São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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CAPA

OsGemeos compartilham seu universo particular

por IARA CREPALDI

MÃO DUPLA

Criados nas ruas do bairro do cambuci e impregnados pela cultura Hip Hop, os pioneiros do grafite no Brasil se transformam em um dos (dois) mais interessantes e internacionais artistas do país.

LADO A - artistas

Vagando entre o mundo da Lua e "Tritrez", seu universo particular, os irmãos conquistaram o mundo com seu exército de sonho

OsGemeos são patrimônio do Tesouro Nacional. Não oficialmente, mas os personagens amarelos, sua marca registrada, habitam hoje os mais variados cantos do planeta e são cobiçados por colecionadores que frequentam o jet set das artes no topo do império ocidental.

São também reconhecidos por qualquer paulistano que tenha reparado nos muros da cidade nos últimos 20 anos e por qualquer terráqueo minimamente interessado em arte –seja ela do tipo que for.

A chamada "street art" (arte de rua), no entanto, assim como as discussões sobre o grafite estar nos muros ou na galeria, são ideias cada vez mais distantes do trabalho atual dos irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, 35, que abrem hoje, dia 25 de outubro, na Faap, em São Paulo, a mostra "Vertigem".

Pioneiros do grafite nacional, é por habitarem tanto as ruas quanto as galerias que os irmãos têm opinião clara sobre a mistura das duas coisas. "Arte de rua tem de ser na rua. Não tem em outro lugar. Migrou para galeria ou museu não é mais arte de rua, mesmo que seja feita por um grafiteiro, com as mesmas técnicas usadas num muro. Nas ruas, a arte lida com a transformação, a transferência, o anonimato, o inesperado, as leis, a pressa, as pessoas que passam. No espaço fechado, tem curador, público, expectativa, tempo, permissão."
"Vertigem", portanto, não é exatamente uma mostra de arte de rua. Tampouco de grafite ou escultura, apesar de exibir os dois suportes. O que a dupla produz hoje não comporta classificações nem nomenclatura exata. São artistas. Do spray, da madeira, das lantejoulas. Da técnica e do autodidatismo. Da rua e do museu. Do hip hop, do samba, do maracatu. De São Paulo e do mundo.

"Nossa arte transcende ser contemplativa ou conceitual. É um pedaço do filme que passa nas nossas cabeças", dizem, sem que jamais um atropele a fala do outro. Otávio complementa o raciocínio iniciado por Gustavo, e vice-versa. Numa entrevista, fica praticamente impossível identificar quem diz o quê. "Eu confio no que ele fala, e ele confia no que eu falo. Ele é minha terapia, e eu sou a terapia dele. A gente não conversa muito. Só se olha e já sabe."

QUATRO MÃOS, O MESMO TRAÇO
A sintonia que hoje se reflete no processo criativo dos artistas-irmãos é a mesma que, na infância, causou espanto nos professores quando foram separados de classe por excesso de bagunça ou quando ambos ganharam um concurso ao fazerem, separados e simultaneamente, o mesmo desenho.

"A gente desenhava na mesma folha. Pegava o papel e ficava desenhando um monte de coisinhas bem pequeninhas, até completar a folha inteira", lembram.
Sempre foi assim. "De 93 a 95, entramos juntos numa espécie de 'autobusca'. Todo os dias, desenhávamos no quarto, na casa da nossa mãe. Montamos o espaço da maneira que queríamos para nos sentirmos bem lá dentro e todo dia a gente pintava à luz de velas, tomava um vinho, ficava ali 'na nossa' até criar o nosso próprio estilo", dizem.

Foi aí que a urbanidade extrema começou a dar espaço para um ecossistema mais matuto, retrato do Brasil profundo por excelência. Hoje, o estilo da dupla representa, ao mesmo tempo, o bairro paulistano do Cambuci, onde nasceram e foram criados, o interior do país e, em especial, o Nordeste –sem perder de vista a linhagem histórica de grafiteiros que ainda vê os trens do metrô nova-iorquino como algo mítico.

"A gente começou com amarelo e vermelho, queríamos que as pessoas vissem a cor e já soubessem que era nosso, além do traço. Quando começamos a pintar na rua é que passamos a descobrir São Paulo. Você vai ao Brás e tem nordestino, vai ao largo da Concórdia e tem toda a história do Nordeste ali, uma criança jogando pião, um cara tocando triângulo, você vai absorvendo essas informações e, sem querer, colocando no trabalho", diz Gustavo com emendas de Otávio.

Assim como o jazzista americano Sun Ra proclamou, décadas atrás, no disco "Space Is The Place", que por falta de voz na sociedade o espaço sideral seria o lugar para o povo negro, o submarino amarelo dos irmãos, povoado por figuras delicadas e detalhadas, emergiu mais por necessidade do que opção: "Esse negócio de morar em São Paulo... A gente teve que criar um mundo paralelo para poder fugir do caos". Mundo paralelo, para eles, não é força de expressão. "Quando estamos criando, nós nos conectamos com 'Tritrez', que é o nosso universo particular, lúdico, onde só tem coisas boas, é o nosso equilíbrio espiritual."

Além de pertecerem a "Tritrez", OsGemeos acreditam em Deus –mas não têm religião. "Deus colocou isso na nossa vida, a gente tem que ir até onde Ele quiser. Do contrário, ele não abre portas, não 'dá ideia' na nossa cabeça, não pinga as gotinhas, não coloca colírio nos nossos olhos."

TERCEIRA DIMENSÃO
Em 1999, quando participaram de uma exposição coletiva na Alemanha, é que começou a surgir a necessidade de dar às criaturas de "Tritrez" uma perspectiva tridimensional. Em 2006, a exposição "O Peixe que Comia Estrelas Cadentes", na galeria Fortes Vilaça, marcou a passagem da pintura para a escultura ao exibir instalações e objetos de grandes dimensões.
Foi nesse departamento que o irmão mais velho, Arnaldo Pandolfo, 45, entrou para somar. Ele é o Professor Pardal responsável por traduzir, em mecanismos funcionais e reais, as criaturas da dimensão dos caçulas. "A gente não olha isso aqui parado [Gustavo aponta para as obras em montagem na Faap], os bonecos estão conversando, a gente tá vendo a mulher piscar ali… Na nossa cabeça está mexendo, o peixe rodando", explicam.

Arnaldo é formado em engenharia mecânica, mas mantém um trabalho em escultura. "A gente tem as ideias, passa para o papel, senta com o Arnaldo e pergunta: 'como é que vamos executar esse negócio?'"
Os três não são os únicos artistas da família. A mãe, dona Margarida, de ascendência lituana, pinta e borda, literalmente. Eles tinham um tio que, segundo os dois, era um "gênio da pintura".

"O mais importante nisso é o amor. A gente trabalha com nossos irmãos [a irmã, Adriana, cuida da administração da carreira dos dois], confiamos neles e por isso nos sentimos confortáveis. Isso não tem dinheiro que pague."

Mas há quem pague, e bem, pelo trabalho da dupla. Eles são representados por duas galerias, a Fortes Vilaça, em São Paulo, e a Deitch Projects, em Nova York (a mesma de Keith Haring e Jean- Michel Basquiat). Segundo a Fortes Vilaça, não há nenhuma obra d'OsGemeos disponível no momento. "Tudo o que entra, sai, é alta rotatividade", diz a assessora Márcia de Moraes. Segundo ela, a galeria já vendeu 80 obras assinadas por eles.

Mas nenhum dos dois se sente à vontade com esse assunto. "O dinheiro realiza sonhos, dá estrutura, mas o mais legal de viver da arte não é a parte financeira, ter carro, casa própria. O melhor é poder apenas desenhar, respirar tinta, criar. Nós somos simples, não temos grandes sonhos de consumo, gostamos de viajar, de sair para jantar. Somos o tipo de pessoa que gosta de uma roupa só. A melhor calça é a mais suja de tinta."

LADO B
OS ARTISTAS

Desde pequenos, os meninos do Cambuci,
que viram sua arte florescer junto com
a cultura hip hop nos anos 80, interferiam nos objetos à sua volta

"Desmontar brinquedo, remontar... Nossa brincadeira já era isso que a gente faz aqui. Ganhávamos presentes dos nossos pais e tínhamos que ir no fogão, esquentar a faca, cortar a rodinha, colar de outro jeito, aí sim virava um carrinho, aí ficava bom."

Pautados sempre por esse estado de espírito, que, anos mais tarde, seria sintetizado por Chico Science como "diversão levada a sério", os irmãos viram as brincadeiras de rua se misturarem às praticas relacionadas com uma então emergente cultura urbana."A gente cresceu junto com o hip hop, que era muito forte na época [final dos anos 1980]. Existia um grupo chamado Fantastic Breakers, que se reunia na frente da nossa casa, no Cambuci. Nós começamos a dançar, dançar… Ficamos fanáticos pelo movimento, tipo 'é só nisso que a gente acredita na vida, dançar break, fazer rap, pintar grafite, esse é nosso mundo, e tudo mais que rola em volta não é legal'. Só isso era legal", lembram.

Naturalmente, acabaram chegando ao epicentro daquela energia, o principal ponto de encontro pra todos os b-boys, DJs, MCs e grafiteiros na segunda metade dos anos 1980: "Quando pisamos ali na (estação do metrô) São Bento, o primeiro cara que a gente viu foi o Thaíde. Ele estava de agasalho preto com listras amarelas e chapeuzinho preto", contam.

O mais longevo dos rappers surgidos na primeira geração ainda nem se arriscava ao microfone e tampouco sonhava em gravar um disco. Mas foi no encarte de "Pergunte A Quem Conhece", álbum de estreia de Thaíde e DJ Hum, que a alcunha dos Pandolfo acabou oficializada, em meio à quilométrica lista de agradecimentos. Como não se lembravam dos nomes completos dos irmãos, DJ Hum cravou "Os Gêmeos" entre os citados.

As memórias desse período trazem saudade, que transparece no tom de voz da dupla ao afirmar que o hip hop "perdeu aquela característica da rua, das batalhas de b-boy". "A gente pegou muito essa coisa de fazer por amor. Hoje, [o hip hop] dissipou um pouco, a galera quer se profissionalizar, viajar, fazer show. Mas, do mesmo jeito que a gente brincava na rua, fazia fogueira e estourava bombinha, crescemos junto com a cultura hip hop."

Há até poucos anos avessos a fotos e entrevistas, parecem um pouco mais acostumados ao alcance midiático de seu trabalho.

"Tem muita gente que hoje pode pensar e acreditar 'eu posso viver de arte'. Isso é legal, saber que o que você fez alimentou o sonho de outras pessoas. E não foi uma coisa que a gente almejou, aconteceu."

Mesmo assim, os dois se mostram muito mais relaxados com o gravador desligado, quando podem voltar a "Tritrez". "A gente diz muito mais pintando que falando. É fácil saberem quem nós somos, basta olhar o que a gente faz."

Colaborou Micheline Alves

TOP 6
Os sons que fazem a cabeça da dupla

ESTRANGEIROS
Lucky Dube (músico de reggae sul-africano)
Dead Can Dance (extinta banda australiana
de rock alternativo)
Dynamik Bass System (grupo
alemão de electrofunk)
Leonard Cohen (cantor canadense)
David Bowie (cantor inglês)
Led Zeppelin (banda de rock dos anos 1970)

BRASILEIROS
Siba & A Fuloresta (grupo pernambucano)
Chico Science & Nação Zumbi (banda
pernambucana criadora do mangue beat)
Damião Experiença (músico independente)
Racionais MC's (expoentes do rap nacional)
Geraldo Vandré (cantor e compositor
paraibano dos anos 1960)
Roberto Corrêa (violeiro mineiro)

A arte dos irmãos Pandolfo descrita por seis admiradores

"OsGemeos em São Paulo são como um instantâneo da paisagem urbana –estamos acostumados a conviver com o trabalho dos dois. Por isso, foi bem impressionante vê-los na Tate Modern. Você vê o espaço que deram para eles em Londres, onde o grafite é muito respeitado, e pensa: 'Os caras são realmente muito bons'."
Zeca Camargo, apresentador do "Fantástico" e colecionador de arte

"O trabalho deles aparece no filme que a Mostra produziu em 2004, 'Bem-Vindo a São Paulo'. Mas a ideia de convidá-los para assinar as artes do cartaz da 33ª Mostra veio neste ano, quando nos encontramos no estúdio do Bob Wolfenson para uma foto [que integrou ensaio na Serafina de janeiro]. Eles são um bom antídoto contra as monocromias da nossa cidade."
LEON CAKOFF, DIRETOR DA MOSTRA DE CINEMA DE SP

"Não há como olhar para as paredes que eles pintam e não se sentir transformado pela vivacidade, pelo vigor, pela identidade. Como toda obra de personalidade, divide opiniões.
Se fosse condizente com a normalidade, com o que se convencionou chamar bom gosto, as pessoas ficariam indiferentes. Eu acho muito impressionante."
MARCIA FORTES, GALERISTA

"Por mais que bebam da cultura hip hop, eles tiveram a coragem de romper com essa estética do grafite de Nova York e colocaram um traço brasileiro. São bons, criativos. E, mesmo fazendo sucesso pra caramba no mundo todo, sempre voltam para a casa deles, no Cambuci, enchem o carro velho de spray e vão fazer grafite na rua."
JOÃO WAINER, FOTÓGRAFO
e diretor do
documentário "pixo"

"A rua e o grafite deram a base para eles se desenvolverem. É muito legal acompanhar a evolução dos dois. O mesmo padrão que eles criam na rua, por exemplo, usaram no Museu de Arte Brasileira na Faap. Isso é muito genuíno e mostra que eles sempre enxergaram o muro como uma tela muito mais profunda."
Renata Simões, apresentadora do programa "Urbano", do Multishow

"Eles são muito bons e representam muito bem as coisas do Brasil. Desde que começaram a implantar as características, os personagens nordestinos, as cores fortes, as pessoas começaram a enxergar grafite de outra forma. Tem muita força. E a projeção deles nos ajuda. Eles abriram muitas portas e continuam abrindo."
ALEX HORNEST (ONESTO), GRAFITEIRO

GRAFITE ROCOCÓ

CRÍTICA DO "NEW YORK TIMES" RESENHA MURO PINTADO PELOS ARTISTAS

Marco zero do grafite mundial, Nova York recebeu há três meses um mural de cinco metros de altura por 15 metros de comprimento pintado pela dupla. A crítica de arte do "New York Times" Roberta Smith deu seu parecer sobre o trabalho em texto publicado pelo jornal americano em agosto, do qual Serafina destaca o trecho a seguir:

"Com sua primeira obra pública em Manhattan, os irmãos brasileiros Otávio e Gustavo Pandolfo trazem a arte do grafite para sua fase rococó. Seu mural épico fantástico é, claramente, um sonho de felicidade com um acorde subjacente de melancolia. Tudo nele é elegantemente detalhado, em fina sintonia, um brilho de técnica que segura o olhar, sem esforço, por bastante tempo. As linhas pretas delicadas que costuram a imagem inteira como poeira chuviscada de carvão vegetal são frutos da pintura talentosa com latinha de spray. A cor prismática de tudo o mais tem uma saturação incomum na arte do grafite (...). E a aparência das imagens é de outro mundo, apesar de não serem. (...) Mas os metrôs de Nova York e as favelas de São Paulo estão lá, e os personagens usam roupas brilhantemente modeladas (graças à reprodução engenhosa por meio de stencil) que parecem verdadeiramente brasileiras."

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