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Dialética e experiência
Um clássico de Jean-Paul Sartre
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Crítica da Razão Dialética
Jean-Paul Sartre
Tradução: Guilherme João de
Freitas Teixeira
Apresentação: Gerd Bornheim
DP&A (Tel.0/xx/21/2232-1768)
904 págs., R$ 72,00
Já em "O Ser e o Nada" Sartre
procurava mostrar que a razão
analítica não alcança a compreensão da conduta humana enquanto livre projeção da existência.
Seja concebendo-a subjetivamente como desdobramento
qualitativo de um "cogito" considerado de forma essencial e substancialista, seja entendendo as relações humanas como ligação de
consciências em regime de exterioridade recíproca, à análise escapam sempre aspectos relevantes da ordem humana; por exemplo, que é pela projeção consciente de si mesmo na exterioridade
que o indivíduo constrói sua subjetividade ou que a vivência intersubjetiva consiste em "ser-em-outro", isto é, na identidade do
outro que cada um constrói na
própria consciência ao objetivá-lo
como "outro" sujeito.
Enquanto as ciências humanas
se orientarem pelo modelo de relação analítica entre "o mesmo e o
outro", não será possível uma antropologia verdadeira, pois a
identidade subjetiva necessita,
para se constituir, da exterioridade das coisas e da interioridade do
outro. É ao exteriorizar minha
conduta e ao interiorizar a do outro que ambos efetuamos uma
troca singular pela qual nos reconhecemos humanos, à medida
que cada um sintetiza a partir das
condutas do outro as "diferenças"
que constituem a "comunidade"
das existências.
Dessa maneira, não se trata de
renunciar à subjetividade, mas de
aprofundar sua gênese e constituição, o que significa, no caso,
considerar as relações muito íntimas que se estabelecem entre
subjetividade e alteridade.
A "Crítica da Razão Dialética"
aparece assim como a tentativa de
consolidar o conhecimento da ordem humana a partir das exigências de um quadro de relações
que, embora fortemente estruturado, só pode ser elucidado dialeticamente. O projeto é a fundação
de uma antropologia que se constitua de forma verdadeiramente
autônoma, isto é, desvinculada
dos modelos analíticos que historicamente têm influenciado as
ciências humanas. Segundo Sartre, reside aí a única esperança de
um saber em que a evidência não
repouse na perspectiva formal, e
sim nas verdades que nascem e se
alimentam da "experiência", em
sentido existencial e histórico.
Ora, essa vinculação entre experiência e dialética supõe que a experiência humana só pode ser
compreendida dialeticamente
porque o homem não é um "objeto", em sentido análogo ao das
ciências empírico-formais, mas
um "sujeito que pode ser conhecido objetivamente".
Essa expressão não designa apenas a sobreposição, no caso do
homem, das categorias de sujeito
e objeto; significa que o conhecimento do homem só é possível na
efetuação da síntese opositiva entre as duas noções.
Complexidade estrutural
Com efeito, considerar que o
homem pode ser inteiramente explicado pela via da objetividade é
desconhecer a especificidade da
consciência "refletida na conduta" (e não idealisticamente pressuposta); por outro lado, tentar
compreendê-lo apenas como desdobramento da subjetividade é
ignorar o cociente de exterioridade "também refletido na conduta", e não pressuposto materialisticamente. Já se vê, portanto, que
a dialética, tal como Sartre a entende, supera e conserva o idealismo e o materialismo, porque, como mostrou "O Ser e o Nada",
não há mundo sem a intencionalidade da consciência (para-si) e
não há consciência sem o correlato noemático do mundo (em-si).
Essas figuras, que no ensaio de
ontologia firmavam as significações fundamentais da relação homem/ mundo, na "Crítica da Razão Dialética" se desdobram na
complexidade estrutural que finalmente nos permitirá vislumbrar o sentido da relação entre
subjetividade e história.
Esse objetivo indica a intenção
que orienta o estudo de Sartre: revelar em todo o alcance e toda a
profundidade a racionalidade
dialética no seu perfil específico,
de modo que o marxismo, enquanto única opção de antropologia autêntica, possa se beneficiar
de uma elucidação completa de
seu instrumento de compreensão
da realidade humana. E isso porque, para Sartre, o marxismo ainda estaria bem longe da fidelidade
ao método dialético requerida para justificar sua posição inovadora, revolucionária e desmistificadora entre as concepções que pretendem uma abordagem compreensiva das práticas humanas.
Que os marxistas se teriam rendido de fato à razão analítica, o
provam as duas direções predominantes de suas abordagens: a
pretensa universalidade do materialismo dialético, que redunda
na naturalização da realidade humana por inseri-la esquematicamente numa concepção metafísica de materialismo universal; e, ligada à perspectiva anterior, uma
atenção quase exclusivamente
voltada para os fatos históricos
passados, precisamente por se
disporem a uma leitura em chave
de materialismo determinista -o
que faz também que, ampliando-se tal estilo de interpretação, o
presente seja também interpretado segundo a inércia do "já acontecido", o que permite adequá-lo
ao esquema de um determinismo
histórico absoluto.
Ora, essa concepção, solidária
de noções como causalismo, reflexo, determinismo estrito, opera
uma tradução analítica da práxis
histórica, motivando uma compreensão exclusivamente categorial dos processos sociais, como se
estes não envolvessem sujeitos capazes de estabelecer livremente
seus projetos e de lutar pela sua
realização. Ou seja, o marxismo
que se subordina à análise produz
uma visão em que a história estaria completamente separada da
ação histórica e dos sujeitos/
agentes históricos. Trata-se de um
reducionismo que procura escapar à complexidade intuída por
Marx na relação dialética entre
atividade e passividade constituinte do "fazer história".
É portanto com vista a uma adequada compreensão da práxis
que se deve recompor a racionalidade dialética. Para tanto, o primeiro tomo (Sartre morreu antes
de terminar o segundo) consta de
duas partes: a primeira examina a
relação entre a práxis individual e
o conjunto do prático-inerte; a segunda trata da experiência de
grupo ou práxis comum. Esses
dois estudos, extensos e áridos,
são precedidos por "Questões de
Método", texto em que Sartre justifica seu empreendimento situando-o perante o marxismo.
A práxis individual é marcada
originariamente pela "carência"
intrínseca à condição humana (o
homem é sobretudo um ser com
necessidades) e a "escassez", entendida como a impossibilidade
de que todos satisfaçam as necessidades de sobrevivência, esse talvez o principal aspecto do campo
de ações que cada um já encontra
ao nascer e que no seu conjunto
Sartre denomina de prático-inerte: ações cristalizadas no passado
que me obrigam a viver num
mundo estruturado por outros. A
práxis comum pode chegar à ação
em que cada indivíduo se reencontra nos demais que com ele
formam um "grupo", isto é, um
conjunto de pessoas ligadas por
vínculos interiores e unificadas
por objetivos comuns.
À liberdade como sinônimo de
consciência (e de humanidade)
afirmada em "O Ser e o Nada",
acrescenta-se agora a densidade
concreta das contradições históricas que os projetos humanos devem atravessar. Na complexa diferença entre os dois livros, é a
continuidade entre ontologia e
história que está em questão.
Franklin Leopoldo e Silva é professor
do departamento de filosofia da USP.
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