São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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Cineastas do corpo

RUBENS MACHADO JR.

Por um Cinema sem Limite
Rogério Sganzerla
Azougue (Tel. 0/xx/21/2239-6606)
120 págs., R$ 22,00

Considerado por muitos -de Almeida Salles a Caetano Veloso- a maior personalidade cinematográfica brasileira ao lado de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, tal como o líder cinemanovista, começou como crítico. Poucos entretanto conhecem hoje essa sua faceta, mesmo aqueles que leram alguns de seus textos-manifesto recolhidos em antologias sobre a cultura brasileira dos anos 1960/70, em geral depoimentos na forma de panfleto/press release de seus dois primeiros filmes, "O Bandido da Luz Vermelha" (1968) e "A Mulher de Todos" (1969).
Justiça seja feita, além de mais conhecidos, estes são também seus textos mais ricos e virulentos, ao lado da altissonante entrevista que concedeu a "O Pasquim", por ocasião do lançamento do seu segundo longa. Critica nesse momento o cinema novo, procurando demarcar uma distância e ao mesmo tempo um resgate radical. Também estranha que o vinculem ao recém-eclodido tropicalismo, identificação que, mesmo à sua revelia, não se parou de fazer. Seja qual for o nome que venha a ser dado à produção artística mais aguda daquele período, dois ou três de seus filmes podem ser vistos como obras capitais.
Pois bem, esse momento explosivo não faz parte dessa coletânea, a primeira que Sganzerla publica. Mas é claro que tal ausência se faz de algum modo presente. Esse livro reúne seus artigos de maior alcance teórico. Deixou de lado as críticas de filmes, comuns na fase pré-realizador, bem como seus artigos mais centrados em personalidades artísticas, comuns posteriormente.
Sganzerla debutou bem precocemente como crítico, ainda aos 17 anos. Décio de Almeida Prado, que dirigia o suplemento literário de "O Estado de S. Paulo", ampara o jovem talento, que viria a desempenhar um papel discreto, mas sistemático, de intérprete e defensor do cinema novo, um tanto solitário na imprensa paulista. Além de importantes para nos ajudar a elucidar os seus tão provocantes filmes, seus artigos também devem contribuir para a reflexão sobre o cinema moderno no país.
Nestes textos de inclinação teórica, em boa parte escritos alternadamente com suas primeiras críticas de filmes, o cineasta pratica um balanço do cinema contemporâneo, extraindo de seu olhar crítico certos denominadores comuns que esboçam uma visão própria do cinema e preparam a elaboração da poética pessoal do realizador.
O cinema que o interessa é o moderno, que ele é levado a pensar em contraponto ao modelo clássico. Enxerga em Orson Welles o mito fundador, mas também a presença dos parâmetros desse cinema do qual Godard seria considerado o "dernier cri", um exemplo máximo ladeado de poucos, como Resnais ou Antonioni. O modelo clássico é estudado nem tanto em Griffith ou Ford, mas em Fritz Lang, com predileção pelos anos 30 americanos, certas vezes em Bergman (excetuada a sua obra-prima, "Noites de Circo") ou, curiosamente, em Fellini.
Entre os parâmetros centrais do classicismo destaca o critério do tempo mítico e da busca de um olhar absoluto. O olhar moderno ao contrário seria relativo, subjetivado, sofrendo as contingências da falibilidade e voltado à pesquisa do espontâneo. Esta última postura produz os cineastas do corpo, modernos, opostos aos clássicos que tendem a engendrar os cineastas da alma, que nosso autor recusa com algum comedimento e relutância, pois execra em essência, embora os respeite como criadores.
Noutra similaridade com Glauber, que via em Sartre o filósofo do século, Sganzerla demonstra em suas conceituações, o que pode surpreender alguns, certa afinidade com o pensamento existencialista, um tanto além de sua vulgarização entre artistas e críticos da época. Suas noções basilares informam o uso de termos-chave, como "essência", "ambiguidade" ou "dialética", os quais se revelam para além da terminologia, em certo estilo oscilante de pensar.
É bem certo que a fenomenologia existencialista já marcava o pensamento de André Bazin, a referência crítica primordial de Sganzerla. Têm clara inspiração baziniana algumas de suas intuições principais ou secundárias. Um exemplo disso seria o mote do parentesco do cinema com o barroco. É muito rico o influxo dessas concepções realistas junto da problemática do caráter brasileiro, que o autor sugere por vezes levar em conta. Não seria sintomática a sua incorporação à poética moderna, com alguma ênfase, de uma dada integração do ingênuo e do espontâneo? São também notáveis suas descrições da "Câmera Cínica", não só parâmetro emblemático dos cineastas do corpo, mas também como recurso analítico, para não falar ainda de suas implicações na avaliação de um filme como "Os Cafajestes" e as não poucas repercussões do cinismo em questão, durante as radicalizações que se seguiram no cinema marginal.
É pena não contarmos com as críticas de filmes neste volume, pois são elas que permitem descortinar a origem dos temas sganzerlianos. A única exceção, a crítica de "Viver a Vida", de Godard, atesta esta dinâmica. Aos leitores mais afoitos: não ligar para os erros de revisão que coalham algumas páginas, eles são de fato frustrantes. Mas reservem a paciência para o pior, que foi sem dúvida o descuido da revisão em matéria cronológica. Entenderíamos que textos datados dos anos 1980 possam ter conservado referências e terminologia típicas dos anos 1960. Mas o contrário também se dá, artigos dos anos 60 citando filmes e idéias bem posteriores (págs. 55 e 56). Só mesmo uma reedição crítica poderia estabelecer a historiografia das contribuições do autor e seu diálogo com os cinemanovistas e a crítica.
O cinema brasileiro, aliás, pouco tratado nesta coletânea, aguarda agora a edição (oxalá mais cuidadosa) dos artigos restantes. Lá se produziram conceitos muito interessantes, como o de expressionismo caipira, a respeito dos filmes de estúdios paulistas. Fértil no embate com os filmes, sobretudo os nacionais, o texto de Sganzerla deixa claro que respirava em sua juventude cinéfila do pleno cosmopolitismo paulistano: sua academia eram as sessões da então pujante Cinemateca Brasileira, um pouco como na germinação da "nouvelle vague", a partir das sessões da Cinemateca Francesa. A desigualdade, porém, desses processos tem nele uma percepção prodigiosa. E uma interpretação especial. Seus filmes e textos configuram uma reflexão das mais arquetípicas do cinema terceiromundista.


Rubens Machado Jr. é professor da Escola de Comunicação e Artes da USP e autor de "São Paulo em Movimento - A Representação Cinematográfica da Metrópole nos Anos 20" (Ed. da Unicamp, no prelo).


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