São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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Dialética e experiência

Um clássico de Jean-Paul Sartre

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Crítica da Razão Dialética
Jean-Paul Sartre
Tradução: Guilherme João de
Freitas Teixeira
Apresentação: Gerd Bornheim
DP&A (Tel.0/xx/21/2232-1768)
904 págs., R$ 72,00

Já em "O Ser e o Nada" Sartre procurava mostrar que a razão analítica não alcança a compreensão da conduta humana enquanto livre projeção da existência.
Seja concebendo-a subjetivamente como desdobramento qualitativo de um "cogito" considerado de forma essencial e substancialista, seja entendendo as relações humanas como ligação de consciências em regime de exterioridade recíproca, à análise escapam sempre aspectos relevantes da ordem humana; por exemplo, que é pela projeção consciente de si mesmo na exterioridade que o indivíduo constrói sua subjetividade ou que a vivência intersubjetiva consiste em "ser-em-outro", isto é, na identidade do outro que cada um constrói na própria consciência ao objetivá-lo como "outro" sujeito.
Enquanto as ciências humanas se orientarem pelo modelo de relação analítica entre "o mesmo e o outro", não será possível uma antropologia verdadeira, pois a identidade subjetiva necessita, para se constituir, da exterioridade das coisas e da interioridade do outro. É ao exteriorizar minha conduta e ao interiorizar a do outro que ambos efetuamos uma troca singular pela qual nos reconhecemos humanos, à medida que cada um sintetiza a partir das condutas do outro as "diferenças" que constituem a "comunidade" das existências.
Dessa maneira, não se trata de renunciar à subjetividade, mas de aprofundar sua gênese e constituição, o que significa, no caso, considerar as relações muito íntimas que se estabelecem entre subjetividade e alteridade.
A "Crítica da Razão Dialética" aparece assim como a tentativa de consolidar o conhecimento da ordem humana a partir das exigências de um quadro de relações que, embora fortemente estruturado, só pode ser elucidado dialeticamente. O projeto é a fundação de uma antropologia que se constitua de forma verdadeiramente autônoma, isto é, desvinculada dos modelos analíticos que historicamente têm influenciado as ciências humanas. Segundo Sartre, reside aí a única esperança de um saber em que a evidência não repouse na perspectiva formal, e sim nas verdades que nascem e se alimentam da "experiência", em sentido existencial e histórico.
Ora, essa vinculação entre experiência e dialética supõe que a experiência humana só pode ser compreendida dialeticamente porque o homem não é um "objeto", em sentido análogo ao das ciências empírico-formais, mas um "sujeito que pode ser conhecido objetivamente".
Essa expressão não designa apenas a sobreposição, no caso do homem, das categorias de sujeito e objeto; significa que o conhecimento do homem só é possível na efetuação da síntese opositiva entre as duas noções.

Complexidade estrutural
Com efeito, considerar que o homem pode ser inteiramente explicado pela via da objetividade é desconhecer a especificidade da consciência "refletida na conduta" (e não idealisticamente pressuposta); por outro lado, tentar compreendê-lo apenas como desdobramento da subjetividade é ignorar o cociente de exterioridade "também refletido na conduta", e não pressuposto materialisticamente. Já se vê, portanto, que a dialética, tal como Sartre a entende, supera e conserva o idealismo e o materialismo, porque, como mostrou "O Ser e o Nada", não há mundo sem a intencionalidade da consciência (para-si) e não há consciência sem o correlato noemático do mundo (em-si).
Essas figuras, que no ensaio de ontologia firmavam as significações fundamentais da relação homem/ mundo, na "Crítica da Razão Dialética" se desdobram na complexidade estrutural que finalmente nos permitirá vislumbrar o sentido da relação entre subjetividade e história.
Esse objetivo indica a intenção que orienta o estudo de Sartre: revelar em todo o alcance e toda a profundidade a racionalidade dialética no seu perfil específico, de modo que o marxismo, enquanto única opção de antropologia autêntica, possa se beneficiar de uma elucidação completa de seu instrumento de compreensão da realidade humana. E isso porque, para Sartre, o marxismo ainda estaria bem longe da fidelidade ao método dialético requerida para justificar sua posição inovadora, revolucionária e desmistificadora entre as concepções que pretendem uma abordagem compreensiva das práticas humanas.
Que os marxistas se teriam rendido de fato à razão analítica, o provam as duas direções predominantes de suas abordagens: a pretensa universalidade do materialismo dialético, que redunda na naturalização da realidade humana por inseri-la esquematicamente numa concepção metafísica de materialismo universal; e, ligada à perspectiva anterior, uma atenção quase exclusivamente voltada para os fatos históricos passados, precisamente por se disporem a uma leitura em chave de materialismo determinista -o que faz também que, ampliando-se tal estilo de interpretação, o presente seja também interpretado segundo a inércia do "já acontecido", o que permite adequá-lo ao esquema de um determinismo histórico absoluto.
Ora, essa concepção, solidária de noções como causalismo, reflexo, determinismo estrito, opera uma tradução analítica da práxis histórica, motivando uma compreensão exclusivamente categorial dos processos sociais, como se estes não envolvessem sujeitos capazes de estabelecer livremente seus projetos e de lutar pela sua realização. Ou seja, o marxismo que se subordina à análise produz uma visão em que a história estaria completamente separada da ação histórica e dos sujeitos/ agentes históricos. Trata-se de um reducionismo que procura escapar à complexidade intuída por Marx na relação dialética entre atividade e passividade constituinte do "fazer história".
É portanto com vista a uma adequada compreensão da práxis que se deve recompor a racionalidade dialética. Para tanto, o primeiro tomo (Sartre morreu antes de terminar o segundo) consta de duas partes: a primeira examina a relação entre a práxis individual e o conjunto do prático-inerte; a segunda trata da experiência de grupo ou práxis comum. Esses dois estudos, extensos e áridos, são precedidos por "Questões de Método", texto em que Sartre justifica seu empreendimento situando-o perante o marxismo.
A práxis individual é marcada originariamente pela "carência" intrínseca à condição humana (o homem é sobretudo um ser com necessidades) e a "escassez", entendida como a impossibilidade de que todos satisfaçam as necessidades de sobrevivência, esse talvez o principal aspecto do campo de ações que cada um já encontra ao nascer e que no seu conjunto Sartre denomina de prático-inerte: ações cristalizadas no passado que me obrigam a viver num mundo estruturado por outros. A práxis comum pode chegar à ação em que cada indivíduo se reencontra nos demais que com ele formam um "grupo", isto é, um conjunto de pessoas ligadas por vínculos interiores e unificadas por objetivos comuns.
À liberdade como sinônimo de consciência (e de humanidade) afirmada em "O Ser e o Nada", acrescenta-se agora a densidade concreta das contradições históricas que os projetos humanos devem atravessar. Na complexa diferença entre os dois livros, é a continuidade entre ontologia e história que está em questão.


Franklin Leopoldo e Silva é professor do departamento de filosofia da USP.



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