São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2010

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NO RIO

Mutante Carioca

por HELOISA SEIXAS

A Lapa é um corpo vivo, que contém todos os tempos e ritmos do Rio

Andar a pé pelas ruas da Lapa à noite é como assistir a uma cena de teatro musical, daquelas em que a escadaria vai se acendendo à medida que o protagonista pisa os degraus. A cada casarão por que se passa, surgem novos detalhes realçados pela iluminação indireta: são sacadas de ferro trabalhado, volteios art nouveau, flores de estuque, anjos emoldurando janelas, portais de granito olho de sapo, portas de pinho-de-riga, datas gravadas dentro de brasões: 1900, 1908, 1919. Vistos assim de perto, da calçada, os casarões da Lapa são uma ode ao passado, esse passado quase sempre tão maltratado por nós, brasileiros sem memória.
Todos os tempos estão contidos ali, naquele casario tão antigo, repleto de histórias de amores e farras, e que, hoje, vive cheio de jovens. A Lapa parece um corpo vivo, que não para de surpreender. Um espaço urbano que, durante anos, ficou abandonado pelo poder público e foi revitalizado de forma espontânea a partir de manifestações culturais já é por si só uma coisa sensacional. Mas o que mais fascina na Lapa são suas mutações. Não há uma vez em que eu vá lá que não encontre uma novidade.
Casas de show, restaurantes, bares, sinucas, antiquários, as coisas vão aparecendo como cogumelos depois da chuva. O que na semana anterior era uma quase ruína de repente surge na sua frente como um bar sem telhado, onde a garotada se senta para tomar chope olhando o céu. O velho hotel de solteiros virou centro cultural. A parede pichada foi descascada, deixando à mostra a beleza de velhas pedras, presas uma à outra com óleo de baleia.
Outro sinal dessa vivacidade da Lapa é a diversidade musical. Faz tempo que ali tem muito mais do que samba. Até ritmos mais agressivos, como o funk ou a música eletrônica, encontram espaço no bairro –o mesmo acontece com o jazz e a bossa nova. Há duas ou três semanas, assisti a um show sensacional do trompetista Claudio Roditi, um brasileiro radicado nos Estados Unidos que já tocou ao lado de muitos monstros sagrados do jazz e que faz parte da United Nations Orchestra de Dizzy Gillespie. O show foi numa casa chamada Lapinha, no alto de um sobrado de porta estreita que mal se enxerga da rua. Quem é grande habitué da casa é a cantora Leny Andrade, que dá shows e canjas no lugar quando não está se apresentando no Blue Note, em Nova York. O nome da casa, Lapinha, é uma homenagem ao bairro mais boêmio do Rio e também a uma cantora lírica brasileira, Joaquina Maria da Conceição Lapa, cujo apelido era Lapinha e que fez muito sucesso em Portugal no século 18. Um piano-bar onde se toca o mais poderoso samba-jazz ter seu nome em homenagem a uma cantora lírica dá bem a medida da maravilhosa miscelânea musical que é a Lapa.
Agora, a grande novidade dos últimos tempos na Lapa foi o fechamento ao trânsito nos fins de semana. Toda sexta e todo sábado, das 22h às 5h, só é possível entrar a pé no coração do bairro, o que inclui Mem de Sá, Riachuelo e outras dez ruas em torno dos Arcos. Isso fez toda a diferença do mundo.
O asfalto pulula de gente, parece formigueiro. Quem sai de uma casa de shows de madrugada –como aconteceu comigo no dia da apresentação do Roditi no Lapinha– e se depara com aquele espetáculo só pode pensar que chegou o Carnaval.

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