São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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FINA

A louca vida e as lembranças de uma boêmia de luxo

por HERMÉS GALVÃO

FEITIÇO DO TEMPO

Viúva do ex-ministro Renato Archer, madame Madeleine encerra o período de silêncio e relembra sua belle époque particular como dama da boêmia

Madeleine Deutsch Archer sempre fez questão de não aparecer. Viúva de Renato Archer, ministro de Ciência e Tecnologia do governo de José Sarney e fundador do PMDB, nunca deu entrevistas, foge de chás, tem horror a listas. Vive reclusa, está distante do mundo lá de fora e, aqui dentro, no apartamento em um dos edifícios mais elegantes da praia do Flamengo, no Rio, encontro-a rodeada por cinco gatos, cachorro e um bom acervo de Volpis, Picassos e Di Cavalcanti –"esse chegou inacabado, mandei voltar e pedi ao Di que refizesse"– quase escondidos por livros empilhados do chão ao teto.

Não parece precisar de muito mais, hoje, aos 78 anos. Mas, no passado, foi a mulher que trocou almoços de bem casadas por noitadas boêmias na companhia de pintores, compositores, poetas e escritores; estava no lugar certo, na hora e com as pessoas certas. A lista é extensa, e ela se lembra de todos os nomes, além de datas e ocasiões em que estava presente.

Espécie de Forrest Gump do jet set, guarda histórias de personagens que, felizmente, fugiram do alcance das colunas sociais. Nos anos 40, em Nova York, conheceu Igor Stravinsky depois de um concerto em que, à procura de um lugar com acústica perfeita, acabou sentada atrás da filha do compositor russo. "Ela estava lendo as partituras daquela peça, começamos a conversar e, quando dei por mim, estava em uma festa em homenagem ao seu pai."

Na final da Copa do Mundo de 1950, lá estava ela, no Maracanã – "com Maria Salamanca, tia de Olavo Monteiro de Carvalho, nós duas sentadas com uma garrafa de champanhe na mão, que ficou fechada, evidentemente. Nem no cemitério vi silêncio tão aterrador."

DE MUMBAI À PARIS

Viveu em Paris de 1953 a 1957, na mesma época em que Vinicius de Moraes, então diplomata e amigo de seu primeiro marido, o também diplomata Rodolfo Souza Dantas. "Passávamos a noite inteira no Bar Anglais, no Plaza Athenée, eu, ele e a mulher Lila, irmã do [compositor] Ronaldo Bôscoli. Saíamos para beber sem hora para voltar. Na embaixada, éramos considerados uma turma de devassos. Nossa vida era uma festa móvel."

Antes disso, morou na Índia por dois anos, acompanhando Rodolfo em sua primeira missão pelo Itamaraty. "Estive em Bombaim (atual Mumbai) quando a Índia tinha quatro estações bem definidas: tifo, cólera, febre amarela e varíola. Aquilo era um inferno". Na década de 60, era lugar cativo na mesa mais incendiária do Antonio’s, juntamente com os jornalistas e escritores Rubem Braga, João Saldanha e Otto Lara Resende. "Jantávamos todo santo dia, e a conversa só acabava quando nos convidavam para ir embora, já de madrugada."

Nos primeiros anos do regime militar, foi uma das diretoras do MAM na gestão de Walther Moreira Salles e responsável por algumas das mais expressivas exposições já ocorridas no museu. "Trouxemos [o pintor holandês] Eckhout e organizamos a maior retrospectiva de Lasar Segall, com 2600 obras. Foi um período absolutamente glorioso e desafiador, porque muitas ideias iam contra a ditadura", conta ela, que enfrentou a milícia de Castello Branco para garantir a liberdade de expressão de artistas considerados subversivos.

"Uma vez, o [artista] Antonio Manuel fez um 'happening’ pouco usual na época. Desceu as escadas, completamente nu, e só parou quando ouviu a sirene da polícia. Valia a pena correr riscos."

BURACO MENTAL

Nos anos 70, separada e mãe de sua única filha, Alexandra, assumiu o cargo de relações públicas da Air France, repaginando o prêmio Molière com Flavio Rangel na direção e trazendo para o país atrações como Yves Montand e Mireille Mathieu.

Ficaram famosos os jantares oferecidos em seus salões para os vencedores de cada ano, que dividiam espaço com os convidados cativos Gilberto Chateaubriand – "o conheci aos 20 anos, num arrasta-pé qualquer" –, Waltércio Caldas, Ferreira Gullar e Antonio Callado.

Em 1990, a pausa. Madeleine tem parte do corpo queimado no incêndio que destruiu o restaurante Candido’s. Escapou pulando da janela, de uma altura de três metros. "Caí em pé, de salto alto, e pedi ao motorista que me levasse diretamente para o Pitanguy. Passei dois meses internada, entre plásticas e sucessivos banhos de iodo sobre as feridas. A dor era insuportável. Ganhei alta um ano depois e dispensei terapeutas. Disse a mim mesma: ou eu saio dessa sozinha ou ninguém me tira desse buraco mental. Sou visceralmente contra psicanálise."
Consequência do acidente, perdeu a audição –só escuta 5% em um dos ouvidos. Mas lê lábios, e Martin Heidegger, ferozmente. Além da predileção pelo filósofo alemão (1889-1976), é fluente em oito línguas, entre elas o romeno –filha de pai judeu, austríaco, chegou ao país em 1938, fugindo de uma guerra ainda não declarada, mas que já dava sinais de fumaça em sua Bucareste natal.

Formada em filosofia pela Universidade Columbia, fala baixo, mas sobe o tom quando vence a timidez. Aos poucos, sai de seu silêncio voluntário e se revela a mulher que agitou o Rio em sua belle époque particular. Aficionada por futebol, fã de caipirinha, convida-me para um drinque e conta que não perde um jogo do campeonato europeu por nada. Torcedora do Real Madrid, pede licença para assistir à partida do seu time.

Antes da despedida, combinamos de ver a final da Copa de 2014. Com garrafa de champanhe. E que dessa vez seja aberta.

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