São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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ENTRE NÓS

Aos 29, ainda uma promessa, Tarantino passou por SP, por Micheline Alves

por MICHELINE ALVES

CINEMA, CERVEJA E QUINDIM

Antes que o cineasta pise o território nacional
mais uma vez, no começo de outubro, três episódios
relembram sua primeira passagem pelo país, em 1992

Seis assaltantes vestidos em impecáveis ternos pretos tentam assaltar uma joalheria. Dá tudo errado. A polícia aparece. Um deles é baleado. Reunidos em um galpão logo depois do fracasso, eles concluem: há um traidor no bando. Mas quem será?

Foi com um enredo simples assim, rodado em pouquíssimas locações, com um ator melhor que o outro, muito sangue cenográfico –e um roteiro que entraria para a história do cinema– que Quentin Tarantino surgiu no Festival de Sundance, em janeiro de 1992, com "Reservoir Dogs". Nove meses mais tarde, batizado de "Cães de Aluguel", o filme chegou ao Brasil, precisamente na 16º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Convidado pela organização do evento, o cineasta de 29 anos veio à cidade. Então um ilustre desconhecido, passou diariamente pelo lobby do hotel Maksoud Plaza sem ser incomodado, assistiu a vários filmes da programação sem precisar dar opiniões a repórteres, badalou por lugares como a pizzaria Cristal, a Mercearia São Roque e o extinto restaurante The Place com a maior tranquilidade.

Agora, 17 anos depois, Tarantino volta ao país: vem lançar "Bastardos Inglórios", seu filme mais recente, no Festival do Rio (24/9 a 8/10). Vai ser tudo bem diferente daqueles dias de semianonimato em 92. Mas é exatamente aquela época que Serafina resolveu resgatar. A seguir, as histórias de quatro personagens que viram Tarantino de perto –e adoraram: Leon Cakoff e Renata Almeida, organizadores da Mostra; Paulo Machline, cineasta que trabalhava em televisão e ajudou a receber os convidados internacionais do festival; e Lorena Calábria, que entrevistou o cineasta para um programa da TV a cabo. Com vocês, Tarantino por eles.

LEON CAKOFF E RENATA ALMEIDA: OS ANFITRIÕES

"Assim que chegou a São Paulo (sozinho, já que a gente não podia pagar a vinda de acompanhantes), Tarantino pediu um catálogo da Mostra: estava disposto a ver o maior número de filmes possível. Naquela época, tínhamos pouco dinheiro, a equipe era minúscula e o catálogo nunca ficava pronto a tempo. Explicamos que ainda não havia catálogo e ele pediu os antigos, de anos anteriores. Você acredita que ele passou a noite toda lendo esse material? No dia seguinte, ficou comentando um monte de filmes. E assistiu a muita coisa. Ele ficava tenso para não perder os horários. Naquele ano, a gente teve "Days of Being Wild", filme do Wong Kar-wai que nunca entrou em cartaz no Brasil. Ele achou genial. É um cara generoso, interessado na obra dos outros. E sem estrelismos quanto ao próprio filme. Quando 'Cães de Aluguel’ foi exibido em Sundance, houve um problema técnico e o filme queimou. Literalmente, pegou fogo. E ele contava isso às gargalhadas pra gente. Teve um dia em que, logo depois da tradicional feijoada da Mostra, ele queria sair correndo pra uma sessão no Cinesesc. Insistimos para que ele experimentasse a sobremesa, quindim. Ele, apressado, perguntou de que era feito. Quando ouviu que era uma mistura de gema de ovo e coco ralado, morreu de rir. 'Que combinação absurda!’. Mas a gente fez uma quentinha pra ele levar. Ele comeu e gostou."

PAULO MACHLINE: O CICERONE

"Passei muito tempo com ele. Quando acabava a programação do festival, sempre tinha um jantar e depois a gente ficava conversando, horas, até o dia amanhecer. O cara gostava (e gosta) de balada. E de falar. Ele é intenso. A gente foi muito à Mercearia São Roque, um bar [no Jardim Europa] que eu adoro. E era muita conversa, muita cerveja. Ele falava do filme que ia fazer, contava cenas inteiras, e eu pensava 'que roteiro mais louco’. Era o 'Pulp Fiction’. Aliás, foi em São Paulo que ele convidou a Maria de Medeiros [que também estava na cidade para a Mostra] pra fazer o filme. Estávamos jantando na pizzaria Cristal, o Leon e a Renata também estavam, e ele fez o convite na nossa frente. Falou pra ela: 'é o papel da mulher de um boxeador’ e contou todos os detalhes, exatamente como foi pra tela depois. Ele não disse que o boxeador seria o Bruce Willis, mas a história estava pronta e a gente riu muito. Eu já tinha visto 'Cães de Aluguel’ e sabia do poder, mas não imaginava o que o cara ia virar. Anos depois, eu morava em Nova York e sempre o via em um bar. Não lembro o nome, é um bar que o Vik Muniz me apresentou, no Brooklyn. O bar mais vagabundo que você possa imaginar, e o Tarantino ia sempre. Uma vez, resolvi ir até ele e o cara lembrava de tudo: do festival, dos filmes, da loucura de São Paulo. Até da toalha do bar ele lembrava."

LORENA CALÁBRIA: A INTRÉPIDA REPÓRTER

"Em 1992, eu trabalhava na TVA e cobria os festivais de cinema, entre eles a Mostra. Quando chegou, o Tarantino já tinha passado por festivais, estava badaladinho, mas por aqui ainda era aquela coisa: uma promessa de jovem diretor. Fui entrevistá-lo no hotel, e ele já começou falando pelos cotovelos. Você vê que o cara tem prazer de falar, o barato dele é esse. Para cada pergunta que eu fazia, a resposta ia longe: ele nunca fechava o assunto rapidamente, ia emendando mil nomes, mil referências. Resultado: as fitas de gravação acabaram antes do fim da entrevista. Eu queria continuar, então disse a verdade: que as fitas tinham estourado, mas que a emissora era ali perto e poderíamos continuar, se ele tivesse disponibilidade. Ele respondeu que tudo bem, voltaria pro quarto e desceria novamente assim que eu ligasse, com as novas fitas. E assim foi. Hoje eu acho que não teria a cara de pau de fazê-lo esperar. E acho que ele nem toparia. Imagina, o cara é super solicitado. Mas naquela época ele estava de bobeira, queria conversar. Foi muito engraçado, ficamos falando muito de filmes B, de clássicos do cinema noir. O cara vive de cinema, sabe tudo. Eu pensei: 'posso até não gostar do filme (eu ainda não tinha conseguido assistir), mas esse cara é o máximo’. No final, vi o filme e adorei."

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