São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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Som e fúria

Estudo faz uma etnografia do boxe

HELOISA PONTES

Corpo e Alma - Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe
Loïc Wacquant
Tradução: Angela Ramalho
Relume-Dumará
(Tel. 0/xx/21/2564-6869)
80 págs., R$ 38,00

Não foram poucos os escritores e cineastas que se deixaram fascinar pelo mundo do boxe. Até a publicação desse "Corpo e Alma - Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe", do sociólogo Loïc Wacquant, o filme de Martin Scorsese, "Touro Indomável", era -e continua a ser- um dos melhores retratos desse universo essencialmente masculino, desigualmente calibrado pela mistura de esporte, arte e violência.
Através das lentes certeiras do diretor e da atuação excepcional de Robert de Niro, no papel de Jake la Motta, somos fisgados pelas glórias e desafios que envolvem a vida dos pugilistas.
Uma referência mais detalhada ao filme pode ser a melhor maneira de introduzir o livro em pauta. Pois um é a tradução do outro em chave diversa: artística num caso, sociológica no outro. Exemplo, e dos melhores, da sétima arte, o filme de Scorsese cumpre à risca o dito do poeta Ferreira Gullar quando afirma que a "arte é a verdade que emociona". Não menos emocionante é este "Corpo e Alma", misto de análise sociológica, etnografia de primeira e relato em estilo literário da experiência iniciática do autor no universo do boxe. A diferença, que existe para ser levada a sério, é também de perspectiva.
Scorsese reconstrói a vida de um boxeador profissional, contrapondo o espetáculo do ringue -onde se travam as lutas que irão pontuar a ascensão vertiginosa de La Motta e seu progressivo (e irreversível) declínio- às "armadilhas" psicológicas que ele cria para si mesmo no mundo familiar e privado. Wacquant deixa deliberadamente de fora esse lado mais reluzente e midiático da vida dos boxeadores para destrinchar o espaço menos glamouroso, cinzento e trabalhoso do "gym". A academia onde os amadores enfrentam o treinamento duro dos corpos e internalizam o conjunto de dispositivos morais e simbólicos que modelam a disciplina do boxe. Se o livro é o avesso do filme, juntos oferecem a melhor entrada para a compreensão desse universo social, que, como todos os outros, quando visto de longe, faz ressoar a fala de Macbeth: "A vida não passa de uma sombra ambulante. (...) Uma fábula. Contada por um idiota, cheia de som e fúria, que não significa nada".
Miséria dos homens, condenados a toda sorte de bugigangas simbólicas e missões estrambóticas que, sendo nada de fora, são tudo para aqueles que estão no jogo. É por isso que o julgamento destes, derradeiro, nas palavras de Bourdieu, faz da exclusão social "a forma concreta do inferno e da danação social".
O filme de Scorsese faz pulsar essa assertiva sociológica, condensando visualmente, nas duas cenas memoráveis de abertura, a trajetória de ascensão e queda do boxeador La Motta. A primeira, cores esmaecidas, em câmara lenta e enquadrada pelas cordas horizontais do ringue, mostra o personagem de Robert de Niro com o roupão malhado, entreaberto, a barriga bem torneada, no auge da forma, dando socos curtos no ar, enquanto se aquece para a luta.
Na cena seguinte, em preto-e-branco, mal o reconhecemos, tal a sua decadência física. De charuto aceso, smoking, colarinho aberto, balofo, La Motta aguarda, em seu camarim, para entrar em cena como "show man".
Daí pra frente, o filme narra a sua trajetória. Mostra as lutas, os campeonatos, a relação tumultuada com o irmão e agente, a paixão por Vicky -a loura sexy, gostosa e maliciosamente ingênua-, que será também sua perdição. O ciúme doentio por ela aumenta à medida que a sua carreira vai rolando ladeira abaixo. O resto do filme retrata o descenso físico e moral do boxeador, o rompimento dramático com o irmão, o final tumultuado do casamento, a mudança forçada de profissão. De início, como proprietário de uma casa noturna em Miami, depois como empregado de um estabelecimento de mesmo tipo em Nova York, onde o ouviremos dizer, na cena final: "Eu poderia ter tido classe. Ter sido um campeão. Ter sido alguém. Em vez de ser um vagabundo que é o que eu sou".

Para os homens
O boxe, como mostra Wacquant, é para os homens e sobre os homens. Homens que lutam com outros homens para determinar o seu valor, sua masculinidade e existência social. Homens que se enfrentam para "ser alguém". Nesse negócio, as mulheres são excluídas, mas estão longe de serem apenas coadjuvantes. Como as comidas e as bebidas proibidas, elas povoam a fantasia masculina.
Ausentes do ringue, toleradas na academia apenas em ocasiões excepcionais, elas se insinuam como a grande ausência simbólica que teima em ressurgir no imaginário e no código de disciplina estrita que regula a vida dos boxeadores. Nada de sexo nas semanas que antecedem as lutas. Poupar energias, aprimorar o corpo, concentrar a mente. Com elas e com as famílias de origem, os pugilistas estabelecem uma relação marcada pela contradição sutil. Precisam delas e da integração conjugal e familiar para adquirirem os meios e as motivações necessárias ao combate.
Mas se elas forem demandantes demais a ponto de competirem com as exigências prolongadas do treinamento, nada feito. A tragédia de La Motta ganha, assim, uma nova inteligibilidade. Não no vácuo das formulações universais, mas no solo da sociedade norte-americana, onde, se "você quiser saber quem está por baixo", segundo a fala do treinador de Wacquant, "você tem que olhar para o boxe".
A maioria dos pugilistas, amadores e profissionais, pertence aos meios populares, sobretudo às frações recentes da classe operária, providas pela imigração. É por isso que, na história do boxe nos EUA, vemos sucederem irlandeses, judeus da Europa Central, italianos, negros e, mais recentemente, hispânicos. A morfologia desse universo não esgota o entendimento do recrutamento social de seus praticantes. Contrariando o senso comum, que vê no boxe a expressão da violência desregrada e a encenação de um esporte selvagem, o livro de Wacquant mostra que uma certa "regularidade de vida, um sentido de disciplina, um ascetismo físico e mental" são condições essenciais para se tornar pugilista.
O autor sabe do que está falando. Por experiência prolongada no interior desse universo, dosada pelo rigor da sua visada sociológica. Foram três anos de observação participante, que renderam mais de 2.000 páginas de anotações de campo, um livro (este, traduzido em oito línguas), uma profusão de artigos e, o que é mais importante, uma apreensão inovadora da relação de oposição simbiótica que a academia de boxe pesquisada tinha com o gueto negro onde ela estava situada. Ao se apoiar na cultura masculina da coragem física, da honra individual e do desempenho corporal, no aprendizado da violência regrada, ela se opunha à rua, como a ordem à desordem, oferecendo a seus frequentadores uma alternativa ao mundo do crime, das drogas e do tráfico, e acenando com o chamariz da glória e do reconhecimento social -para sintetizar de forma meio atabalhoada o argumento do autor.
Interessado em levar à frente uma pesquisa sobre o gueto negro norte-americano, mas sem saber ao certo como e por onde entrar nesse universo, situado a metros do bairro universitário onde ele residia em Chicago, mas a milhas de distância social, Wacquant chegou ao "gym" pela via providencial do acaso. Graças a um amigo, francês como ele, que o convidou para acompanhá-lo até a academia do bairro negro. Branco, mas sem a "hexis" corporal do branco típico de classe média americano, dispondo de um certo capital esportivo, adquirido na juventude quando praticou vários esportes competitivos, Wacquant foi tomando gosto pelo boxe e ganhando a confiança dos pugilistas amadores.
A idéia inicial era usar a academia como janela para entrada no gueto. Só depois de meses de treino é que ele se deu conta de que o gueto e a academia, parte de um mesmo universo social, eram um único e indissociável objeto de estudo. O desafio era entender por dentro o que só esse objeto poderia dizer a respeito desse mundo e que nenhum outro poderia dizer em seu lugar. Daí para uma antropologia do corpo foi um passo. Árduo, mas apaixonante. Parte da iniciação adveio do treinamento corporal exigente a que se submeteu: horas de academia, centenas de abdominais, dieta balanceada, corridas quase diárias, "shadow boxing" diante do espelho, aprimoramento dos "jabs", ganchos e outros nomes usados para qualificar os golpes, "sparring" no ringue.
Sociologia a partir do corpo e não só sobre o corpo, eis o resultado mais empolgante deste belo livro, verdadeira aula prática de pesquisa antropológica. Muita tinta tem sido gasta para mostrar que a etnografia é uma ficção -no sentido de ser uma construção textual e o resultado inescapável de um saber negociado entre o antropólogo e seus informantes-, permeada sempre por relações de poder. Nada mal para um desmonte da crença ingênua na neutralidade da ciência.
Com a condição, no entanto, de que a equação foucaultiana de que saber é poder não arrefeça em nós a vontade de saber mais. O trabalho de Wacquant, por ser uma aposta vigorosa nessa direção, escarafuncha o inquietante mundo do boxe avivando o som e a fúria desse universo social que, no filme de Scorsese, detonaram o protagonista.


Heloisa Pontes é professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas e autora de "Destinos Mistos - Os Críticos do Grupo Clima" (Companhia das Letras).



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