São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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FINOS

Los Barbudos

por RONALDO BRESSANE e KATIA LESSA

Eles agora são conhecidos como "a banda do Marcelo Camelo", mas há dez anos o Hurtmold é um dos tesouros mais bem guardados de São Paulo

"O que é que vai tocar aqui hoje?", pergunta o manobrista para o porteiro da casa noturna paulistana Grazie a Dio!. "Hurtmold", manda o guardião. "É HÂRTIMÔRDI!", grita o manobrista, ao celular. "Que som que é?", indaga o valet. "É pós-roque!", sorri o da banqueta, piscando o olho para o repórter: "Se ele agora vier me perguntar o que é pós-roque, ferrou!"

"Se a gente fosse velho, iam falar que é jazz", ri Guilherme Granado, 29, teclados/vibrafone/escaleta. "Mas isso seria uma ofensa ao jazz", contrapõe Mário Cappi, 27, guitarra: "Não podemos brincar com coisa séria. O Hurtmold é só uma banda de rock sem nada de erudito. É muito mais instinto e intuição", diz. Maurício Sanches Takara, 25, bateria/trompete, afasta os preconceitos: "Não precisa rotular, tem que ter uma relação mais espontânea com o som. O que fazemos não é hermético nem cerebral", diz. "Com essa de chamarem o som de cabeçudo, já nos chamaram de arrogante", conta Fernando Cappi, 28, o outro irmão guitarrista. "Ouvi um papo de que a gente 'se acha'... Não é nada disso! Só queremos fazer um som entre amigos, um som de coração", explica. "A gente no fundo é tímido. Ninguém consegue abrir um show tipo 'e aí galera?'", brinca Granado.

"É um som inclassificável", define Rica Amabis, do Instituto, coletivo que tem como integrante Daniel Ganjaman, irmão de Takara (outro irmão, Fernando, é guitarrista do CPM22; o trio é filho de Claudio Takara, emérito produtor paulistano). "Sempre foram uma espécie de satélite solitário que vagava entre o free jazz e o pós-rock de Chicago. Uma apresentação deles não é um mero show, é uma experiência", postula o jornalista musical Fábio Massari. "É simplesmente uma das melhores bandas do Brasil", sintetiza o produtor Carlos Miranda. Os elogios não exageram: toda apresentação do Hurtmold soa única, incomparável. Uma música quase narrativa, enfaticamente percussiva, que intercala atmosferas raivosas e delicadas com uma dinâmica hipnótica e raro senso de drama. Tudo sem efeito ou ornamento; minimalista, simples. Talvez por isso uma banda instrumental tenha conquistado um público fiel durante seus dez anos e cinco álbuns: cada exibição mantém foco preciso na musicalidade, o que sugere lendárias sessões de jazz dos anos 40 -porém, em sua recusa pelo complexo e pelo virtuosístico, se aproxima do punk e do hard-core. E, apesar do pretenso cabecismo, é um som essencialmente voltado ao sacolejo dos quadris.

Não por acaso, a banda que os seis elegem como ícone não é o Mogwai -que está para o pós-?rock como o Pink Floyd está para o progressivo- e sim o Fugazi, emblemático grupo punk norte-americano. "A primeira vez que vi o Fugazi fiquei com medo. Parecia tão de verdade! Isso tem a ver com a postura básica do som deles. Ninguém aqui gosta de solos nem de jam sessions. Cada elemento tem sua importância, cada silêncio conta. Às vezes, você toca uma nota e é como um facho de luz", metaforiza Granado. "O Rob Mazurek [trompetista de Chicago que vive em São Paulo e é parceiro constante do Hurtmold] nos disse que a diferença entre uma jam e um improviso é que no segundo você tem um objetivo", explica. "É uma mentalidade estranha a dos apreciadores de jazz em São Paulo", cutuca Takara. "É uma coisa careta, de adorar solo. Tem mais a ver com ego que com som", afirma o baterista, já apontado como um dos melhores do país.

LOS CAMELOS

A maioria dos integrantes se conheceu na tradicional escola Carlos de Campos, no Brás, onde havia uma cena forte de skate e hardcore. Somente Takara e o baixista Marcos Gerez, 27, vêm de famílias musicais -mas Gerez, único imberbe do sexteto ("simplesmente não nasce pêlo na minha cara!", desculpa-se) sempre teve um approach punk do som. "Meu pai, violinista, queria que eu lesse partitura; eu não. Detesto ficar estudando, é o mesmo que fazer flexão... O som tem que ser sentido na rua, vivido a partir das situações que a gente vê. Eu gosto é de criar junto com a banda", diz, indicando, aliás, outra particularidade do Hurtmold: todas as composições são coletivas. Não há líder. "Parece etéreo demais, mas não pensamos nada: funciona da forma mais tosca possível", explica Mário. "Um chega com uma idéia, mostra, os outros tocam em cima. São muitas influências, seis caras que escutam música brasileira, africana, americana, européia. É uma espécie de Lego", define.

Esse processo de composição mudou completamente com o convite para ser a banda de apoio ao ex-Hermano Marcelo Camelo. "O trabalho coletivo não prescinde da contribuição mútua. Eu passei as músicas, mas o processo de criação foi conjunto e, claro, houve interferência", explica Camelo, que era fã da banda e já havia tocado com eles no Canecão. "Achei que seriam bons como apoio porque o trato deles com texturas combina com a minha melodia. No início iam gravar só 'Téo e a Gaivota', mas o trabalho fluiu e foi natural que gravassem mais três faixas e virassem a banda de apoio", conta.

Para Takara, tocar com Camelo foi até libertador. "A gente fica livre só para tocar, não precisamos compor. E gostamos dele como músico e como pessoa: é um cara sincero". Gerez ficou impressionado com o novo "chefe": "Ele toca muito! E como gosta de ensaiar... Com o Hurtmold são três horas, com ele são sete!" A banda vai ficar mais pop? "Estamos preparadíssimos. Já mandei fazer o meu terno Armani para a estréia e a mulher da loja disse que eu não preciso pagar porque vou tocar com o Marcelo Camelo", ri Mário. Enquanto isso não acontece, a maior banda underground de São Paulo -seja lá o que isso signifique- ensaia para as apresentações de dez anos no Auditório Ibirapuera, em novembro. E, ah, antes que você pergunte para o porteiro da casa de shows: a palavra Hurtmold não quer dizer absolutamente nada. É só um som. O som.

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