São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma arte fugidia

Dois livros sobre a criação do moderno teatro brasileiro

SERGIO MAMBERTI

Ruggero Jacobbi
Berenice Raulino
Perspectiva (Tel. 0/xx/11/3885-8388)
306 págs., R$ 30,00

Apresentação do Teatro
Brasileiro Moderno
Décio de Almeida Prado
Perspectiva (Tel.0/xx/11/3885-8388)
382 págs., R$ 45,00

Pouco a pouco, vão se definindo os contornos de um dos períodos mais ricos e criativos do teatro brasileiro, mediante publicações que retratam os fatos e processos determinantes de sua modernização, no século passado, por volta das décadas de 40 e 50.
A editora Perspectiva muito tem contribuído para a elaboração desse vasto painel, ora focalizando trajetórias individuais, como no recente livro sobre o diretor italiano Ruggero Jacobbi, ora privilegiando uma visão mais abrangente, como na reedição do clássico "Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno", reunindo a crítica de Décio de Almeida Prado, no período de 1947 a 1955, obra de inestimável valor para fazer uma avaliação histórica dessa época. Por meio dos posicionamentos estéticos do autor e outras considerações, reflete-se a complexidade das mudanças que se operavam naquela ocasião, redirecionando radicalmente aquilo que se fazia até então.
As velhas companhias de teatro, lideradas tradicionalmente pelo primeiro ator, que aliava também a função de empresário, não incorporavam o encenador como o elemento indispensável para a harmonização do conjunto do desempenho.
De forma geral, o espetáculo amoldava-se às conveniências e ao temperamento do dono da companhia, comprometendo a unidade da montagem, desde a interpretação até os outros elementos: cenografia, figurinos, iluminação e música incidental.
Foram os encenadores e cenógrafos europeus, italianos em sua maioria, que trouxeram para o teatro brasileiro uma contribuição essencial, garantindo, ainda que tardiamente, sua inserção no contexto do teatro moderno. Essas alterações já faziam parte das preocupações de toda uma geração de jovens brasileiros, em São Paulo e no Rio de Janeiro, vindos do teatro amador, empenhados em trazer para o âmbito de nosso teatro essas conquistas. No entanto foi somente após a rica e intensa participação dos artistas europeus que começou a tomar corpo o processo de amadurecimento de uma consciência teatral brasileira, capaz de contemplar tamanho desafio.

A figura do diretor
A chegada às livrarias dessas duas obras, quase simultaneamente, joga luzes esclarecedoras sobre os processos que determinaram uma nova forma de fazer teatro no Brasil, consolidando as companhias estáveis sob o comando do diretor, renovando a dramaturgia nacional, investindo na formação de atores e técnicos e, principalmente, na formação do público. Ruggero Jacobbi e Décio de Almeida Prado, por sua vida e obra dedicadas quase que exclusivamente à discussão, à criação e ao fortalecimento da arte teatral no Brasil, são, sem dúvida, duas figuras fundamentais para a sua compreensão e o seu desenvolvimento.
Em seu livro sobre a vida e obra de Jacobbi, Berenice Raulino faz um mergulho em profundidade sobre um dos períodos mais férteis da vida cultural brasileira, trazendo para hoje, para agora, algumas das questões cruciais levantadas pelo mestre italiano, que ainda permanecem objeto de nossas indagações.
Sempre tivemos referências concretas sobre a importância e amplitude de sua contribuição; mas a autora, usando para fazer essa abordagem de uma estrutura emprestada ao cinema, nos revela -através de flashbacks, zooms, panorâmicas e planos gerais, "fade in" e "fade out"-, a brilhante trajetória do mestre italiano. Partindo do resgate do cenário cultural e político da Itália, vivenciado por ele durante a sua formação, e analisando os 14 anos de sua brilhante passagem pelo Brasil, repartida entre São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, até sua volta à Itália, ela consegue reconstituir com precisão e riqueza de detalhes a participação decisiva de Jacobbi na modernização da cena teatral brasileira.
Somos surpreendidos a cada momento com a incrível multiplicidade e abrangência de suas intervenções, como diretor de teatro, de cinema e de televisão, crítico, professor, poeta, articulista e dramaturgo, tornando-se em pouco tempo uma referência e um pólo de difusão de idéias em nosso país Em sua incansável viagem, em busca da elaboração de sua tese de doutoramento sob a orientação de Sábato Magaldi, Raulino vai nos revelando a formação de Jacobbi na Itália antes da Segunda Guerra, marcada pela ascensão do fascismo.
Seu precoce interesse por literatura, cinema e teatro fizeram com que participasse intensamente, ainda muito jovem, das profundas transformações por que passava o teatro italiano naquele momento, traduzindo a preocupação de sua geração em fazer dele uma arte consequente, um teatro de resistência, visando a melhorar o homem e expressar suas inquietações existenciais.
A demora no surgimento da direção teatral na Itália, em sua conceituação moderna relativamente ao que já se fazia em outros países da Europa, foi parte essencial de seus questionamentos. Recuperar a defasagem da cena italiana por meio da instauração e da valorização do trabalho do diretor teatral como elemento catalisador do processo de criação, requeria que sua formação fosse mais ampla, incluindo conhecimentos aprofundados de história, psicologia e do próprio teatro. Na verdade, o espetáculo moderno acaba por surgir em razão de circunstâncias sociais e políticas, que exigem uma reformulação radical do modo de fazer teatro.

Encruzilhada
Chegando ao Brasil, Jacobbi encontra nosso teatro na mesma encruzilhada que o italiano: a instituição da direção teatral como elemento de construção do espetáculo de caráter cultural, em substituição ao espetáculo visto como mero entretenimento. Ao mesmo tempo, a polêmica entre o conceito de espetáculo condicionado e espetáculo absoluto polarizava as atenções na época
Quando o diretor se propõe a traduzir literalmente a proposta do texto e sua encenação, estará realizando um espetáculo condicionado. Se, ao contrário, ele interfere no sentido global do texto, suprimindo inclusive indicações cênicas expressas em rubricas, com o objetivo de desenvolver uma linguagem própria da cena, estará realizando um espetáculo absoluto. Nas inúmeras encenações que realizou durante toda sua carreira, Jacobbi tentou sempre conciliar essas duas vertentes.
Por outro lado, as criações, por iniciativa de Franco Zampari, de uma companhia estável em São Paulo (o Teatro Brasileiro de Comédia, TBC), e de uma escola para atores (a Escola de Arte Dramática, EAD) também refletiam as mesmas iniciativas levadas a cabo na Itália nesse período. Os primeiros diretores brasileiros de teatro dentro desses padrões surgem em meados dos anos 50, a partir de um aprendizado feito em razão da observação dos profissionais italianos, no exercício de suas funções. Flávio Rangel, Antunes Filho e Ademar Guerra são aprendizes que se tornarão depois importantes diretores no nosso cenário teatral.
Por intermédio da apreciação e do estudo dos trabalhos de Jacobbi como diretor de cerca de 50 espetáculos, Raulino vai reconstituindo a partir de farta documentação a trajetória do artista, que tem início no Rio de Janeiro, passando pela Companhia Procópio Ferreira e pelo Teatro dos Doze, onde dirigiu "Arlequim, Servidor de Dois Amos", de Goldoni, com bastante sucesso.
Em 1949, vem para São Paulo, convidado para trabalhar no Teatro Brasileiro de Comédia, onde permanece inicialmente até 1950, dirigindo importantes montagens, a partir de um rico repertório nacional e internacional, quase sempre de primeira linha.
Para nos oferecer uma análise mais profunda de suas propostas como encenador, Raulino se detém especialmente em duas dessas montagens: "O Mentiroso", de Goldoni (1949), e "A Ronda dos Malandros", de John Gay (1950). O primeiro foi considerado um dos mais perfeitos espetáculos da história do TBC, causando grande impacto no meio teatral. O segundo, fruto de uma adaptação polêmica da peça, feita por ele e alguns colaboradores, talvez a primeira encenação com espírito brechtiano realizada no Brasil, foi proibido logo após a estréia e liberado com cortes. Apesar de ter atraído um público considerável durante duas semanas, teve sua carreira interrompida por Zampari, talvez em virtude de seu conteúdo político.
Inconformado com essa situação, Jacobbi se demite do TBC. Passando a encabeçar em seguida dois projetos de vulto, financiados por Mario Audrá Jr., torna-se diretor da Cinematográfica Maristela e ao mesmo tempo produtor e diretor da companhia teatral que funda com a atriz Madalena Nicol (são os primeiros artistas a abandonar o TBC e fundar a sua própria companhia).
O espetáculo de estréia "Electra e os Fantasmas", de Eugene O'Neill, realizado em um palco de pequenas dimensões, com pouca verba para sua produção, prejudicou muito seu resultado final, embora tenha sido considerado por uma parte da crítica como seu melhor espetáculo no Brasil A experiência não durou muito e por volta de 1952 ele retorna ao TBC com a possibilidade de viabilizar uma programação que não estivesse atrelada às inconveniências de um repertório mais comercial. Cria então o Teatro de Vanguarda Ruggero Jacobbi, atendendo à demanda da efervescente atividade teatral naquele momento em São Paulo por um espaço no qual os jovens artistas dotados de inteligência e sensibilidade pudessem contar com um repertório mais ousado, capacitando-os a desenvolver linguagens de experimentação.
Atores e atrizes iniciantes que dele participaram tornaram-se posteriormente nomes de destaque do teatro nacional, como Ruth de Souza, Walmor Chagas, Ítalo Rossi, entre outros.

O nacional
Em 1955, ele participa da ata de criação do Teatro Paulista do Estudante, como presidente da reunião, tendo, segundo Gianfrancesco Guarnieri, uma influência decisiva na formação desse grupo. O TPE começou a desenvolver as suas atividades em espaço cedido pelo Teatro de Arena, de José Renato, que também fora aluno dele. A fusão dos dois grupos fez com que o Teatro de Arena se tornasse em pouco tempo um dos mais importantes referenciais de discussão da realidade brasileira.
A temática nacional e a maneira de interpretar assumidas pelo Arena são frutos dessa fusão. O Seminário de Dramaturgia, criado para garantir a sedimentação dessas idéias, tem decisiva participação de Jacobbi, trazendo para a cena a realidade brasileira tanto no texto quanto na maneira de interpretar.
Em televisão produziu e dirigiu um grande número de teleteatros, ao vivo, em emissoras como a Tupi, a Paulista e a Record. O "Teatro Cacilda Becker" era realizado e transmitido em estações do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, uma vez que o videoteipe ainda não existia.
Em 1958, transferiu-se para o Rio Grande do Sul, onde fundou o Curso de Estudos Teatrais da Faculdade de Filosofia do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e permaneceu até 1959. Em 1960, retorna à Itália, realizando inúmeras montagens no Piccolo Teatro de Milão, assumindo também a função de crítico e o cargo de professor catedrático de literatura brasileira, na Universidade Magistério Romana, permanecendo porém estreitamente ligado ao Brasil. Lá publicou o seu importante livro, "Teatro in Brasile", traçando um panorama histórico do teatro no Brasil, que infelizmente até hoje não foi traduzido para o português. Realizou ainda diversas traduções e encenações de obras de dramaturgos e poetas brasileiros.
Paralelamente, Décio de Almeida Prado desenvolvia como crítico e estudioso do teatro brasileiro um trabalho de dimensões semelhantes. Na introdução de seu livro, "Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno", ele descreve de maneira exemplar como deve ser a função da crítica no processo de criação e modernização do teatro brasileiro. A partir da constatação de que o teatro é uma arte fugidia e que portanto tudo quanto se refere à representação, aos autores tem uma durabilidade efêmera, que não subsiste a não ser através da memória e dos comentários da crítica, ele tece considerações extremamente pertinentes sobre o seu trabalho cotidiano, suas limitações, suas imperfeições e a visão profunda que tinha da responsabilidade do crítico como elemento de divulgação de idéias concorrentes aos teatro.
Daí o tom muitas vezes expositivo de que se servia para situar um autor e servir de intérprete junto do público, ganhando em alcance social, o que segundo ele porventura perdia, sem o menor remorso, em pureza estética.
"Em tais casos, o que predominou, creio, foi o desejo de servir ao teatro da melhor maneira possível."


Sergio Mamberti é ator.



Texto Anterior: Dialética e experiência
Próximo Texto: Som e fúria
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.