São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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CAPA

Pop Reciclado

por SILAS MARTÍ

Ele trocou Nova York pelo Rio. seu recente documentário sobre o trabalho que faz com catadores de lixo coleciona prêmios por onde passa. agora prepara uma série de intervenções artísticas do tamanho de sua ambição

Vik Muniz ainda não teve tempo de mandar arrumar o relógio com um metro de diâmetro pendurado na parede da cozinha de seu belo apartamento na avenida Vieira Souto em Ipanema, onde o metro quadrado vale até R$ 24 mil, com vista rasgada para o mar. Está enguiçado, com os ponteiros inertes, e sua decoradora ficou de trazer um substituto de Nova York.
Se o tempo parou no mostrador, a vida segue a mil por hora para o artista. Agora, ele quer imprimir sua marca por toda a cidade. E não é mais Manhattan, onde fez fama e fortuna, que está no centro da ação.
Desde que montou há dois anos uma exposição milionária, recorde de público, no Museu de Arte Moderna do Rio e que assumiu o namoro com a consultora de imagem Malu Barretto, Vik trocou o Brooklyn nova-iorquino pelo Rio de Janeiro, cidade que descreve para os amigos gringos como sendo uma "Saint-Tropez rodeada de Mogadício" –o balneário cintilante da Côte d'Azur envolto na casca de miséria da capital da Somália.
"É bacana estar aqui nesse momento", diz o artista. "Tem um certo ufanismo nisso. Não é que o brasileiro esteja melhor do que os outros, é o resto do mundo que está todo fodido. Se você está com o 'spotlight' na cara, se tem o microfone na mão, é ótimo." Vik adora holofotes.
Nada é pequeno na vida desse filho de retirantes cearenses que virou grife da arte contemporânea em 25 anos –dos recordes em leilões à abertura de "Passione", folhetim da Globo estrelado por Tony Ramos e Mariana Ximenes. Estão lá os materiais brutos que usa em suas obras e as imagens finais, glamourizadas. Ele usa papel picado, arame, barbante, terra, molho de tomate, chocolate, diamantes e até caviar para fazer seus trabalhos, depois os reproduz em imagens fotográficas.   
Em sua série "Pictures of Garbage", ele transforma literalmente a tralha em arte, ao retratar catadores de lixo do Jardim Gramacho que reciclam o material para tirar seu sustento.
Todo o processo por trás deste trabalho foi documentado no filme "Lixo Extraordinário", que entra em cartaz no Brasil em fevereiro do ano que vem e já rodou o mundo em mostras e festivais, de Sundance a Berlim. Nas contas de Vik, o filme já coleciona 21 prêmios, "sempre de público e nunca de júri".
Mas o prêmio mais importante ainda pode estar por vir –o filme está na reta final para ser indicado ao Oscar de melhor documentário. Já está entre os 15 títulos peneirados pelos membros da Academia para ocupar as cinco vagas dos indicados ao Oscar da categoria. O anúncio com a lista dos indicados só sai dia 25 de janeiro, mas Vik já vai encomendar o fraque para a cerimônia.
Tanto nesse trabalho quanto em outros, ele usa seu prestígio e o poder garantido de vendas para engatar algum tipo de contrapartida social. Espécie de Robin Hood das artes, canaliza o dinheiro de patrocinadores, como Louis Vuitton, L'Oréal e Globo, para melhorar a vida de quem participa de sua obra, e afirma que só vive mesmo da venda de suas fotografias (no mês passado, duas de suas fotografias ultrapassaram a marca de US$ 200 mil). No caso dos catadores do Jardim Gramacho, conseguiu comprar casas para todos os personagens do filme e mandou erguer um novo centro de reciclagem ali.
Vik visitou o local onde o lixo vira commodity junto com a reportagem de Serafina. Os catadores sabem que ele é o homem por trás das melhoras, embora haja quem pergunte se ele é Sylvester Stallone. Sebastião Carlos dos Santos, o Tião, que lidera a associação da categoria e aparece como um dos personagens centrais do filme, diz que conhecer Vik foi como encontrar uma "fada madrinha". "Desde então eu fico perguntando para ele qual dia vai ser meia-noite", conta Tião. "Quero saber quando é que a Cinderela aqui vai perder o sapatinho e tudo isso vai acabar."
Se depender de Vik e do relógio que nunca chega à meia-noite, o baile será eterno, mesmo que ele próprio saia de cena. Numa troca de posições, ele deixa de ser artista para virar o curador de seu próximo projeto. Vai se chamar Semana de Arte do Rio e está marcada para maio do ano que vem, com obras de brasileiros e estrangeiros espalhadas por toda a cidade. "Imagina pegar o americano Richard Serra e chamar a Gerdau ou a CSN para fazer aquelas esculturas gigantes de aço", delira. "Combina com a beleza natural e a textura social da cidade."
Para costurar todo o projeto, conta com a namorada, consultora de imagem da Prole, agência que tem entre suas contas a própria cidade do Rio. A Coca-Cola será a maior patrocinadora e deve circular latinhas durante a semana estampando obras de artistas famosos, como Beatriz Milhazes. Uma colagem de Milhazes, aliás, decora o escritório de Vik, que mostra na tela de seu iPad um teste com um desenho da artista impresso na embalagem do refrigerante.
Vik também quer chamar a dupla de grafiteiros Osgemeos para pintar os arcos da Lapa, montar uma instalação do dinamarquês Olafur Eliasson em cima do elevador do Pavão-Pavãozinho, pôr uma estátua de Buda do artista Marcos Chaves na pedra da Gávea e um cachorrinho gigante de Jeff Koons na Central do Brasil. "Arte é um direito, não é um privilégio. Isso é uma ideia de democracia, tipo a árvore de Natal da Lagoa", diz o artista. "A cidade está passando por mudanças radicais, estamos tentando redefinir essa geografia usando marcos temporários." 
Mas enquanto cede espaço aos colegas, Vik desbrava um caminho diferente na própria obra. "Não tenho mais que ficar dizendo que sou o cara que faz essas coisas com chocolate", pondera. "Posso me dar o luxo de mostrar coisas esquisitas." As esquisitices, no caso, são objetos do início de carreira que ele mostra agora na galeria Laura Alvim, no Rio, entre elas um Mickey cheio de pregos de vodu, bonecas conservadas em formol e uma flor artificial morrendo.
 São obras numa escala bem menor e menos fantástica do que os trabalhos que alçaram Vik à condição de celebridade. Foi pela necessidade de fotografar esses objetos há mais de 20 anos que o artista começou a fazer suas construções de massinha, diamantes, geleias e afins. De certa forma, ele faz o caminho inverso agora, voltando à escala diminuta dos objetos no lugar de obras faraônicas, como os retratos de lixo que ocuparam um galpão inteiro no Rio ou seus desenhos escavados por tratores na terra e fotografados em sobrevoos.
Em Tóquio e San Francisco, Vik acaba de mostrar colagens que faz com papel picado, trabalhos que levam de duas a seis semanas para criar. São construções "topográficas", segundo o artista, feitas de papel colorido, várias camadas empilhadas de acordo com uma divisão cromática feita por um programa de computador. É uma tradução de um processo artesanal pelo viés tecnológico, tudo numa escala mais dócil e mensurável do que sua obra anterior.
Enquanto essas obras viajam o mundo, ele não para de pesquisar, com a ajuda do Massachusetts Institute of Technology, as lentes microscópicas que pretende usar no próximo trabalho. Nada artesanal, é uma técnica que usa laser para gravar na superfície de grãos de areia os contornos dos castelos do vale do Loire, na França –uma obra que deve sumir diante dos olhos do espectador e virar mais um truque no repertório desse alquimista da imagem.
Toda a dimensão gótica dos castelos, construídos para impressionar, acaba reduzida a míseros grãos de areia. É nesse ponto que a obra nova faz contato com a antiga, o luxo dos reis gravado na terra pedestre. Na sala de seu apartamento no Rio, Vik, aliás, encheu uma mesa com areia de Ipanema, trazendo um pouco da praia mais charmosa do mundo para a escala diminuta de uma mesinha de centro. Nada mais Vik.


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