São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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QUE FIM LEVOU

No sofá com Helena

por MÁRIO MAGALHÃES

Estrela da pornochanchada, a atriz viveu alheia ao furor que provocava

Nunca saberei quantas foram as carteirinhas estudantis cuja idade eu aumentei, na máquina de escrever, para me regozijar com Helena Ramos nos filmes desautorizados a menores de 18 anos.

Também persistirá a dúvida: assisti mais vezes a "Mulher Objeto" (1981) e "Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel" (1979), dois dos seus sucessos, ou a clássicos como "Casablanca" (com Ingrid Bergman) e "Ladrão de Casaca" (Grace Kelly)?

Tem mais: a memória por vezes camufla os nomes do cavalo do Zorro e o da leoa adotada por um casal na África, bichos celebrizados na TV e no cinema, mas jamais se esquece de como se chamava o puro-sangue que, digamos, contracenou com Helena em "Mulher, Mulher" (1979) -Jumbo. O jumento cujas dimensões fascinavam o seu personagem ?de estréia, em "As Cangaceiras ?Eróticas" (1974), atendia por Kaká.

É naquela devoção de adolescente pela estrela de cinema que eu penso quando Helena Ramos abre a porta do seu apartamento na avenida Rebouças, em São Paulo, e me convida para compartilhar o sofá. Parece incrível, mas a atriz que de 1974 a 84 enfeitiçou as telas nacionais, em 42 produções, foi banida dos sets há quase um quarto de século.

É como se o ciclo da pornochanchada, no qual ela brilhou, ?a amaldiçoasse com o desterro cinematográfico. No auge, Helena amealhou porcentagem da bilheteria de "Mulher Objeto", dirigido pelo hoje novelista Silvio de Abreu. Não passava dos 29 anos na ?filmagem derradeira, em "Volúpia de Mulher". Para matar a saudade, só varando as madrugadas no Canal Brasil, onde se reencontra não apenas a mulher formosa, mas uma atriz de talento.

Helena não conheceu hostilidade contra ela. "Mas o preconceito da mídia foi pesado", assinala. "Não em relação a mim como atriz. Falavam do conjunto do cinema, diziam que era tudo uma porcaria."

Maldade, pois, se havia mesmo caça-níqueis constrangedores, muitos filmes envelheceram bem. Helena recusa a expressão consagrada, pornochanchada. Julga-a pejorativa.

Ao contrário do que muita gente imagina, aquele cinema erótico não continha sexo explícito, essa olimpíada de intercurso sem encanto que germinou quando a ?ditadura militar agonizava.

Nos primeiros tempos, a censura bronqueava até com traseiros. Nem os lançamentos estrangeiros escapavam. "Laranja Mecânica", obra-prima de Stanley Kubrick, só foi liberado com uma bolinha preta tapando os nus frontais -quando a bolinha vacilava, e tudo se revelava, as platéias deliravam.

Nos estertores da pornochanchada, permitiram closes íntimos, mas não havia finalmentes. "O sexo explícito foi motivo de decadência do cinema", diz Helena. Ela conta que um produtor da Boca do Lixo paulistana, a Hollywood das pornochanchadas, sugeriu uma jogada para sua protagonista recuar da rejeição ao cine pornô-vale-tudo.

Ela faria as seqüências mostrando o rosto. Outra mulher, com o mesmo tom de pele, se encarregaria do nheco-nheco. Helena não deu trela: "Sexo é uma coisa muito íntima".

Assim como a nudez -ela evitava se despir diante das irmãs. Nascida no município de Cerqueira César (SP), caçula dos cinco filhos de um casal de agricultores, Benedita Helena Ramos foi aluna de um colégio de freiras cujo instrumento mais notório de ensino era a palmatória.

"Eu era muito tímida e reservada", define-se. "Não sei se foi influência da escola, muito rígida. Tive uma formação religiosa muito forte."

Tanto que ela se retirou quando, ao se arriscar no teste para um filme de Roberto Mauro, soube que teria de filmar pelada. O diretor a descobrira atuando como telemoça, a assistente de palco de Silvio Santos.

Helena só aceitou encarar outro filme do diretor porque ele jurou que a focaria do pescoço para cima. Até hoje ela ignora se ele lhe pregou uma peça ou se esqueceu da promessa -embora o título "As Cangaceiras Eróticas" dê pistas.

"Apaixonei-me por cinema porque vi que era tudo faz-de-conta. Ninguém transava com ninguém. Era tudo muito sério, fazíamos na raça. Existia na Boca uma energia, a gente acreditava naquele sonho. Era mesmo um sonho concorrer com os filmes americanos."

HORTELÃ

Helena coleciona histórias do sonho e sacia curiosidades. Para que Jumbo lambesse os seus seios, lambuzaram-na com bala de hortelã, o sabor favorito do cavalo. Noutro filme, teve de montar, nua e com óleo no corpo, um garanhão em pelo.

Em "Mulher Objeto", interrompeu uma seqüência para se queixar, ao diretor, de um ator e modelo: "Silvio, o cara está excitado". Deram um tempo, o rapaz baixou a guarda, e a filmagem prosseguiu.

Por que o colega não se conteve? "Porque não tinha fala", engana-se Helena, para quem as exigências de intérprete -marcação, diálogos- impedem a dispersão. Mais razoável é supor que o ator se entusiasmou por contracenar com ela.

A resposta é sincera: Helena Ramos não faz tipo. De fato, ela cultivava incertezas sobre o furor que provocava. Ia disfarçada às salas de projeção para testemunhar a reação do público. Ao menos reconhece: "Eu tinha os seios perfeitos".

Seus personagens costumavam ser densos e angustiados, mal-resolvidos no amor. O que têm a ver com ela? Nada: "Nunca tive problema na minha sexualidade".

Em 1981, Helena foi mãe da hoje advogada Natasha. Não chegou a se casar. Mudou-se para os Estados Unidos na década de 1990. Estudou arte dramática, as contas apertaram e ela sobreviveu como baby-sitter ou fazendo quatro faxinas por dia.

Praguejou contra a sorte? Pelo contrário: "Sempre agradeço as chances que tive. Acho que estou viva até hoje porque tenho muita fé". Católica, acompanha o padre Marcelo na televisão.

Há menos de um mês, deu um tempo em um namoro. Pinta quadros. Vai batalhar para montar uma peça que escreveu, "Não Preciso de Ninguém, Ninguém Precisa de Mim". Sempre foi solitária. Vive de uma pequena participação na clínica médica do pai de sua filha. Quer retomar a carreira, especialmente na TV -ela trabalhou em um punhado de novelas. Faria nu? "Já passou da fase", descarta.

É um desperdício o seu degredo artístico. Além do mais, aos 55 anos, Helena ostenta boa forma, como comprovam suas curvas em uma calça jeans e o andar elegante sobre saltos altos.

Mas não é nisso que eu penso ao me despedir, e sim na anedota do cidadão que, em uma ilha deserta com Sharon Stone, só topou partir para o abraço caso tivesse o direito de contar aos amigos os detalhes tintim por tintim.

Minha vontade é procurar os velhos companheiros de adolescência e espalhar, qual um garoto falastrão: passei, quem diria, quase três horas com Helena Ramos no sofá.

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