento analógico.
00A formação intelectual de Mohammed Abed Al-Jabri é claramente marcada pelos anos 60 e 70 franceses. Embora não faça referência a fontes, a "problemática", digamos assim, na qual se move é althusseriana. Mas de um althusserianismo no mínimo "sui generis": a "ruptura epistemológica" que propõe não é com a tradição (religiosa) -uma vez que a vê como a própria matriz da cultura árabe-islâmica-, e sim com um modo de abordagem: aquele que a mantém fossilizada no passado.
00Também é parte da tradição uma ampla elaboração filosófica. A "falsafa", a filosofia em língua árabe, aculturou-se muito cedo e com claros desígnios políticos: importar dos gregos (bizantinos) algo com que contrabalançar a influência persa. Esforço que se perdeu quando Ibn Sina (o Avicena dos latinos) constrói uma grande síntese concordista capaz de acomodar neoplatonismo grego (malgrado uma sólida abordagem de Aristóteles), monoteísmo islâmico e gnosticismo persa.
00Ibn Sina não seria um Santo Agostinho muçulmano: em vez de buscar elevar a expressão intelectual da religião ao registro racional da filosofia, teria contaminado a filosofia de mística. Em registro político, diz Al-Jabril, a face "oriental" do pensamento de Ibn Sina é eivada de obscurantismo, uma das fontes do anti-intelectualismo religioso, e tão só "um projeto de filosofia nacional (persa)". Será necessário esperar um novo momento histórico: o apogeu de Al-Andalus. Magrebino, Al-Jabri compreende o Marrocos e a Península Ibérica como uma unidade cultural cujas desavenças políticas com os califas do Cairo vieram a suscitar um novo renascimento filosófico.
00Ibn Rusd, o Averróis dos latinos, o grande filósofo de Córdoba, será capaz, ao contrário do "persa" Avicena, de estabelecer uma relação orgânica entre a cultura árabe e as exigências de rigor racional do pensamento filosófico.
00O Averróis da leitura de Al-Jabri não tem nada em comum com a ficção historiográfica ocidental do "averroísmo" e sua doutrina das "duas verdades" (a da razão e a da religião, às vezes opostas e, não obstante, igualmente "verdadeiras"). Em primeiro lugar, porque preconiza a leitura estrutural da obra, "uma operação difícil", mas obrigatória para a compreensão da veracidade, da coerência interna, do trabalho filosófico e condição necessária para a análise histórica e do uso político de uma forma de pensamento.
00O aristotelismo estrito e ao mesmo tempo original de Averróis teria permitido romper com os pressupostos (neoplatônicos) do pensamento analógico dominante e o estabelecimento de uma axiomática igualmente eficaz na filosofia e na religião. Ou seja, teria realizado já uma vez aquela operação que se torna necessária para "libertar" a tradição. No entanto foram os latinos os grandes beneficiários da obra de Averróis: são os europeus que "vivem até hoje o momento averroísta". Seria necessário, portanto, retornar ao momento em que os árabes perdem contato com sua história e seu futuro. Não se trata, é claro, de reafirmar o conteúdo dogmático do averroísmo, irremediavelmente datado, mas de reler a tradição através de seus elementos capazes de movimento. É nesse sentido que Al-Jabri entende que a renovação árabe será averroísta.
00A insistência do autor no caráter imediatamente político das motivações filosóficas entre os árabes parece demasiado esquemática, mas não é uma tese inverossímil, dado o amálgama religioso-político que veio a constituir o poder na cultura islâmica, que desconhece qualquer instância de mediação semelhante à Igreja dos cristãos.
00A subordinação direta da filosofia a práticas de poder, seu caráter "ideológico" (os termos ocidentais sempre parecem fora de lugar), teria sido sua principal fraqueza: não haveria uma "história da filosofia árabe", mas uma história dos usos (políticos) da filosofia, incapazes de sobreviver a uma derrota política. Menos ainda ao desastre (árabe) do que os espanhóis sempre chamaram de Reconquista. Retornar criativamente a Averróis seria também inaugurar a "história da filosofia árabe", caminho para reencontrarem-se com a história.



Introdução à Crítica da Razão Árabe
Mohammed Abed Al-Jabri
Tradução (do francês): Roberto Leal Ferreira
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
168 págs., R$ 20,00



José Carlos Estêvão é professor de filosofia medieval na USP.


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