São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009 |
| |||
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MODA Aristocracia dos perfumespor ALCINO LEITE NETO, enviado especial a Paris e Orphin (França) A tradicional Guerlain, de 180 anos, contrata pela primeira vez como perfumista principal um expert sem laços familiares com a dinastia dos mais famosos "narizes" da França Em 1828, quando os brasileiros ainda completavam seis anos de independência dos portugueses, foi aberta em Paris a primeira perfumaria da família Guerlain. Em 1889, ano em que seria proclamada a República no Brasil, Aimé Guerlain criou Jicky, uma revolução na perfumaria, ao reunir pela primeira vez essências naturais e sintéticas (no caso, a cumarina e a vanilina). Por isso, é considerado o primeiro perfume moderno. Em 2008, a Guerlain comemorou os seus 180 anos. Na mesma época, deu uma cartada audaciosa e inovadora para a tradicional "maison": contratou para o cargo principal de perfumista (ou "nariz", no jargão do ramo) uma pessoa que não pertence à família Guerlain, o suíço Thierry Wasser, 47. Desde a sua fundação até pouco tempo, os perfumistas eram sempre membros da mesma dinastia: Pierre-François-Pascal Guerlain (o fundador) foi sucedido por Aimé Guerlain, que foi substituído Jacques, que passou o cetro para Jean-Paul Guerlain, o criador das principais fragrâncias da empresa entre o final dos anos 1950 e a década de 90. Em 1994, a família vendeu a perfumaria para o grupo LVMH (dono da Louis Vuitton e da Kenzo, entre outros vários negócios). Jean-Paul, 71, permanece como conselheiro da empresa, que inclui duas fábricas, uma na cidade de Chartres, onde são feitos os produtos de beleza, outra em Orphin, onde são produzidos os perfumes -a qual Serafina visitou (leia na pág. 43). Thierry Wasser tem uma grande responsabilidade sobre suas costas. Ele precisa ser fiel às tradições da marca e, ao mesmo tempo, inventar produtos que se imponham ao gosto contemporâneo e garantam a prevalência da Guerlain na perfumaria mundial, enfrentando a concorrência de uma miríade de fragrâncias que chegam às prateleiras todo mês (leia entrevista na pág. 42). A Guerlain não é apenas uma das perfumarias mais antigas do planeta como também a mais sofisticada em seu ramo. Entre experts, várias das fragrâncias que inventou são tidas como obras-primas. Para se ter ideia, um livro recente, "Perfumes - The Guide" (Viking, 2008), do conceituado especialista britânico Luca Turin, coloca quatro perfumes da Guerlain entre os dez maiores já criados para mulheres: Après l'Ondée (de 1906), L'Heure Bleue (1912), Mitsouko (1919) e Shalimar (1925). O sucesso dessa perfumaria começa, no entanto, com Eau de Cologne Impériale, criada em 1853 por Pierre-François-Pascal Guerlain para a imperatriz Eugénie, mulher de Napoleão 3º. A fragrância agradou tanto que ele recebeu o título de "perfumista oficial de Sua Majestade". A fama de Guerlain se espalhou pelas casas aristocráticas da Europa e, dali, para todo canto. Além de ter um acentuado tino empresarial, Pierre-François-Pascal era químico de formação e cultivava o gosto por invenções originais. Essa herança experimental foi importante também nos produtos de beleza da Guerlain: a empresa é considerada a primeira a criar um batom de bastão e uma das pioneiras na produção de pós compactos. O batom, de cor vermelha, chamado Ne m'Oubliez Pas (não me esqueça), apareceu em 1870, a partir da sugestão de um produtor de velas, parente dos Guerlain, que acrescentaram a cor (vermelha) e o toque perfumado. A marca também saiu na frente na criação de institutos de beleza, inaugurando o seu spa em 1939, num elegante prédio da avenida Champs Elysées, que servia antes de residência à família Guerlain. O instituto funciona até hoje, no terceiro piso do prédio classificado como monumento histórico pelo patrimônio francês. No térreo, fica a loja mais emblemática da marca -que tem 11 estabelecimentos em Paris e nove no restante do mundo. Nessas lojas, é possível encomendar um perfume exclusivo da Guerlain por €35 mil (cerca de R$ 100 mil). Nos últimos anos, sob os cuidados de Jean-Paul Guerlain, algumas fragrâncias notáveis vieram se juntar à história da "maison", como Chamade (1969), Naehma (1979), Samsara (1989) e Insolence (2006). O último lançamento da marca foi La Petite Robe Noir (2009), que flerta com um clássico da moda, o pretinho básico, vestido que, aliás, ilustra o frasco do perfume. Para o lançamento da fragrância, a loja da Champs Elysées foi decorada no início do ano com algumas versões dessa roupa feitas por estilistas célebres, como Chanel e Christian Dior. O novo perfume foi recebido com ressalvas por alguns experts em perfumaria, que viram na sua apresentação um flerte ostensivo com o lado pop da cultura fashion, mais uma das concessões que essa perfumaria sofisticada estaria fazendo à vulgaridade atual. Especialistas também denunciam a mudança nas fórmulas dos perfumes tradicionais -o que a empresa nega, dizendo que foram substituídos apenas pouquíssimos produtos hoje tidos como antiecológicos ou prejudiciais à saúde. Como se vê, nem o inefável mundo dos aromas escapa às polêmicas. Enquanto isso, a aristocrática Guerlain vai seguindo, impassível, rumo aos seus 200 anos. O novo "nariz" da GuerlainO suíço Thierry Wasser, que nunca usa perfume no trabalho, ocupa um dos postos mais ambicionados pelos perfumistas de todo o mundo Tornar-se o perfumista-chefe da Guerlain é o sonho de dez entre dez especialistas na área. O suíço Thierry Wasser realizou esse sonho -desde o último ano, ele é o novo "nariz" da conceituada perfumaria. Nascido em Lausanne, Wasser é formado em botânica e trabalhou em duas importantes indústrias de perfume, a Givaudan e a Firmenich. Criou algumas fragrâncias famosas, como Dior Addict e Hypnôse (Lancôme). Guerlain pour Homme é seu primeiro perfume para a "maison" após a contratação. O próximo, para mulheres, será lançado no outono europeu, mas o nome ainda é segredo. A entrevista a seguir foi feita por Serafina no último mês, em Paris. Serafina - Como nasce um perfume, do ponto de vista criativo? Serafina - O sr. utilizou os mesmos materiais, como o rum e a hortelã? Serafina - Que perfume o sr. está desenvolvendo agora para a Guerlain? Serafina - Quando o sr. não está criando um perfume, qual é o seu trabalho na empresa? Serafina - Para onde o sr. viaja? Serafina - Por que não comprar as essências na França? Serafina - A Guerlain ainda utiliza essências retiradas de animais? Serafina - Então, o perfume Jicky já não possui mais o ingrediente retirado da glândula anal da civeta? Serafina - Quer dizer que a Guerlain substituiu a essência retirada da civeta por uma molécula sintética? Serafina - Como distinguir um perfume bom de um ruim? Serafina - Quer dizer que não podemos dizer que um perfume é um ruim, como se diz que um vinho é inferior? Serafina - O sr. usa perfumes? Linha de produção A cidade de Orphin fica a 60 km de Paris. Em seus arredores, numa região encostada na floresta de Rambouillet, fica a fábrica de perfumes da Guerlain. Serafina visitou o local para ver como são produzidas as fragrâncias da marca. A primeira coisa que espanta no local é o estilo arquitetônico. Quando se trata da Guerlain, muita coisa remete ao passado. Não é o caso da fábrica de Orphin, de 10,5 m2, que tem um desenho contemporâneo e funcional. Durante grande parte do processo de produção, o trabalho é principalmente das máquinas. As essências são retiradas de torneiras, reunidas ao álcool em tanques e depois conduzidas através de tubos pelo teto até grandes cubas de metal, onde ficam armazenadas. Tem-se a sensação de que a Guerlain está fabricando qualquer produto químico, e não seus preciosos perfumes. A diferença é que aromas suaves perfumam por toda parte a fábrica. O trabalho humano se tornará mais evidente depois que as fragrâncias forem envasadas, quando funcionários retiram os produtos que a máquina não fez corretamente e embalam os demais em caixas. A maioria dos produtos é água de perfume, que tem 15% de concentração de essências -sendo o restante composto de álcool. Os perfumes propriamente ditos, com 30% de concentração, são apenas 10% da produção total. Esses perfumes são envasados em frascos menores, porque, diz Thierry Wasser, eles são "mais íntimos e, portanto, usados em menor quantidade". Como são também os produtos mais nobres, seus vidros recebem um acabamento VIP, com fitas e laços feitos à mão, um a um. Uma funcionária consegue "enlaçar" e embalar apenas 150 perfumes por dia. Ver o desfile das centenas de vidros dos míticos Mitsouko ou Shalimar na esteira é outra coisa surpreendente. Nas lojas, cada perfume parece único, raro. Na fábrica em Orphin, o fetiche se dissolve na intensa linha de produção -cerca de 40 mil frascos por dia. Texto Anterior: FINO: Em Milão, o cartola Leonardo continua lindo, por Eliane Trindade Próximo Texto: QUE FIM LEVOU: O reencontro do "Castelo Rá-Tim-Bum", por Cláudia Dallaverde Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress. |