São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2011

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FINO

Mano ADIB

por ELEONORA DE LUCENA

Aos 81 anos, o cardiologista e ex-ministro Adib Jatene se transformou em militante da saúde pública. ele Alfineta governo, empresários, e quer mobilizar as elites

Vinte e um quilômetros a leste da praça da Sé, mais de 500 pessoas aplaudem de pé Adib Jatene. O auditório da Faculdade Santa Marcelina, em Itaquera, está lotado. Na maioria, são mulheres que fazem parte do programa Saúde da Família, que ele ajudou a criar há 15 anos. A festa tem violão e cantoria.
Quando a platéia termina de cantar de mãos dadas "Tocando em Frente", de Almir Sater e Renato Teixeira, o ex-ministro sobe ao palco. Chama muitas daquelas mulheres pelo nome, conta histórias. Lembra de ter ficado impressionado com um curioso mecanismo para tirar cera de ouvido de criança que conheceu por ali anos atrás: um canudo comprido onde se colocava fogo na ponta. Arranca risadas.
Foi há dez dias. Um mês antes, ao receber a Serafina, Jatene rememorou sua ligação com o a população mais pobre. Começou no tempo em que era secretário da saúde de Paulo Maluf, na ditadura. Tinha sido instruído pelo governo a não ir às assembleias na periferia, onde, lhe disseram, as pessoas eram violentas. Naquela época de crise, crescia a mobilização por melhoria de vida.
"A primeira reunião que eu fui foi no parque Savoy City [zona leste], onde um líder do governo municipal tinha saído corrido para não apanhar." A partir daí, passou a frequentar a periferia. Foi lá, diz, que aprendeu as razões das contradições da sociedade brasileira.
"O grande problema do pobre não é ele ser pobre: é o amigo dele ser pobre. Ele não tem amigo que fala com quem decide. Não tem amigo que marca audiência, que ajuda a fazer planejamento, que negocia financiamentos. Quem faz o planejamento governamental não é o governo, são as empreiteiras."
Para romper com essa lógica, ele virou um militante pela saúde pública. Ainda como auxiliar de Maluf bateu na porta dos então ministros Delfim Netto, Golbery do Couto e Silva e Leitão de Abreu para buscar fundos. Relata que consideram suas idéias muito boas. A dificuldade era destinar a verba de fato para a saúde.
Enquanto o dinheiro não chegava, a urbanização explodia e escancarava desigualdades. "A população de Mauá dobrou em dez anos. Fui lá [em 1980] e não tinha centro de saúde. Fiquei impressionado com as indústrias que se instalavam com terraplenagem, poço artesiano. E a população, em lotes pequenos com fossa, obtinha água de cisterna. Todas as cisternas estavam contaminadas."
 A volta da democracia trouxe mudanças. A Constituição de 1988 criou o Sistema Único de Saúde e deixou espaço à iniciativa privada. O Estado ficou com a responsabilidade de atender a todos. Na prática, principalmente aos mais pobres, que não podem pagar por planos.
O problema é que os recursos não vieram na proporção necessária para uma tarefa tão grandiosa, pondera Jatene. Em 1992 ele aceitou ser ministro da saúde de Fernando Collor. Desse período, lembra do seu embate contra um amontoado de fraudes. O impeachment do presidente afogado em escândalos suspendeu a carreira ministerial do famoso cardiologista.

SOCORRO URGENTE
Ele voltou à cadeira com Fernando Henrique Cardoso. Retomou sua batalha fazendo a campanha pela criação da CPMF. Esgrimindo números, provou que a saúde pública precisava de socorro urgente.
"Descobrimos uma coisa fantástica. Dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca tinham pago imposto de renda. O rico não gosta de pagar imposto. As empresas não pagam, quem paga é quem compra." Nota que nos países desenvolvidos, há imposto sobre riqueza e herança. "Quem tem mais paga mais".
Aqui é diferente. "Vou em mansões de amigos milhardários. Depois vou à periferia. Não está certo. Aquele camarada [o rico] nunca foi lá. E às vezes ele acha que o sujeito não tem porque é vagabundo. A elite não tem consciência da sua responsabilidade –esse é o problema."
Jatene aponta o que chama de incoerência dos empresários: querem redução da carga tributária e, ao mesmo tempo, cobram do Estado melhor infraestrutura, segurança, educação, saúde. Alfineta também os governantes:
"A área econômica vive muito perto da riqueza. Quando vem a São Paulo, o ministro da Fazenda vai à Fiesp, à Febraban, almoça no Fasano. Nunca foi à periferia. Eles têm dificuldade para entender os problemas da pobreza. E nós, que lidamos com a pobreza, não aceitamos as restrições que eles estabelecem."
É no helicóptero da Federação das Indústrias de São Paulo que Jatene chega ao evento em Itaquera. A Fiesp liderou a campanha contra a CPMF. Hoje ele faz parte do conselho da entidade. Quer, agora, mudar a elite.
Em vez de mobilizar as massas, o sr. quer mobilizar as elites?, pergunto. "Mobilizar as massas não muda o Brasil. Elege pessoas, muitas inadequadas. A mobilização para o país tem que ser das elites." Mas as elites vão abrir mão de seus privilégios?, insisto. "Taí o problema", reconhece. "Mas a conscientização está aparecendo", emenda, num final de tarde chuvosa na sala de café do Hospital do Coração.
 
REVOLUÇÃO
Jatene não quer saber de política partidária. Quando conseguiu extrair a CPMF do Congresso, o governo FHC desidratou as outras fontes de financiamento da saúde. A falta de dinheiro continuou, desabafa. Desiludido, deixou o ministério. Diz que nunca foi candidato a presidente. Desconversa quando questionado se houve manobra para esvaziar seu poder naquela época –o que poderia afetar os planos de reeleição.
A CPMF vai voltar?, pergunto. Com uma ponta de desânimo, responde: "Acho que a população não vai aceitar, porque foi submetida a uma lavagem cerebral. Se não aceitam a CPMF, indiquem uma alternativa. Não condenem a saúde pública a ficar numa situação impossível de se resolver".
Quando estudava em Uberlândia, Jatene era o único branco do time de futebol. Depois se apaixonou pelo remo. "É uma escola fantástica. Você aprende a trabalhar em equipe". Nessas experiências é que Jatene vasculha o seu interesse pelo social.
"Eu perdi meu pai quando tinha dois anos. Estávamos no Acre. Minha mãe ficou viúva com quatro filhos pequenos. Era o mais novo. Ela ficou sem nada. Só me lembro da minha mãe trabalhando. Nunca reclamou. Ficou de luto até eu me formar."
Jatene é um inovador na medicina. Inventou uma cirurgia do coração, criou um coração-pulmão artificial. Aos 81 anos, faz cirurgias, atende no consultório, desenvolve projetos.
"Hoje estive na oficina mecânica do Dante Pazzanese trabalhando num ventrículo artificial. Fui à Politécnica para ver como fazer aquilo funcionar", relatou no dia da entrevista. Casado há 57 anos e pai de quatro filhos, ele resume: "Tudo o que faço me dá prazer".
Para a platéia da Santa Marcelina, na manhã de quarta retrasada, apresenta sua nova idéia –"uma revolução na saúde". Quer que os médicos que se preparam para a residência tenham que ficar um ou dois anos trabalhando com a população pobre. Seria um pré-requisito para a residência. Hoje, constata, os médicos não estão onde a população mais precisa. 
Jatene diz às mulheres de Itaquera esperar que seu projeto vingue, para que os médicos tenham "a consciência social que hoje não possuem". O auditório se entusiasma, vibra.
"Mas precisa de dinheiro para contratar esses médicos", não esquece de acrescentar.  

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