São Paulo, domingo, 28 de junho de 2009

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NO RIO

Angu no sal

por Heloisa Seixas

No sítio histórico, a velha iguaria está de volta

É isso mesmo: agora tem Angu no Sal. E assim, escrito com letras maiúsculas, porque é o velho companheiro das madrugadas cariocas, o Angu do Gomes, que ressurgiu -e ressurgiu na Gamboa, junto à Pedra do Sal. Não exatamente na Pedra, mas ali ao lado, no largo da Prainha, parte do mesmo sítio histórico, o lugar onde ficava o Mercado dos Escravos e que já foi chamado de Pequena África. É a região do Rio situada atrás do cais do porto, por cuja revitalização todos torcemos há muito tempo. Agora parece que a torcida começa a dar certo.

Tudo bem que estive lá numa noite de festa, para o lançamento de um livro, mas noto que essa parte da cidade está cada vez mais animada e não ficarei surpresa se surgir ali uma nova Lapa. Mas vamos por partes. Nem todo mundo sabe o que é a Pedra do Sal, o largo da Prainha, o Angu do Gomes.

A Pedra do Sal, com seus degraus escavados pelos escravos, levando ao alto do morro da Conceição, é tombada desde 1984. Durante anos, era desembarcado ali o sal que abastecia a capital, daí o nome. E ali também eram negociados os escravos vindos nos navios negreiros. Muito depois da Abolição, a região continuou sendo um bastião da cultura negra brasileira e suas festas eram frequentadas por Tia Ciata, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Donga, João da Baiana. Esse último deu nome ao largo que fica ao pé da pedra, até hoje ponto tradicional de rodas de samba. Compondo o cenário, está ali perto o largo da Prainha, que de praia agora só tem o nome. Tudo foi aterrado, mas ficaram seus casarões, muitos deles implorando por uma restauração. O lugar costuma ferver na época do Carnaval, pois é ali que se concentra o bloco Escravos da Mauá.

PRATO TOMBADO

Já o Angu do Gomes é um patrimônio gastronômico que, como o pão de queijo e o acarajé, deveria ser tombado. Quem começou tudo, nos anos 1960, foi o português Manoel Gomes, que juntamente com um sócio, José Bernardo, servia angu de milho com molho de miúdos de boi numa carrocinha na praça XV. Os notívagos -e entre eles os músicos- eram fregueses assíduos, pois nada podia revigorar mais do que aquela mistura fumegante na madrugada. Entre os fregueses mais fiéis, Tom Jobim e Sérgio Mendes (que comia a iguaria antes de tomar a barca para Niterói). O negócio foi herdado pelos filhos deles, João Gomes e Basílio Pinto, e se expandiu: na década de 1970, chegaram a ser vendidos 20 mil pratos de angu por dia, em 40 carrocinhas espalhadas pela cidade. Depois, por alguma razão, a receita desandou. E o Angu do Gomes desapareceu.

Mas agora o mesmo Basílio Pinto, hoje com 79 anos, fez uma sociedade com o neto e trouxe de volta o Angu do Gomes. Não em carrocinha, mas como restaurante, com ventiladores nas paredes de azulejos e mesinhas espalhadas na calçada. Além do prato tradicional, a casa agora serve outros quitutes, como moela com farofa de alho, pastel de angu e um prato de lascas de bacalhau que se chama "punheta do vô Basílio". Nos fins de semana, rodas de samba e choro. Nada mais perfeito.

De repente, entre uma e outra iguaria, você pode dar a sorte que eu dei e topar com vó Maria, a viúva de Donga. Com 99 anos, magrinha e toda catita, ela pegou o microfone e deu uma canja. Cantou várias músicas, entre elas, claro, "Pelo Telefone". Todos ouviram em reverência. Viúva daquele que gravou o primeiro samba da história, ela pode fazer o que quiser. Ainda mais no território livre da Gamboa.

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