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Uma práxis da imaginação
Coletânea de cartas conta a história do Teatro de Arte de Moscou
O Cotidiano de uma Lenda:
Cartas do Teatro
de Arte de Moscou
Cristiane Layher Takeda (org.)
Perspectiva (Tel. 0/xx/11/3885-7111)
432 págs., R$ 56,00
SÉRGIO DE CARVALHO
Os anos de aprendizagem do Teatro de
Arte de Moscou devem muito de seu brilho ao trabalho de Anton Tchekhov. A
morte do escritor, em 1904, fecha o primeiro ciclo de formação da mais importante companhia russa de teatro moderno, surgida em 1898 do encontro de dois
homens, o ator Konstantin Stanislávski e
o dramaturgo Nemiróvitch-Dántchenko.
Tchekhov, como mostra a coletânea "O
Cotidiano de uma Lenda: Cartas do Teatro de Arte de Moscou", aproximou as
perspectivas contraditórias dos diretores
da companhia. Além de ser confidente
afetuoso de ambos, suas peças eram ambíguas o bastante para atender às questões de "conteúdo" de Dántchenko, que
media a potência de um teatro pela capacidade de atrair escritores nacionais e expressar relações da vida contemporânea,
e para estimular as experiências "formais" de Stanislávski, que deram corpo a
montagens de "A Gaivota" ou "Tio Vânia", com ambientações e ações detalhadas, narrativa cênica paralela ao texto,
que deslocava seu sentido.
A história do Teatro de Arte confunde-se com a história das tensões produtivas e
desavenças pessoais entre Stanislávski e
Dántchenko. Todas as coisas importantes que um viveu eram parte da experiência do outro. Completavam-se mutuamente e a posição crítica de um era a crise
de ambos.
Mesmo a síntese em torno de Tchekhov
não foi tranquila. Em 1901, a atriz Olga
Knípper reclamava da dupla condução
acerca do terceiro ato de "As Três Irmãs":
"Stanislávski criou uma tremenda desordem em cena, (...) com todos correndo
em todas direções; Nemiróvich , ao contrário, aconselha criar uma grande agitação fora de cena, ficando em cena o vazio
e um ritmo lento".
Apesar de ser um exemplo em que
Dántchenko tenta lançar a ação dramática para fora do palco, a verdade é que tanto ele como Stanislávski interpretaram
Tchekhov como dramaturgo de "atmosfera", e por isso tenderam a dramatizar
situações originalmente compostas como polifonia de monólogos. Dántchenko, por exemplo, aconselha a expurgar
"A Gaivota" de "qualquer coisa que disponha o público ao riso desnecessário". E
Stanislávski concorda que, "quando a peça de Treplióv é apresentada, as personagens secundárias não devem se sobrepor
às principais", como permite o texto.
Heresia brilhante
Na decadência do realismo dramático,
com seu elogio aos protagonistas da mobilidade social (o que seria depois ressuscitado pela indústria cultural), o senso de
hierarquia moralizante ainda perdurava
nas consciências narrativas. Talvez por
isso tenha sido Górki, estranho às convenções do teatro, quem melhor entendeu a "heresia brilhante" do teatro tchekhoviano. Descreve sua novidade formal
como falta de piedade com os "sacos de
tripas que somos", frieza do demônio capaz de desviar o espectador "da realidade
para a meditação filosófica".
Paradoxalmente, o mesmo Górki, que
exaltava Tchekhov como o matador do
"modelo ultrapassado" realista, torna-se
um dramaturgo de forma conservadora,
"falha sem absolvição" que lhe foi apontada por Tchekhov em termos fraternos.
Nas proximidades da grande crise liberal
da era dos Impérios, Tchekhov sabia que,
se a pequeno-burguesia era um importante novo assunto, seria preciso "mostrar esse tipo de gente por pedaços, "en
passant", pois de qualquer forma pessoas
assim são sempre episódicas, na vida e
em cena".
Na observação do descompasso entre o
passado e o presente, e na procura de
uma crítica formal ao unitarismo do drama, Tchekhov move suas personagens de
comédia. Daí sua revolta com o apego ao
gênero, quando da montagem de "O Jardim das Cerejeiras":
"Por que insistem em chamar minha
peça de drama? Não enxergam em minha
peça o que eu coloquei nela". Para ele, a
atenção à realidade não é nada se o artista
não sabe exatamente por qual lado abordá-la. Esse senso de tomada de partido,
combinado à análise científica, aproximou-o de outro talento do Teatro de Arte, o ator Meyerhold, que depois se tornaria um dos maiores encenadores do século 20. Mobilizado pela luta antiburguesa,
numa carta a Tchekhov, Meyerhold se
confessa hesitante entre aperfeiçoar sua
personalidade ou se lançar na luta pela
igualdade, como se fossem tarefas contraditórias.
Na sala de ensaio, questionava o despotismo de um processo que impedia os
atores de compreender a história. Discordava dos métodos iniciais de Stanislávski,
sua sideração pela beleza que obscurecia
a "significação social e psicológica" das
peças num tempo em que o "mundo cai
na cabeça". A grandeza de Stanislávski
deve ser aquilatada pelo fato de que o
marco da fase seguinte de seu trabalho,
em 1905, foi a criação de um estúdio na
Rua Povarskaia, onde financiou as experiências do discípulo pródigo. A partir da
breve colaboração com Meyerhold, ele se
certificou de que a contribuição de sua vida era elaborar princípios metodológicos
pelos quais o ator se apossasse dos meios
produtivos da ficção.
A rejeição inicial de Dántchenko a tal
pesquisa pode ser atribuída a um conservadorismo político. O primado da prática artística, desde então defendido por
Stanislávski, convida os atores a improvisar sem que as imagens estejam definidas
previamente; a ensaiar coletivamente de
maneira antiidealista; e a "fazer a abertura pela qual um ser humano com uma
imaginação ainda insuficientemente desenvolvida selecione da vida material para as criações dele" e aprenda a manter
vivo o desejo de se relacionar com os
acontecimentos.
Uma práxis da imaginação foi a obra
maior de Stanislávski. A posição reacionária de Dántchenko não implicou acomodamento. De certo modo, nunca deixou de andar ao lado de seu companheiro de trabalho. Sua adaptação de "Os Irmãos Karamazov", de Dostoiévski, lhe
confirmou em 1910 que o teatro era livre
como o romance, que a peça podia ter 20
atos, que toda a dramática da intriga estava destruída e uma outra história deveria
ser produzida, para além do espaço-tempo da casa burguesa.
A exemplaridade do Teatro de Arte de
Moscou está nessa dialética de formas e
conteúdos estéticos, rara capacidade de
superação pelo trabalho. Tchekhov, Stanislávski e Dántchenko tinham em comum o entusiasmo desmedido pela atividade como meio de desenvolvimento humano. Foi esse o argumento definitivo de
Stanislávski em favor de Meyerhold:
"Preciso dele porque ele trabalha muito
pesado".
Sérgio de Carvalho é dramaturgo, diretor integrante da Companhia do Latão e professor de artes cênicas na Unicamp.
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