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Som e fúria
Estudo faz uma etnografia do boxe
HELOISA PONTES
Corpo e Alma - Notas Etnográficas
de um Aprendiz de Boxe
Loïc Wacquant
Tradução: Angela Ramalho
Relume-Dumará
(Tel. 0/xx/21/2564-6869)
80 págs., R$ 38,00
Não foram poucos os escritores e cineastas que se deixaram fascinar pelo
mundo do boxe. Até a publicação desse
"Corpo e Alma - Notas Etnográficas de
um Aprendiz de Boxe", do sociólogo Loïc
Wacquant, o filme de Martin Scorsese,
"Touro Indomável", era -e continua a
ser- um dos melhores retratos desse
universo essencialmente masculino, desigualmente calibrado pela mistura de esporte, arte e violência.
Através das lentes certeiras do diretor e
da atuação excepcional de Robert de Niro, no papel de Jake la Motta, somos fisgados pelas glórias e desafios que envolvem a vida dos pugilistas.
Uma referência mais detalhada ao filme
pode ser a melhor maneira de introduzir
o livro em pauta. Pois um é a tradução do
outro em chave diversa: artística num caso, sociológica no outro. Exemplo, e dos
melhores, da sétima arte, o filme de Scorsese cumpre à risca o dito do poeta Ferreira Gullar quando afirma que a "arte é a
verdade que emociona". Não menos
emocionante é este "Corpo e Alma", misto de análise sociológica, etnografia de
primeira e relato em estilo literário da experiência iniciática do autor no universo
do boxe. A diferença, que existe para ser
levada a sério, é também de perspectiva.
Scorsese reconstrói a vida de um boxeador profissional, contrapondo o espetáculo do ringue -onde se travam as lutas que irão pontuar a ascensão vertiginosa de La Motta e seu progressivo (e irreversível) declínio- às "armadilhas" psicológicas que ele cria para si mesmo no
mundo familiar e privado. Wacquant
deixa deliberadamente de fora esse lado
mais reluzente e midiático da vida dos
boxeadores para destrinchar o espaço
menos glamouroso, cinzento e trabalhoso do "gym". A academia onde os amadores enfrentam o treinamento duro dos
corpos e internalizam o conjunto de dispositivos morais e simbólicos que modelam a disciplina do boxe. Se o livro é o
avesso do filme, juntos oferecem a melhor entrada para a compreensão desse
universo social, que, como todos os outros, quando visto de longe, faz ressoar a
fala de Macbeth: "A vida não passa de
uma sombra ambulante. (...) Uma fábula.
Contada por um idiota, cheia de som e
fúria, que não significa nada".
Miséria dos homens, condenados a toda sorte de bugigangas simbólicas e missões estrambóticas que, sendo nada de
fora, são tudo para aqueles que estão no
jogo. É por isso que o julgamento destes,
derradeiro, nas palavras de Bourdieu, faz
da exclusão social "a forma concreta do
inferno e da danação social".
O filme de Scorsese faz pulsar essa assertiva sociológica, condensando visualmente, nas duas cenas memoráveis de
abertura, a trajetória de ascensão e queda
do boxeador La Motta. A primeira, cores
esmaecidas, em câmara lenta e enquadrada pelas cordas horizontais do ringue,
mostra o personagem de Robert de Niro
com o roupão malhado, entreaberto, a
barriga bem torneada, no auge da forma,
dando socos curtos no ar, enquanto se
aquece para a luta.
Na cena seguinte, em preto-e-branco,
mal o reconhecemos, tal a sua decadência
física. De charuto aceso, smoking, colarinho aberto, balofo, La Motta aguarda, em
seu camarim, para entrar em cena como
"show man".
Daí pra frente, o filme narra a sua trajetória. Mostra as lutas, os campeonatos, a
relação tumultuada com o irmão e agente, a paixão por Vicky -a loura sexy, gostosa e maliciosamente ingênua-, que será também sua perdição. O ciúme doentio por ela aumenta à medida que a sua
carreira vai rolando ladeira abaixo. O resto do filme retrata o descenso físico e moral do boxeador, o rompimento dramático com o irmão, o final tumultuado do
casamento, a mudança forçada de profissão. De início, como proprietário de uma
casa noturna em Miami, depois como
empregado de um estabelecimento de
mesmo tipo em Nova York, onde o ouviremos dizer, na cena final: "Eu poderia
ter tido classe. Ter sido um campeão. Ter
sido alguém. Em vez de ser um vagabundo que é o que eu sou".
Para os homens
O boxe, como mostra Wacquant, é para
os homens e sobre os homens. Homens
que lutam com outros homens para determinar o seu valor, sua masculinidade e
existência social. Homens que se enfrentam para "ser alguém". Nesse negócio, as
mulheres são excluídas, mas estão longe
de serem apenas coadjuvantes. Como as
comidas e as bebidas proibidas, elas povoam a fantasia masculina.
Ausentes do ringue, toleradas na academia apenas em ocasiões excepcionais,
elas se insinuam como a grande ausência
simbólica que teima em ressurgir no imaginário e no código de disciplina estrita
que regula a vida dos boxeadores. Nada
de sexo nas semanas que antecedem as
lutas. Poupar energias, aprimorar o corpo, concentrar a mente. Com elas e com
as famílias de origem, os pugilistas estabelecem uma relação marcada pela contradição sutil. Precisam delas e da integração conjugal e familiar para adquirirem os meios e as motivações necessárias
ao combate.
Mas se elas forem demandantes demais
a ponto de competirem com as exigências prolongadas do treinamento, nada
feito. A tragédia de La Motta ganha, assim, uma nova inteligibilidade. Não no
vácuo das formulações universais, mas
no solo da sociedade norte-americana,
onde, se "você quiser saber quem está por
baixo", segundo a fala do treinador de
Wacquant, "você tem que olhar para o
boxe".
A maioria dos pugilistas, amadores e
profissionais, pertence aos meios populares, sobretudo às frações recentes da classe operária, providas pela imigração. É
por isso que, na história do boxe nos
EUA, vemos sucederem irlandeses, judeus da Europa Central, italianos, negros
e, mais recentemente, hispânicos. A morfologia desse universo não esgota o entendimento do recrutamento social de
seus praticantes. Contrariando o senso
comum, que vê no boxe a expressão da
violência desregrada e a encenação de um
esporte selvagem, o livro de Wacquant
mostra que uma certa "regularidade de
vida, um sentido de disciplina, um ascetismo físico e mental" são condições essenciais para se tornar pugilista.
O autor sabe do que está falando. Por
experiência prolongada no interior desse
universo, dosada pelo rigor da sua visada
sociológica. Foram três anos de observação participante, que renderam mais de
2.000 páginas de anotações de campo,
um livro (este, traduzido em oito línguas), uma profusão de artigos e, o que é
mais importante, uma apreensão inovadora da relação de oposição simbiótica
que a academia de boxe pesquisada tinha
com o gueto negro onde ela estava situada. Ao se apoiar na cultura masculina da
coragem física, da honra individual e do
desempenho corporal, no aprendizado
da violência regrada, ela se opunha à rua,
como a ordem à desordem, oferecendo a
seus frequentadores uma alternativa ao
mundo do crime, das drogas e do tráfico,
e acenando com o chamariz da glória e do
reconhecimento social -para sintetizar
de forma meio atabalhoada o argumento
do autor.
Interessado em levar à frente uma pesquisa sobre o gueto negro norte-americano, mas sem saber ao certo como e por
onde entrar nesse universo, situado a metros do bairro universitário onde ele residia em Chicago, mas a milhas de distância social, Wacquant chegou ao "gym"
pela via providencial do acaso. Graças a
um amigo, francês como ele, que o convidou para acompanhá-lo até a academia
do bairro negro. Branco, mas sem a "hexis" corporal do branco típico de classe
média americano, dispondo de um certo
capital esportivo, adquirido na juventude
quando praticou vários esportes competitivos, Wacquant foi tomando gosto pelo
boxe e ganhando a confiança dos pugilistas amadores.
A idéia inicial era usar a academia como janela para entrada no gueto. Só depois de meses de treino é que ele se deu
conta de que o gueto e a academia, parte
de um mesmo universo social, eram um
único e indissociável objeto de estudo. O
desafio era entender por dentro o que só
esse objeto poderia dizer a respeito desse
mundo e que nenhum outro poderia dizer em seu lugar. Daí para uma antropologia do corpo foi um passo. Árduo, mas
apaixonante. Parte da iniciação adveio do
treinamento corporal exigente a que se
submeteu: horas de academia, centenas
de abdominais, dieta balanceada, corridas quase diárias, "shadow boxing" diante do espelho, aprimoramento dos
"jabs", ganchos e outros nomes usados
para qualificar os golpes, "sparring" no
ringue.
Sociologia a partir do corpo e não só sobre o corpo, eis o resultado mais empolgante deste belo livro, verdadeira aula
prática de pesquisa antropológica. Muita
tinta tem sido gasta para mostrar que a
etnografia é uma ficção -no sentido de
ser uma construção textual e o resultado
inescapável de um saber negociado entre
o antropólogo e seus informantes-, permeada sempre por relações de poder. Nada mal para um desmonte da crença ingênua na neutralidade da ciência.
Com a condição, no entanto, de que a
equação foucaultiana de que saber é poder não arrefeça em nós a vontade de saber mais. O trabalho de Wacquant, por
ser uma aposta vigorosa nessa direção,
escarafuncha o inquietante mundo do
boxe avivando o som e a fúria desse universo social que, no filme de Scorsese, detonaram o protagonista.
Heloisa Pontes é professora de antropologia na
Universidade Estadual de Campinas e autora de
"Destinos Mistos - Os Críticos do Grupo Clima"
(Companhia das Letras).
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