São Paulo, domingo, 25 de julho de 2010

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PESSOA FÍSICA

águas passadas

por Morris Kachani

ex-presidente da TV Cultura, Paulo Markun abre a caixa-preta de sua gestão na fundação e deixa o verbo rolar

Dívidas trabalhistas que precisariam de um aporte de R$ 150 milhões. Greve selvagem. Corpo mole de certas equipes, corporativismo, feudalismo, chame como quiser. Pressões políticas para demitir centenas e cortar custos. Ah, sim, administrar um conselho controlado pelo governo que mais parece a Academia Brasileira de Letras. Alguém se candidata?
Foi assim, sem ideia da encrenca e com uma experiência em gestão calcada apenas na chefia de equipes jornalísticas e na participação lateral nos bares e nas casas noturnas dos quais foi sócio, que o jornalista Paulo Markun aceitou, em fevereiro de 2007, o convite do então secretário da Cultura, João Sayad, para assumir a presidência da Fundação Padre Anchieta, cargo que ocupou até abril deste ano, quando foi substituído pelo próprio Sayad em um episódio constrangedor, que rendeu mágoas.
"Aquilo é um abacaxi, um trabalho para super-homem. Não estão nas mãos do presidente as mudanças. Dependem de um acordo entre sociedade, governo, mercado", desabafa para Serafina.
Quando recebeu o convite, levava uma vida confortável. Aos 54 anos, passava dois ou três dias em São Paulo entre a direção e a apresentação do programa "Roda Viva" e o resto do tempo escrevendo livros e produzindo documentários em sua casa, em Florianópolis, com vista para a praia de Santo Antônio de Lisboa.
Estava em sua segunda passagem pela TV Cultura. A primeira fora em meados de 1970, anos de chumbo, quando conheceu o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado. A amizade durou até o dia em que Vlado foi encontrado morto em sua cela nos porões da ditadura. Markun foi um ativo militante político, com passagens pelo PCB e pelo MDB.
Mas voltemos à presidência da Fundação Padre Anchieta. De cara, Markun cortou o que considerava serem privilégios da diretoria. "São procedimentos que não assimilo: motoristas, secretárias particulares." Data desse começo de gestão seu desentendimento com o secretário de Cultura e hoje presidente da instituição, João Sayad, que, aliás, revogou o ato, restituindo as exclusividades da direção.
O principal atrito era uma questão estratégica. João Sayad e José Serra, à época governador, tinham na TV Futura, mantida pela Fundação Roberto Marinho, um modelo a ser perseguido: uma emissora com orçamento diminuto e programação feita por produtoras independentes. A ideia soava boa, a questão era como implementá-la em uma TV com mais de 2.000 funcionários, muitos com mais de 20 anos de casa, e uma fábrica de programas paquidérmica. Por alto, seriam necessárias 600 demissões.
Markun ficou no meio-termo e visualizou na proposta uma tentativa do governo de diminuir o orçamento, hoje de R$ 80 milhões por ano, e de usar parte dele para recapear a Marginal, como brinca. "É um dilema histórico. Qualquer governo encara a Cultura como um item do orçamento. Se não tem vantagens políticas, para que mantê-la? Esse sempre foi o raciocínio predominante."

LITURGIA DO CARGO
À parte a desavença, Markun diz que Serra e Sayad cumpriram com as condições oferecidas antes de sua posse: carta branca e verba para montar equipe. "Eu não posso me queixar do Serra. É um político preparado, competente, cheio de ideias próprias. Mas, quando cobra, é de maneira rigorosa em cima de detalhes. Seu grau de obstinação é importante, mas falta jogo de cintura."
Quanto a Sayad: "É um ótimo administrador, embora seja difícil entendê-lo. Seu estilo é o de só olhar para os números, sem levar em conta o território em que pisa. Para se ter uma ideia, um dia, desconsolado com os problemas trabalhistas, perguntou: 'Poxa, não dá para fechar a Cultura e abrir outra TV educativa?'". Procurado pela reportagem da Folha, João Sayad não quis se manifestar.
Havia também o que, no jargão corporativo, é chamado de liturgia do cargo. Ao presidente cabe cortejar os 47 membros do Conselho Curador, assembleia que discute os rumos da administração. O problema é que ninguém assiste à TV Cultura, nem os conselheiros. É de notório conhecimento que, se dão palpites, é porque leram algo no jornal. "O Conselho é composto por gente boa e tem sua importância, mas as reuniões se perdiam em discussões bizantinas, pouco conectadas com a realidade, pois a maioria não tem intimidade com o veículo e a instituição", diz.
Sobre a atmosfera de trabalho nos corredores da emissora, um ex-funcionário brinca dizendo que, em um terço do tempo, as pessoas trabalham e, nos outros dois terços, ficam "colando a ponta do carpete". E também há áreas que não se entendem. "Era um embate: a ideia chegava à produção e parava", lembra Markun.
Esse é um drama muito sentido em uma área que é o coração da emissora –a operação, responsável pela captação da imagem, pela edição, pelo som, pela finalização. Até recentemente, era proibido carregar os carros com os equipamentos de filmagem com a antecedência necessária –o que acabava comprometendo a agilidade com atrasos de até uma hora. Isso sem contar que a maioria das equipes de operação só trabalha seis horas por dia. Como a emissora não tem dinheiro para hora extra, fica por isso mesmo.
Apesar das dificuldades, o balanço da gestão de Markun é positivo, especialmente em termos da receita, que cresceu aproximadamente 20% graças às ações que ele implementou, como TV digital, livros e prestações de serviços (os índices de audiência continuam apáticos e a programação não teve mudanças substanciais). Sair da presidência após três desgastantes anos que lhe deram mais cabelos brancos, teria sido um alívio, não fosse a maneira como as coisas se processaram.
No começo de abril, Serra procurou Markun para dizer que gostaria que ele continuasse. A partir daí, entra a boataria. Por um ato de vontade própria, Sayad teria decidido abrir mão da Secretaria da Cultura e assumir o posto. Tempos depois, Serra teria enviada um e-mail para Markun dizendo desconhecer a intenção de Sayad, o qual teria dito que fora convidado pelo governador Alberto Goldman. De toda forma, Markun recebeu a notícia de sua demissão do chefe da Casa Civil, Luiz Antonio Marrey, que tentou consertar o episódio convidando Markun a ocupar a presidência do Conselho: "É para o resto da vida", ouviu Markun, segundo conta.
O presidente do Conselho ganha R$ 18 mil por mês, 60% do que ganha o presidente-executivo e, segundo Markun, tem poucos compromissos. Ele recusou o convite e lembrou Marrey de que esse não é um cargo vitalício. Em férias no interior da França, Marrey não foi encontrado para comentar as declarações.
Apesar da pouca familiaridade com o meio TV, Sayad se cerca de bons profissionais. E, aos que o conhecem, tem surpreendido com rompantes de descontração e leveza, como em uma reunião quando teria brincado dizendo que "falta mulher pelada na grade da emissora". Se vai conseguir encaixar a TV Cultura nos moldes da Futura –e em que medida será positivo–, o tempo dirá.
Markun aproveita o tempo livre para se integrar a uma equipe de jovens talentos interneteiros empenhados em fazer militância na web. Recentemente, criaram o site SOS Alagoas para recolher doações para as vítimas das chuvas e desenvolveram uma ferramenta para fiscalizar as contas das prefeituras na web.
O jornalista também será comentarista político da Gazeta e fará perguntas a Serra e Dilma nos debates presidenciais. Detalhe: seu cartão de visitas atual estampa o logotipo de sua produtora, Revanche, escrito com o mesmo design da marca de boxe Everlast. "Tão brutal quanto minha entrada na presidência da Cultura foi a minha saída. Foi um rio que passou em minha vida."


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