São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANAGRAMA

Lygia Fagundes Telles revê seus livros e sua vida

por ANA RIBEIRO

Lygia Fagundes Telles vive sozinha em São Paulo, cercada de porta-retratos. Nas fotos estão seus pais, os dois maridos e o único filho, todos mortos, e as duas netas, na casa dos 20 anos, Lúcia e Margarida. "Essa é a minha raça", diz ela. "Seres que eu amei e que se foram estão de certo modo em mim."

Não costumava ler meus livros depois de escritos. Agora estou lendo, é preciso fazer a revisão de todos, e encontro coisas que deveriam ser canceladas ou que gostaria de adicionar. Resisto ao desejo de mudar, o livro pertence à época em que foi escrito. Mas que dá vontade, dá. Estou tirando muitas vírgulas, eu não gosto de vírgulas.

Uma coisa muito boa para mim na mudança ortográfica foi a volta do "y" O Lygia do meu nome é com "ipsilon". Minha mãe leu "Quo Vadis", cujos heróis são Lygia e Vinicius, antes de eu nascer. Quando conheci o Vinicius de Moraes, ele me disse que, caso nascesse mulher, ele se chamaria Lygia. Eu falei: "Meu Deus, minha mãe leu o mesmo livro!" "Quo vadis?" quer dizer "onde vais?" em latim.

Em um tempo remotíssimo, quando entrei na faculdade de direito no largo São Francisco, as mulheres eram minoria absoluta. Éramos seis ou sete mocinhas assustadas, virgens, e aquele monte de homens. Um deles me perguntou: "O que você veio fazer aqui? Casar?" Eu respondi: "Também."

Acho que a angústia dos meus escritos reflete as lembranças da minha juventude. Meu pai se separou da minha mãe numa época em que separações eram escandalosas. Ele era jogador e perdeu muito dinheiro; ficamos mamãe e eu, que era a caçula, na maior dureza. Além de direito me formei em educação física, porque pensava que seria professora ou advogada. Mas e a vocação? Atendi ao meu chamado e fui ser escritora. Rende? Não. Glória? Num país igual ao nosso, a glória é muito frágil.

Foi duríssimo lidar com as perdas. Quase morri junto com meu filho. Fiz um pouco de análise, mas reagi a esse negócio de tomar pílulas. A perda não desaparece, mas com o trabalho, meus amigos e fé em Deus, foi atenuando. Os personagens foram nascendo e fui me sentindo feliz por ser habitada por eles. Eles exigem atenção, me empolgam e me habitam no momento em que estou escrevendo.

Não concordo com esse pavor da mulher com o envelhecimento. Não gosto de envelhecer, não tem nenhuma compensação, mas para você não envelhecer tem de morrer jovem; eu não queria morrer jovem. É uma questão da vida, não adianta arrancar os cabelos. É preciso cumprir a trajetória que me foi destinada até o meu fim.

Quando vejo o Kaká, eu penso: "Nossa, como ele é bonito!" Na próxima "encadernação", queria ser jogador de futebol, para ganhar os milhões que eles ganham e ter a cara do Kaká. Porque ser imortal, como dizia Olavo Bilac, é não ter onde cair morto.

Clarice Lispector me dizia sempre para fechar a cara diante das câmeras. Não sorria, ela dizia, ou não nos levam a sério. Eu temia parecer brava, coisa que não sou, e ela me dizia: "Veja como nas fotos eu estou sempre de cara fechada."

Texto Anterior: FINA: Céu vai à Jamaica e volta com o melhor disco do ano
Próximo Texto: SÉRGIO DÁVILA: Quando as coisas apertam, todos fogem para o Brasil
Índice


Clique aqui Para deixar comentários e sugestões Para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress.