São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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HISTÓRIA VIVA

Mikhail Gorbatchov faz valer sua palavra em palestras

por GINNY DOUGARY, DE LONDRES

O HOMEM QUE MUDOU O MUNDO

Duas décadas depois de suas reformas levarem à queda do Muro de Berlim e à dissolução da ex-União Soviética, Gorbatchov ainda frequenta o palco global

Mikhail Gorbatchov tem quase 80 anos e, quando fala, as pessoas continuam prestando atenção, especialmente (ou talvez exclusivamente) fora de seu país –e isso se aplica ao 44º presidente dos EUA. O primeiro e último presidente da ex-União Soviética fala sobre seu encontro com Barack Obama durante o período de lua-de-mel extensa desse último com seu país. Gorbatchov lhe disse: "Eu o felicito porque, dois meses após a eleição, sua popularidade estava em alta, e ainda hoje está’. Ele me olhou e disse: 'Espere só, ela vai cair’". Gorbatchov solta uma gargalhada. "Gostei de ele ter dito isso."

O homem que estava determinado a modernizar a ex-União Soviética por meio da glasnost e da perestroika (abertura política e reestruturação econômica), que por fim levaram a URSS ao colapso e transformaram o resto do mundo, hoje é muito procurado para dar palestras nos Estados Unidos. Ele se recorda de uma em particular, há três anos, durante a administração de George Bush, quando lhe perguntaram: "O que o senhor recomendaria aos EUA, agora que estamos em uma situação difícil?". Gorbatchov se lembra de sua resposta. "Eu disse àqueles americanos: 'Vocês tiveram a euforia da vitória, de o Ocidente ter vencido a Guerra Fria. Pensaram que não precisavam mudar nada. Mas estão percebendo que foi um erro. Não lhes darei um menu ou cronograma de transformações, mas acredito que os EUA precisam de sua própria perestroika’", conta. "A platéia de cerca de 10 mil pessoas me ovacionou em pé e eu disse ao meu tradutor: 'Há alguma coisa acontecendo na América’."

GORBY

Gorbatchov pode ser o produto favorito exportado pela Rússia, mas o desejo de transformá-lo em um tesouro internacional simpático e queridinho –até que ponto, vale indagar, pode ser rígido um homem que tolera seu apelido universal, "Gorby"?– não condiz com a realidade. Ele fala em uma série de discursos e não tolera interrupções, o que significa que nossa entrevista é recheada de apartes impacientes: "Ainda não terminei" ou "Vou dizer algo primeiro e depois responderei à pergunta".

É difícil saber se é Gorbatchov ou seu intérprete o responsável pelo tom ocasionalmente brusco. Em dado momento, quando digo que, se ele quiser criticar os britânicos além dos americanos, pode fazê-lo, porque eu suportarei, sua resposta soa realmente rude: "E daí? Estou certo de que você encontraria críticas a fazer à Rússia, por isso serei muito franco com você".

Pergunto qual foi o momento que lhe proporcionou mais orgulho na vida, e ele diz "o orgulho não é realmente meu sentimento". Mas então prossegue com um discurso tão longo, cobrindo o que parece ser toda a história do século 20, que eu devo ter transmitido meu sentimento de desespero (talvez o fato de ter apoiado a cabeça nas duas mãos me tenha traído).

Tenho tantas perguntas, mas apenas uma hora para fazê-las. Uma tentativa de demovê-lo, dizendo que é uma figura histórica, fracassa –"não me relegue à história"–, mas o faz sorrir. Digo que me refiro à história viva. "OK, se for história viva, aceito." Mais tarde, ele diz: "Você sabe, Tchecov disse que devemos falar sucintamente, mas...". "Talvez o senhor seja mais como Tolstói." É minha tentativa de fazer uma piada russa, mas não arranca sorrisos.

ESPLENDOR CZARISTA

Gorbatchov critica "a doença das classes governantes e dos beneficiários do sistema anterior, responsáveis pela crise econômica global" sem meias palavras. "A sociedade não deveria ser baseada no hiperconsumo. Esses iates de milionários que lotam os mares... eles ficaram tão ricos que violaram certas normas de moral", diz.

Seu amigo Alexander Lebedev, ex-espião da KGB que se apaixonou por Londres quando foi enviado para trabalhar na embaixada russa naquela cidade, é suficientemente rico e influente para ser descrito como oligarca. Comprou o Banco Nacional de Reservas, que se tornou um dos maiores da Rússia. Sua fortuna era estimada em US$ 3,1 bilhões antes da crise, e ele afirma que ainda é de cerca de US$ 2,5 bilhões.

O que Lebedev sabe fazer bem é promover festas de luxo. Ele e o filho Evgeny, 28, administram a Fundação Raissa Gorbatchov, cujo nome é homenagem à mulher de Gorbatchov, morta em consequência da leucemia em 1999. A organização foi criada no Reino Unido em 2006 e já levantou cerca de 4 milhões de libras para ajudar crianças com câncer. Todos os anos, os Lebedev promovem em seu palácio uma festa de gala para levantar fundos.

Fantasia Russa de Verão é um evento de extravagância e esplendor czaristas. Todas as mulheres parecem altíssimas e magérrimas, mas, embora as ex-modelos Sophie Dahl e Yasmin Le Bon estejam presentes, nem todas são top models. Sarah Brown, mulher de Gordon Brown, premiê britânico, e a jornalista Tina Brown (ex-editora das revistas "Vanity Fair" e "New Yorker") estão entre os convidados, assim como o ator David Walliams, a escritora J.K. Rowling, o artista David Hockney, a atriz Vanessa Redgrave.

Gorbatchov, o convidado de honra, aparenta estar à vontade, apoiado pela bela neta Anastasia. Não fico para o jantar (cada mesa custa 15 mil libras), mas vejo depois nas colunas sociais que, entre os artigos leiloados, estava a bolsa Louis Vuitton "usada" por Gorbatchov na famosa campanha publicitária.

O ex-líder soviético despreza sugestões de que participar de anúncios possa ter amesquinhado seu legado, observando que também apareceu em um comercial da Pizza Hut porque sua fundação precisava de dinheiro. O destaque inesperado da noite foi ele ter subido ao palco para apresentar uma canção que costumava cantar para a mulher, dez anos após sua morte.

Dias antes, na entrevista, perguntei a Gorbatchov se a ausência de sua companheira se tornara mais fácil de enfrentar com o passar dos anos. "O tempo está fazendo seu trabalho, mas essa foi a coisa mais difícil que enfrentei na vida. Tenho uma filha, duas netas e agora também uma bisneta, Sasha. Mas é claro que o que aconteceu foi irreparável, e tenho um sentimento de culpa em relação a ela. Era o drama da perestroika e da nossa vida naquela época. Foi algo que ela não conseguiu suportar."

O golpe de 1991, quando representantes da linha dura colocaram Gorbatchov e sua família em prisão domiciliar em sua casa de campo na Crimeia (Ucrânia), foi traumático. Como o foram os acontecimentos que levaram à sua renúncia no dia do Natal, seguida pela dissolução da União Soviética no dia seguinte.

GLOBETROTTER

Quando iniciamos a entrevista, Gorbatchov observou que é mais velho hoje do que era Brejnev quando morreu. Aos 78 anos, continua a se submeter a uma programação exaustiva, percorrendo o planeta de avião. "A gente sente a idade. O corpo envelhece mais rápido do que a alma." E a mente? "Acho que está em boa forma."

Em novembro, 20 anos terão se passado desde que caiu o Muro de Berlim, símbolo do colapso do comunismo. Gorbatchov sempre disse que seu objetivo era consertar o regime, e não ser o instrumento de sua derrocada. "Como político, saí perdendo. Mas a ideia que transmiti e o projeto que realizei exerceram um papel enorme no mundo e no país."

Eu teria gostado de perguntar a ele se acha que há algo de trágico no fato de o êxito dramático de sua democratização ter levado ao fim da União, na qual ele também acreditava. Mas talvez ele tenha respondido, quando perguntei se acreditava que era dono de uma alma romântica. "Eu nunca disse isso a meu respeito, mas é uma visão comum na Rússia, onde me chamam de 'o Último Romântico’. Lá, sou chamado de idealista. E eu respondo que são os idealistas que movem o mundo."

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