São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

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CAPA

Cara de plástico

por TETÉ RIBEIRO, de NOVA YORK

Em seu estúdio em Nova York, o mais importante designer da atualidade diz À SERAFINA que faz arte comercial, que São Paulo é linda e que o conceito do futuro é a imaterialização

Ao contrário do que escreveu Caetano Veloso, de perto Karim Rashid é bem mais normal. Quer dizer, tão normal quanto um magrelo de 1,93 m que se veste quase só de branco e rosa e tem os dois braços cheios de tatuagens pode ser. Mas, certamente, mais normal do que nestas fotos. Ele toma conta de sua imagem pública e faz questão de ser fotografado com suas próprias roupas e acessórios. No dia-a-dia também é assim. Claro que ele não tem um "personal stylist" nem nada disso, mas, com a barba por fazer, uma calça rosa bem clarinha com cara de usada, camisa pólo de malha rosa-bebê com um fio cor de vinho na gola e uma camiseta branca por baixo, ele só parece um homem altíssimo e esguio que acordou de bom humor e se vestiu de acordo com o que sentia.

Nosso encontro aconteceu em seu estúdio, entre o Chelsea e o Meatpacking District, em Nova York, numa terça-feira do comecinho do outono norte-americano. Fica em um antigo estábulo abandonado que ele comprou e reformou para abrigar seu local de trabalho no térreo, salas de reunião e depósito no subsolo e sua casa no andar de cima. A única sala fechada é a dele, lá no fundo. No resto do espaço estão os outros 18 designers de seu time, que vêm de lugares como Holanda, Coréia, Japão, Itália, India, EUA e Brasil. A brasileira é Camila Tariki, uma arquiteta recém-formada de São Paulo que chegou a Nova York no dia 10 de setembro de 2001 -um dia antes do ataque terrorista- e nunca mais foi embora.

Além de fazer parte do time de designers, ela é uma peça-chave na comunicação dele com seus clientes brasileiros, como a marca de sandálias Melissa, a de sutiã Hope, a revista Moda, desta Folha, para a qual ele fez o projeto gráfico, e o Instituto Tomie Ohtake, que exibe desde a última quinta-feira sua retrospectiva, a primeira exposição do artista no país. Entre os clientes internacionais estão Prada, Issey Miyake, Kenzo, Estée Lauder, Carolina Herrera, Ralph Lauren e Yves Saint Laurent, entre muitos outros, espalhados no mundo inteiro.

A conversa durou uma hora e meia e, apesar de ter ido preparada com um caderninho cheio de perguntas, não cheguei nem a tirá-lo da bolsa. Karim é bom de conversa, adora falar sobre seu trabalho e sua visão de mundo, e faz isso com a mesma paixão e determinação com que desenha um objeto para um cliente "high profile". Saio da entrevista pensando que ele deve ter sido um ótimo professor, atividade que exerceu durante dez anos, enquanto ainda não vivia do que criava.

A conversa durou uma hora e meia e, apesar de ter ido preparada com um caderninho cheio de perguntas, não cheguei nem a tirá-lo da bolsa. Karim é bom de conversa, adora falar sobre seu trabalho e sua visão de mundo, e faz isso com a mesma paixão e determinação com que desenha um objeto para um cliente "high profile". Saio da entrevista pensando que ele deve ter sido um ótimo professor, atividade que exerceu durante dez anos, enquanto ainda não vivia do que criava.

Casou-se há um mês com Ivana Puric, uma engenheira química que Karim Rashid conheceu na Design Week (semana de design) em Belgrado, na Sérvia, há dois anos. Este é seu segundo casamento -ele foi casado por dez anos com uma artista digital.

Karim nasceu no Cairo, Egito, país natal de seu pai, em 1960. Saiu de lá com pouco mais de um ano e se mudou para a Inglaterra, país natal de sua mãe. Ainda na infância, foi morar com a família em Toronto, no Canadá, e lá passou a adolescência e parte da juventude. Depois de uma temporada em Milão ("muito italiano para mim", disse), outra em Paris ("francês demais para o meu gosto"), estabeleceu-se em Nova York, cidade em que acredita que seu trabalho não é muito apreciado. Mas é onde sua filosofia de vida mais se encaixa. Karim sonha com um mundo sem tradições nem rituais, sem religião nem preconceitos. E também sem celulares nem passaportes. "Que maravilha seria poder desenhar roupas sem bolsos. Por que a gente carrega tanta coisa o tempo inteiro?"

A seguir, Karim em pílulas.

São Paulo
Já fui a São Paulo umas dez vezes, sempre a trabalho. Conheci o Rio e Belo Horizonte também. São Paulo me lembra Nova York nos anos 60 e 70. Acho São Paulo linda. Por que as cidades devem ser limpinhas? A impressão que eu tenho da arquitetura de SP é que houve um boom de criatividade nos anos 60 e 70, mas nos anos 90 começaram a ser construídos uns prédios com essa arquitetura americanizada, neo-clássica, que eu acho vergonhosa. É uma pena, porque acho que a sensibilidade dos brasileiros é muito mais moderna e interessante do que isso.

Plástico
Não acho que a gente conseguiria existir no mundo de hoje sem os polímeros (composto que é a matéria-prima do plástico). Em qualquer hospital, 80% de tudo o que se usa é baseado em polímeros, do látex aos instrumentos médicos e até os órgãos artificiais. É um fenômeno incrível. ?O problema é que no processo de desenvolvimento dos polímeros acabamos produzindo alguns que são muito ruins para o meio ambiente. Agora que sabemos quais são, não devemos usá-?los mais. Nenhum é biodegra-?dável, mas eles são recicláveis. ?Como designer, não sinto a menor culpa de criar um objeto de plástico, isso é algo que as indústrias de plástico têm de sentir e fazer alguma coisa a respeito.

Design
O que eu faço é uma arte comercial, afinal, os clientes me procuram porque querem ganhar dinheiro, ou estabelecer uma marca, ou sei lá. Considero-me mais um artista do que um designer na maior parte do tempo. Para ser simplesmente um designer, tem de se deixar a arte um pouco de lado. O problema é que o design ficou muito parecido com a moda, algo cíclico, de estações. E uma coisa não tem nada a ver com a outra. Design tem a ver com as formas do mundo contemporâneo e com apontar como vai ser o futuro. Se você entrar nessa paranóia de criar desenhos que mudam a cada estação, uma hora vai cair na armadilha de olhar para trás e fazer um troço rococó ou um sofá florido, essas coisas medonhas.

Ovóide
Quero que meus desenhos sejam mais naturais, orgânicos. Os seres humanos são cheios de curvas, nós somos bem assimétricos até. Não existe uma linha reta na natureza, então faz sentido para mim que os objetos sejam arredondados. Deveria ser assim na arquitetura também, é estranho como a gente vive em lugares quadrados. As casas são como caixas, e os móveis têm ângulos retos que são como caixas menores dentro de uma caixa maior. Nós criamos um mundo cartesiano que não nos serve de verdade, é quase oposto à nossa natureza.

Robôs
Não tenho dúvida de que no minuto em que você começar a trabalhar como um robô será substiuído por um robô. Ainda há muita desconfiança em relação à tecnologia, como se o risco de ser substituído por uma máquina fosse real. Veja o caso dos EUA: 30 anos atrás, o país tinha 70% mais trabalhos feitos à mão, mas o desemprego era bem maior. Esses trabalhadores foram substituídos, mas a sociedade criou novos empregos que só as pessoas podem fazer. Há mais de 6.000 bibliotecárias trabalhando no Google. Eu preferia ser uma bibliotecária que precisa encontrar todos os links possíveis para uma palavra como creme, por exemplo, do que trabalhar em uma fábrica fazendo um movimento repetitivo. Com mais gente sendo obrigada a pensar, em vez de simplesmente montar ou fazer, o mundo fica muito mais interessante.

Sem nada, pelo mundo
Na era em que vivemos a coisa mais interessante que está por vir é a imaterialização. Seria fantástico poder andar pelo mundo sem carregar nada, nem relógio, nem telefone, nem laptop, nem passaporte. A liberdade verdadeira seria poder usar roupas sem bolsos. Dinheiro, moedas, chaves, é tudo tão antigo e ultrapassado. É um absurdo essas notas caindo aos pedaços que a gente carrega. Adoraria que na hora de entrar em um país diferente a gente pudesse usar a impressão digital, e só.

Outros artistas
Passei a vida inteira indo a museus, galerias e vernissages. Mas uns três ou quatro anos atrás eu decidi que não queria mais ver o trabalho de ninguém. Não é por arrogância, tenho certeza de que há muitos trabalhos que eu teria prazer em conhecer, mas, neste momento, prefiro me concentrar no meu próprio. Tem umas idéias que você vê pelo caminho, que ficam marcadas no seu inconsciente e, às vezes, você acha que está criando uma peça original mas só está se lembrando de uma coisa que viu em algum lugar. Não vejo nem revistas de arquitetura.

Minha casa
Meu apartamento é a minha cara, 90% dos objetos foram criados por mim. É quase tudo contemporâneo, não tem nada que tenha sido criado antes de eu nascer. Não me interesso, não assisto nem a filmes dos anos 50. Não me inspira, não me diz nada. Eu sou um produto da minha era, fui criança nos anos 60 e 70 e quero viver nesse momento, a vida me interessa enquanto eu estou aqui.

Tatuagens
Tenho 14 tatuagens, cada uma significa uma cidade importante para mim. Tenho São Francisco, Milão, Tóquio, Londres, Nova York, Seul. São Paulo não está situada no meu corpo ainda, mas está na minha lista. Estou pensando em fazer em São Paulo mesmo, outubro é sempre o mês em que faço as tatuagens. Eu é que faço o desenho, crio um símbolo para cada cidade, como se fosse uma língua que só eu falo, então tatuo.

Tradição, família e propriedade
Sou filho de um egípcio que abandonou a família com uma inglesa órfã. E fui criado em Toronto, uma cidade cheia de imigrantes. Não me sinto ligado às minhas raízes, nem à britânica nem à egípcia, mas também não sou canadense. Acho que isso é uma forma de liberdade, não ter uma herança cultural ou tradições muito implantadas. É a mistura das coisas que cria uma sociedade contemporânea. Os ri-tuais só nos seguram. E muitas vezes a gente nem sabe mais por que mantém uma tradição que não tem nada a ver com a realidade. As pessoas se casam na igreja sem acreditar em nada daquilo, comemoram o Natal, a Páscoa. Para que serve tudo isso? A gente tem que ser mais conectado com o nosso tempo, mais livre do passado.

Um rebelde de branco e rosa
Até o ano 2000, Karim Rashid se vestia quase só de preto. Não havia nenhuma filosofia por trás, apenas a inércia de não pensar no assunto e adotar o que ele considerava ser o uniforme de um arquiteto ou urbanista. "Usar preto é muito fácil", disse ele. Assim que mudou o milênio, resolveu mudar todo o guarda-roupa. Doou tudo o que tinha, sem exceção, e começou a comprar roupas novas. No lugar do preto, entrou o branco. "Amo a cor branca por várias razões. Faz-me sentir otimista e dá uma sensação de liberdade. Me sinto holístico, puro, de cabeça aberta", diz ele. E, depois, o rosa. "Rosa é o meu branco superotimista. É uma cor cheia de energia positiva, interessante e também funciona como uma pequena provocação ao mundo masculino que domina a paisagem urbana."

Com quase tudo branco e rosa, Karim começou a introduzir alguns tons de cinza, que ele chama de prateado, alguns amarelos, que ele chama de dourado e, de vez em quando, uma peça laranja ou verde-limão, para quando ele precisa de um tom que represente sua ansiedade. Mas não foram só as cores do guarda-roupa que passarm por um "extreme make-over". As regras também. Desde que atingiu o que considera o número ideal de peças, toda vez que compra uma nova, doa uma antiga. "Sou muito disciplinado", explica.

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