São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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ENSAIO

João Cabral de Melo Neto, nos dez anos da morte do poeta, seus versos viram fotografia

por IARA CREPALDI e FREDERICO BARBOSA

VERBO ILUSTRADO

Nos dez anos da morte do poeta João Cabral de Melo Neto, seis fotógrafos traduzem em imagens uma pequena fração de sua obra.

Há dez anos, encerrava-se a vida do João que afirmou: "Eu não tenho biografia", ecoando as palavras de Octavio Paz sobre Fernando Pessoa: "Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra". Uma década depois, o que ficou da obra e das ideias de João Cabral de Melo Neto?

Influenciado pelo arquiteto Le Corbusier, João Cabral construiu uma poesia do rigor, da clareza e da objetividade, que não deixa de emocionar ou encantar, mas o faz por meio da elaboração consciente e do absoluto domínio técnico e construtivo.

Muito se falou, desde sua morte (em 9 de outubro de 1999), que João Cabral, afinal, não era tão cerebral assim, que ele, no fundo, era lírico e até sentimental, que era emotivo e inspirado etc. Ou seja, para elogiá-lo, muitos negam a própria essência da sua luta, das sua ideias difíceis de serem digeridas pelo senso comum, da sua obra consciente, antilírica e racional. De sua ojeriza por lugares-comuns como "inspiração", "dom" ou "talento". De seu elogio obstinado do suor e do trabalho.

Muito mais do que o conhecido poeta que escreveu sobre Recife e Sevilha, sobre a miséria do Nordeste, sobre a própria poesia, sobre o futebol e sobre pintores como Miró, Paul Klee e Mondrian, a seleção de poemas que se segue procura homenagear exatamente esse poeta que sempre se pautou por fugir da facilidade e da mesmice. Assim, temos o surrealismo meticulosamente organizado, geométrico e cubista de "As Nuvens"; o manifesto contra a literatura da facilidade e do consumo imediato que é "Catar Feijão"; a reflexão sobre a intertextualidade em "Lição de Pintura", e o questionamento sobre a vida, a morte e o suicídio, no trecho da peça "O Auto do Frade" e no poema "Questão de Pontuação".

Temos também "O Artista Inconfessável", síntese de sua obsessão de que, na vida como na poesia, sempre se deve buscar a saída mais difícil, o fazer contra o não fazer. O sim contra o não. A vida: o raro e o difícil; contra a morte: o óbvio e o fácil. (FREDERICO BARBOSA)

Frederico Barbosa é poeta, crítico e diretor- executivo da Poiesis, que administra o Museu da Língua Portuguesa e a Casa das Rosas, em SP

AS NUVENS

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;

são estátuas em vôo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;

são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;

são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos.

Foto de Marcio Simnch:
"A morte é como algo branco. Esta imagem é o desejo da primeira visão logo após a morte"

O AUTO DO FRADE

Acordo fora de mim
Como há tempos não fazia.
Acordo claro, de todo,
acordo com toda a vida,
com todos os cinco sentidos
e sobretudo com a vista
que dentro dessa prisão
para mim não existia.
Acordo fora de mim:
como fora nada eu via,
ficava dentro de mim
como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.

Foto de Walter Firmo:
"A água manifesta a eloquência magnética da espiritualidade, e a sombra pressupõe uma existência vaga a cambalear"

QUESTÃO DE PONTUAÇÃO

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

Foto de Daniel Klajmic:
"Morte física, morte do pensar,
estar cego, sem pensar,
questionar ou exclamar"

A LIÇÃO DE PINTURA

Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além de outro quadro

que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.

Foto de Roberta Dabdab:
"Associei a ideia da pintura que não se esgota à imagem digital e suas infinitas possibilidades de se mostrar"

O ARTISTA INCONFESSÁVEL

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Foto de Daniel Malva:
"As flores, ainda que mortas, mostram a beleza do envelhecer e morrer, mostram que isso é natural e que lutamos por algo inútil"

CATAR FEIJÃO

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Foto de Christian Cravo:
"Ofusca-se a linha entre o
que é feijão, pedra, água"

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