São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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A emancipação gradual

Historiadora estuda disputas políticas nos últimos tempos da escravidão no Brasil
MARIA HELENA P.T. MACHADO

"Entre a Mão e os Anéis" enfoca os últimos anos de vigência da escravidão, vistos pelo ângulo das lutas jurídicas e parlamentares que se deram em torno da Lei dos Sexagenários (1885), que alforriava os escravos sexagenários, mas estipulava aos libertandos a obrigatoriedade da prestação de serviços pelo espaço de três anos ou até os 65 anos.
Utilizando-se principalmente dos anais da Câmara dos Deputados, nos quais estão registrados os longos debates parlamentares e enfrentamentos que acompanharam as discussões do projeto Dantas e Saraiva, que culminou com a promulgação da conservadora lei, Joseli Mendonça se dedica à análise de um aspecto negligenciado pela historiografia.
Tendo sido sempre considerada produto do mais obscurantista espírito escravocrata, que ainda nos estertores da escravidão encontrava espaço político para procurar conter o desfecho irreversível da abolição, a lei de 1885 foi até agora analisada como um não-evento ou apenas uma excrescência política, incapaz de produzir impacto efetivo sobre a volátil realidade social do esfacelamento da escravidão. Este livro, no entanto, demonstra que a análise da arena política em que se deu o debate sobre esta lei ainda tem muito a nos informar sobre os anos finais de vigência da escravidão.
Estabelecendo os nexos entre a Lei dos Sexagenários e a Lei do Ventre Livre, de 1871 -esta sim considerada pela historiografia um fator importante na definição da opção pelo emancipacionismo gradual como caminho para a abolição no Brasil-, "Entre a Mão e os Anéis" vai mostrar que, desde dos anos de 1870, era político e jurídico o palco principal no qual se digladiavam diferentes tendências políticas interessadas na definição dos caminhos para a constituição de um mercado de mão-de-obra livre no Brasil. Isso porque, desde a promulgação da Lei Rio Branco, ficava consagrada no Brasil a intervenção do Estado, teoricamente agente externo, a agir de maneira impessoal nas disputas entre senhores e seus cativos, estes últimos obviamente sempre assistidos por outros homens livres, advogados e curadores, a quem cabia de fato responder judicialmente pelo escravo em suas reivindicações jurídicas contra seus senhores.

Leis emancipacionistas
As ferrenhas lutas políticas entre as diferentes facções das elites regionais brasileiras, entre liberais e conservadores, luzias e saquaremas, que atravessaram o processo de formação do estado imperial, descritas com mestria por Ilmar Rohloff de Mattos em "O Tempo Saquarema", reaparecem aqui, no papel das leis emancipacionistas, dos agentes encarregados de executá-las e de seus simpatizantes -advogados emancipacionistas e abolicionistas-, que se dedicaram a explorar todas as possibilidades de implementação da contestação da escravidão na arena judiciária.
É nesse sentido que se podem interpretar as razões pelas quais a ingerência do Estado no governo da casa, isto é, da propriedade escravista, foi rejeitada pelos senhores com profunda hostilidade. Como mostra Joseli, ao estabelecer um espaço de disputa jurídica em torno dos direitos do escravo e de seu valor monetário, a lei retirava da esfera senhorial o princípio norteador das relações escravistas, ou seja, o poder absoluto do senhor por meio do qual este dispunha da vida de seus escravos. Qualquer flexibilização das relações entre senhores e escravos, a alforria, mesmo quando comprada pelo escravo, coartação ou o que seja, deveria sempre emanar da vontade livre e soberana dos senhores. Sendo a escravidão, em princípio, um regime no qual a lei se faz ausente, e o poder senhorial, absoluto, a regulamentação legal da escravidão, em seu caráter impessoal, tendia a provocar fissuras incontornáveis na base do sistema.
Nas brechas abertas pela Lei de 1871 -que consagrava o direito costumeiro do escravo de possuir pecúlio próprio e de, assistido por representante legal, reivindicar sua alforria por meio do depósito de um valor monetário em juízo, com posterior avaliação de seu preço por avaliadores judicialmente constituídos-, surgiu uma das importantes estratégias de alforria, à qual os escravos recorriam com crescente frequência. No entanto, se os escravos, como já o sabemos bastante bem, eram seres atentos e preparados o suficiente para recorrer a todas as possibilidades de libertação, é também verdade que, na questão da manipulação das sutilezas da lei (como no caso crucial da indenização do senhor, quando o conhecimento dos meandros jurídicos se fazia fundamental), o libertando, colocado sob a responsabilidade legal de seu curador, passava a depender da capacidade e vontade de um homem livre (e, na maioria das vezes, branco) velar pelos interesses de seu curatelado.
Ao longo do livro, podemos acompanhar o desenrolar de uma série de ações de liberdade, nas quais a questão crucial da imposição ou contradição da vontade senhorial vai se explicitar sobretudo nos confrontos entre senhores e curadores dos escravos em torno da definição do valor pecuniário do cativo; em outras palavras, nos debates jurídicos a respeito do valor que cabia ao escravo indenizar o senhor em troca de sua liberdade. Aos senhores, já convencidos da impossibilidade de se oporem cegamente aos caminhos abertos pela lei, restava a teimosa luta pela imposição de sua vontade e decisão nas condições de alforria dos escravos.
De acordo com Joseli, do ponto de vista dos senhores, tornava-se crucial a preservação da esfera de poder dominial na definição das condições de alforria. Não se tratava simplesmente de uma obstinada resistência contra o irremediável desfecho da emancipação, mas sim de uma estratégia para manter o poder pessoal como a mais importante capacidade da camada senhorial para manter seu controle no processo de constituição de uma força de trabalho liberta dependente. Como já notou Eric Foner, ao analisar o processo de emancipação no Caribe em "Nada Além da Liberdade", em qualquer parte onde se tenha verificado a abolição da escravidão, a classe de fazendeiros lutou para transformar os antigos escravos numa força de trabalho dependente e disciplinada, por meio da limitação legal e social das oportunidades econômicas de que se pudessem valer os libertos na constituição de um modo de vida independente.
O reembolso pecuniário aos senhores pela alforria dos escravos, neste sentido, apresentava-se, ainda nos anos de 1880, como a arena na qual os senhores ainda se mediam num intenso braço de força com as tendências emancipacionistas e abolicionistas legalistas. A discussão da Lei dos Sexagenários, nesse contexto, surge como evento que permite que Joseli recupere essas diferentes linhas de força na composição dos anos finais de vigência da escravidão no Brasil. Ora, a estratégia jurídica que embasou o abolicionismo desde pelo menos a década de 1870 e que obteve importantes vitórias no desgaste da hegemonia senhorial, vai manter suas linhas de atuação legalista mesmo quando, a partir de 1885-86, a luta dos escravos pela libertação ultrapassa definitivamente as barreiras jurídicas, realizando na prática a alforria sem condição ou indenização. Assim, a manutenção da luta jurídica pela emancipação surge, nesses anos, não mais como a estratégia libertadora que fora desde 1870, mas sim como um recurso de manutenção da escravidão. Frente ao quase completo desbaratamento do regime escravista, a manutenção da estratégia jurídica de libertação tornava-se obsoleta e conservadora, passando além disso para as mãos dos senhores as parcas economias que os escravos duramente amealhavam com o suor de seus rostos.
Os escravos, no entanto, sempre souberam que contavam apenas consigo próprios. E que, na luta política entre as elites, eles teriam que saber se valer das contradições, paradoxos e conflitos dos brancos, bem-nascidos para fazer valer seus direitos. "Entre a Mão e os Anéis" é um livro que retoma todas essas questões, colaborando para que a complexidade do chamado processo de transição da escravidão para o trabalho livre no Brasil escape da moldura estrutural e ganhe definitivamente a materialidade da história que lhe cabe.


Maria Helena P.T. Machado é professora de história na USP e autora, entre outros livros, de "O Plano e o Pânico" (UFRJ Editora).


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