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A emancipação gradual
Historiadora estuda disputas políticas nos últimos tempos da escravidão no Brasil
MARIA HELENA P.T. MACHADO
"Entre a Mão e os Anéis" enfoca os últimos anos de vigência da escravidão, vistos pelo ângulo das lutas jurídicas e parlamentares que se deram em torno da Lei
dos Sexagenários (1885), que alforriava
os escravos sexagenários, mas estipulava
aos libertandos a obrigatoriedade da
prestação de serviços pelo espaço de três
anos ou até os 65 anos.
Utilizando-se principalmente dos anais
da Câmara dos Deputados, nos quais estão registrados os longos debates parlamentares e enfrentamentos que acompanharam as discussões do projeto Dantas
e Saraiva, que culminou com a promulgação da conservadora lei, Joseli Mendonça se dedica à análise de um aspecto
negligenciado pela historiografia.
Tendo sido sempre considerada produto do mais obscurantista espírito escravocrata, que ainda nos estertores da escravidão encontrava espaço político para
procurar conter o desfecho irreversível
da abolição, a lei de 1885 foi até agora
analisada como um não-evento ou apenas uma excrescência política, incapaz de
produzir impacto efetivo sobre a volátil
realidade social do esfacelamento da escravidão. Este livro, no entanto, demonstra que a análise da arena política em que
se deu o debate sobre esta lei ainda tem
muito a nos informar sobre os anos finais
de vigência da escravidão.
Estabelecendo os nexos entre a Lei dos
Sexagenários e a Lei do Ventre Livre, de
1871 -esta sim considerada pela historiografia um fator importante na definição da opção pelo emancipacionismo
gradual como caminho para a abolição
no Brasil-, "Entre a Mão e os Anéis" vai
mostrar que, desde dos anos de 1870, era
político e jurídico o palco principal no
qual se digladiavam diferentes tendências políticas interessadas na definição
dos caminhos para a constituição de um
mercado de mão-de-obra livre no Brasil.
Isso porque, desde a promulgação da Lei
Rio Branco, ficava consagrada no Brasil a
intervenção do Estado, teoricamente
agente externo, a agir de maneira impessoal nas disputas entre senhores e seus
cativos, estes últimos obviamente sempre
assistidos por outros homens livres, advogados e curadores, a quem cabia de fato responder judicialmente pelo escravo
em suas reivindicações jurídicas contra
seus senhores.
Leis emancipacionistas
As ferrenhas lutas políticas entre as diferentes facções das elites regionais brasileiras, entre liberais e conservadores, luzias e saquaremas, que atravessaram o
processo de formação do estado imperial, descritas com mestria por Ilmar Rohloff de Mattos em "O Tempo Saquarema", reaparecem aqui, no papel das leis
emancipacionistas, dos agentes encarregados de executá-las e de seus simpatizantes -advogados emancipacionistas e
abolicionistas-, que se dedicaram a explorar todas as possibilidades de implementação da contestação da escravidão
na arena judiciária.
É nesse sentido que se podem interpretar as razões pelas quais a ingerência do
Estado no governo da casa, isto é, da propriedade escravista, foi rejeitada pelos senhores com profunda hostilidade. Como
mostra Joseli, ao estabelecer um espaço
de disputa jurídica em torno dos direitos
do escravo e de seu valor monetário, a lei
retirava da esfera senhorial o princípio
norteador das relações escravistas, ou seja, o poder absoluto do senhor por meio
do qual este dispunha da vida de seus escravos. Qualquer flexibilização das relações entre senhores e escravos, a alforria,
mesmo quando comprada pelo escravo,
coartação ou o que seja, deveria sempre
emanar da vontade livre e soberana dos
senhores. Sendo a escravidão, em princípio, um regime no qual a lei se faz ausente, e o poder senhorial, absoluto, a regulamentação legal da escravidão, em seu caráter impessoal, tendia a provocar fissuras incontornáveis na base do sistema.
Nas brechas abertas pela Lei de 1871
-que consagrava o direito costumeiro
do escravo de possuir pecúlio próprio e
de, assistido por representante legal, reivindicar sua alforria por meio do depósito de um valor monetário em juízo, com
posterior avaliação de seu preço por avaliadores judicialmente constituídos-,
surgiu uma das importantes estratégias
de alforria, à qual os escravos recorriam
com crescente frequência. No entanto, se
os escravos, como já o sabemos bastante
bem, eram seres atentos e preparados o
suficiente para recorrer a todas as possibilidades de libertação, é também verdade que, na questão da manipulação das
sutilezas da lei (como no caso crucial da
indenização do senhor, quando o conhecimento dos meandros jurídicos se fazia
fundamental), o libertando, colocado sob
a responsabilidade legal de seu curador,
passava a depender da capacidade e vontade de um homem livre (e, na maioria
das vezes, branco) velar pelos interesses
de seu curatelado.
Ao longo do livro, podemos acompanhar o desenrolar de uma série de ações
de liberdade, nas quais a questão crucial
da imposição ou contradição da vontade
senhorial vai se explicitar sobretudo nos
confrontos entre senhores e curadores
dos escravos em torno da definição do
valor pecuniário do cativo; em outras palavras, nos debates jurídicos a respeito do
valor que cabia ao escravo indenizar o senhor em troca de sua liberdade. Aos senhores, já convencidos da impossibilidade de se oporem cegamente aos caminhos abertos pela lei, restava a teimosa
luta pela imposição de sua vontade e decisão nas condições de alforria dos escravos.
De acordo com Joseli, do ponto de vista
dos senhores, tornava-se crucial a preservação da esfera de poder dominial na definição das condições de alforria. Não se
tratava simplesmente de uma obstinada
resistência contra o irremediável desfecho da emancipação, mas sim de uma estratégia para manter o poder pessoal como a mais importante capacidade da camada senhorial para manter seu controle
no processo de constituição de uma força
de trabalho liberta dependente. Como já
notou Eric Foner, ao analisar o processo
de emancipação no Caribe em "Nada
Além da Liberdade", em qualquer parte
onde se tenha verificado a abolição da escravidão, a classe de fazendeiros lutou
para transformar os antigos escravos numa força de trabalho dependente e disciplinada, por meio da limitação legal e social das oportunidades econômicas de
que se pudessem valer os libertos na
constituição de um modo de vida independente.
O reembolso pecuniário aos senhores
pela alforria dos escravos, neste sentido,
apresentava-se, ainda nos anos de 1880,
como a arena na qual os senhores ainda
se mediam num intenso braço de força
com as tendências emancipacionistas e
abolicionistas legalistas. A discussão da
Lei dos Sexagenários, nesse contexto,
surge como evento que permite que Joseli
recupere essas diferentes linhas de força
na composição dos anos finais de vigência da escravidão no Brasil. Ora, a estratégia jurídica que embasou o abolicionismo desde pelo menos a década de 1870 e
que obteve importantes vitórias no desgaste da hegemonia senhorial, vai manter
suas linhas de atuação legalista mesmo
quando, a partir de 1885-86, a luta dos escravos pela libertação ultrapassa definitivamente as barreiras jurídicas, realizando na prática a alforria sem condição ou
indenização. Assim, a manutenção da luta jurídica pela emancipação surge, nesses anos, não mais como a estratégia libertadora que fora desde 1870, mas sim
como um recurso de manutenção da escravidão. Frente ao quase completo desbaratamento do regime escravista, a manutenção da estratégia jurídica de libertação tornava-se obsoleta e conservadora,
passando além disso para as mãos dos senhores as parcas economias que os escravos duramente amealhavam com o suor
de seus rostos.
Os escravos, no entanto, sempre souberam que contavam apenas consigo próprios. E que, na luta política entre as elites, eles teriam que saber se valer das contradições, paradoxos e conflitos dos
brancos, bem-nascidos para fazer valer
seus direitos. "Entre a Mão e os Anéis" é
um livro que retoma todas essas questões, colaborando para que a complexidade do chamado processo de transição
da escravidão para o trabalho livre no
Brasil escape da moldura estrutural e ganhe definitivamente a materialidade da
história que lhe cabe.
Maria Helena P.T. Machado é professora de história na USP e autora, entre outros livros, de "O
Plano e o Pânico" (UFRJ Editora).
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